Edição 526 | 13 Agosto 2018

Princípios do SUS transformam a formação dos profissionais em saúde

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João Vitor Santos

Anakeila Stauffer destaca que a lógica de atendimento aos usuários, que vai além do tratamento de doenças, levou a constituição de profissionais preparados para promoção da saúde integral

Sem qualquer receio de cair no lugar comum, a professora Anakeila Stauffer destaca que, antes de se falar de SUS, é preciso compreender e reiterar o que é esse sistema. “O SUS não é só um projeto para a Saúde, mas um projeto de sociedade que ampliou a concepção de saúde da sociedade brasileira, combatendo a lógica hospitalocêntrica e curativa e colocando em foco a determinação social da saúde”, conceitua, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ela, a preocupação central é promover a saúde, com a “compreensão de que questões como condições de emprego, de moradia, segurança e saneamento, entre muitos outros, têm influência direta sobre o quadro de saúde individual e coletivo”.

Logo, para fazer frente a esses desafios, é necessário repensar a formação de profissionais como médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem. “Ao ampliar o conceito de saúde, o projeto do SUS evidenciou também a necessidade de se atuar com equipes multiprofissionais, mostrando que a saúde não se restringe ao trabalho médico”, acrescenta. Assim, nesse contexto se inserem as Escolas Técnicas do SUS, criadas para qualificar a formação de quem vai atuar no Sistema.

Entretanto, embora tenham trazido avanços e mudanças na concepção de profissional da saúde, essa fatia que compõe o SUS, no atual contexto político e econômico, é tão ameaçado como o Sistema em si. “O neoliberalismo foi inviabilizando o projeto do SUS, pois além de ir minando as possibilidades de participação da classe trabalhadora, vai delimitando um financiamento que não garante a manutenção e a ampliação de um sistema universal e equânime de saúde”, analisa. Anakeila ainda denuncia uma lógica “privatista e neoliberal” que “permite que se destinem verbas para o capital em suas mais diversas facetas”, enquanto o SUS vai desidratando. A perversidade é tamanha que, segundo ela, nem passa mais pela ideia de acabar com o Sistema. “Hoje, os grandes empresários da saúde não querem mais propriamente acabar com o SUS, querem receber recursos públicos para ‘participar’, ‘organizar’ ou ajudar a ‘gerir’ o SUS”, destaca. É uma espécie de verniz de boa intenção sobre um desejo que nada tem a ver com um conceito de democracia e saúde coletiva.

Anakeila de Barros Stauffer é diretora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – EPSJV, unidade da Fundação Osvaldo Cruz – Fiocruz que promove atividades de ensino, pesquisa e cooperação. Doutora em Educação, é pedagoga e professora na educação pública há 24 anos. Também colabora com o Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional em Saúde da Escola Politécnica e ainda atuou como professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, junto ao Departamento de Gestão de Sistemas Educacionais e Políticas Públicas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais os avanços e limites da saúde pública no Brasil nesses 30 anos de SUS?
Anakeila Stauffer – Inicialmente, é necessário destacar que o SUS não é só um projeto para a Saúde, mas um projeto de sociedade que ampliou a concepção de saúde da sociedade brasileira, combatendo a lógica hospitalocêntrica e curativa e colocando em foco a determinação social da saúde. Ou seja, a compreensão de que questões como condições de emprego, de moradia, segurança e saneamento, entre muitos outros, têm influência direta sobre o quadro de saúde individual e coletivo. Mais do que isso, o SUS reconheceu o que chamamos de direito universal à saúde: com todos os problemas, que não podemos deixar de reconhecer, há 30 anos, no Brasil, todos têm direito a acessar os serviços públicos de saúde em todos os níveis. Quem não viveu a realidade de antes do SUS pode não fazer muita ideia, mas essa em de fato, um avanço civilizatório.

No entanto, se naquele momento histórico das décadas de 1970 e 1980 foi possível formular um projeto como o SUS, impulsionado pelo Movimento da Reforma Sanitária , com a atuação de movimentos sindicais, de categorias de profissionais, de usuários da saúde, toda essa “fermentação de gente” e de propostas foram solapadas pelas políticas neoliberais da década de 1990, enfrentamos, a partir destas políticas, uma mudança não só econômica, como também política e cultural. Isso acabou fragilizando os trabalhadores, inserindo ideários individualistas, acentuando a acumulação do capital e intensificando os processos de exploração dos trabalhadores. O neoliberalismo, portanto, foi inviabilizando o projeto do SUS, pois além de ir minando as possibilidades de participação da classe trabalhadora, vai delimitando um financiamento que não garante a manutenção e a ampliação de um sistema universal e equânime de saúde.

Outra dimensão desafiante se refere à humanização da saúde. Não que este campo seja mais brutal que tantos outros em nossa sociedade. Mas é que vivemos numa época de tantas violências que isto desafia ainda mais as dimensões do cuidado, de recuperação de nossa humanidade, de nossa delicadeza perdida.

Por fim, um dos principais desafios é que voltemos a lutar não somente pelo SUS, mas, quem dera, pudéssemos recuperar algumas palavras de ordem da época, como “saúde, democracia e socialismo!”.

IHU On-Line – Como compreender o processo histórico de trabalho em saúde no Brasil? De que forma a criação do SUS realinha essas lógicas de trabalho em saúde?
Anakeila Stauffer – O SUS é construído, dia a dia, por trabalhadores de todos os níveis de ensino – profissionais de nível superior, trabalhadores técnicos e auxiliares – e de áreas que vão além do campo restrito da saúde. Ao ampliar o conceito de saúde, o projeto do SUS evidenciou também a necessidade de se atuar com equipes multiprofissionais, mostrando que a saúde não se restringe ao trabalho médico. Nesse processo, ganha relevância, por exemplo, a atuação dos trabalhadores técnicos nas equipes. Hoje, é impossível, por exemplo, pensar o SUS sem os agentes comunitários de saúde, que compõem a Estratégia de Saúde da Família e têm sido muito atacados ultimamente, num momento em que se ataca, no conjunto, a maior política social que o Brasil construiu.

IHU On-Line – De que forma a senhora observa o discurso de que o SUS não cabe no orçamento e que precisa ser revisto? O que há por trás dessa lógica?
Anakeila Stauffer – Por trás dessa lógica está o discurso privatista e neoliberal que assola o país e que permite que se destinem verbas para o capital em suas mais diversas facetas, inviabilizando a consolidação de direitos básicos para a população. Sem trazer uma linha histórica tão longa, podemos nos concentrar nos últimos anos em que, após o ajuste fiscal do Governo Dilma, realizado para se responder às pressões de uma eleição polarizada, modificou-se o cálculo de investimentos no SUS. Isso correspondeu, no ano de 2016, a uma perda de R$ 1,2bilhão. Da mesma forma, extinguiu-se a possibilidade de que os investimentos do Pré-Sal fossem investidos na Saúde.

Para piorar o cenário que já não tinha nada de promissor, tivemos a aprovação da EC 95 , que congela as despesas da União por 20 anos. Ou seja, essa PEC [que depois se transforma em Emenda Constitucional] da morte, inviabiliza os investimentos em políticas sociais e as projeções de perdas para o SUS correspondem a um montante de R$ 417 bilhões, segundo a entrevista de Francisco Funcia , que trabalha para o Conselho Nacional de Saúde, a nossa revista Poli de comemoração dos 30 anos do SUS .

Outra questão que nubla ainda mais nosso futuro se refere aos repasses da União aos outros entes federativos – o que corresponde a 2/3 do orçamento federal. Anteriormente à portaria 3992/2017, os recursos tinham “áreas carimbadas” e estratégicas para o SUS, em que era obrigatório o investimento. Agora, os gestores municipais e estaduais têm maior liberdade para efetivar tais investimentos – o que significa, na prática, maior dificuldade para fiscalização e, provavelmente, menos investimento em áreas como a vigilância em saúde, por exemplo, que têm menos visibilidade e, portanto, geram menos ‘votos’. Agora, você imagine isso num cenário de emergências sanitárias como o que estamos vivendo, com os recentes casos de Zika , Chikungunya , Febre Amarela silvestre , entre outros...

IHU On-Line – Quais as diferenças e semelhanças entre a educação profissional em saúde no Brasil e em países do Mercosul?
Anakeila Stauffer – Antes de responder a essa pergunta, vou indicar um livro escrito por um grupo de pesquisadores aqui da EPSJV, intitulado “A formação de trabalhadores técnicos em saúde no Brasil e no Mercosul”, fruto de uma pesquisa coordenada pela EPSJV. Atualmente, estamos realizando uma outra pesquisa, multicêntrica. Sintetizo aqui algumas questões. Vamos começar lembrando uma coisa: o Mercosul foi constituído como um acordo comercial entre seus Estados membros e, desde seu princípio, a definição de diretrizes políticas comuns nas áreas sociais se fazia presente.

Contudo, os países que compõem o bloco não se encontram isolados do mundo e assim, infelizmente, uma das semelhanças que enfrentamos foi a instituição, a partir da década de 1990, do receituário neoliberal na América Latina, tendo por principais atores os organismos internacionais (não somente as agências multilaterais de crédito, como também as agências de fomento e cooperação) que atuaram fortemente na homogeneização das políticas econômicas e sociais, incidindo nas políticas educacionais e na regulação do trabalho.

Outra semelhança é que, no que tange à educação profissional em saúde, sua origem se vincula às políticas de saúde e, de acordo com as particularidades e a história de cada país, esta discussão vai se estendendo para o campo educacional e do trabalho. Em alguns países, mais recentemente, tem sido realizado um esforço de se constituírem políticas comuns entre essas áreas voltadas aos trabalhadores técnicos em saúde.

Ainda pudemos constatar na pesquisa que houve uma tendência à elevação da escolaridade desses trabalhadores e trabalhadoras, deslocando-se a formação para o nível superior. Na realidade brasileira, a formação desses profissionais ainda se enquadra no nível médio, ou seja, como última etapa da Educação Básica. Nos países do Mercosul, tal formação se dá também após os doze anos de escolaridade como no Brasil, só que sendo enquadrada como uma formação técnica de nível superior. Para além dessa dimensão da certificação, o que se faz necessário pesquisar – e que não é um processo fácil porque exige equipes de pesquisa dos diferentes países debruçadas num mesmo processo de investigação – é o processo de trabalho. Analisar o processo de trabalhado a que estes trabalhadores estão vinculados nos possibilitaria estabelecer equivalências e diferenciações mais próximas à realidade, observando-se como o mundo do trabalho vem impactando seus processos formativos, a regulação e a regulamentação do exercício profissional, sua inserção no processo de trabalho.

Privatização da formação profissional

Há também diversas assimetrias entre os países que compõem o bloco, sobretudo devido à constituição de seus sistemas de educação e de saúde – o que não poderia destrinchar neste espaço. Mas é importante destacar que se vive um processo de privatização da formação profissional em saúde, assim como um processo de flexibilização e exploração do trabalhador da saúde que tem levado muitos ao adoecimento.

IHU On-Line – Qual o papel das Escolas Técnicas do SUS e como elas compõem o Sistema?
Anakeila Stauffer – A história da constituição das escolas técnicas do SUS é uma história muito bonita de luta e, atualmente, de resistência. Parte dessa história pode ser consultada na tese de uma professora nossa, já aposentada, Isabel Brasil . Até a década de 1980, as iniciativas de formação dos trabalhadores técnicos se davam de forma pulverizada, muitas vezes no formato de treinamentos, com concepção mecanicista e centrada no simples ato de “faça como se pede”. Eram cursos rápidos no estilo “cursos Walita” . Isso gerava um problema não só na certificação de tais cursos, como também não solucionava os problemas de elevação da escolaridade dos trabalhadores da saúde e não incidia na melhoria das ações de saúde.

É diante desse cenário que a enfermeira Izabel dos Santos começa a lutar pela profissionalização dos trabalhadores técnicos de nível médio e elementar da saúde, buscando as brechas das leis. Buscava-se constituir um processo pedagógico que correspondesse à realidade do estudante trabalhador já inserido no sistema de saúde – o que não e fácil de ser compreendido no sistema educacional. Foi esta preocupação que criou o Projeto Larga Escala e que deu origem às Escolas Técnicas do SUS – ETSUS. A ideia era que se constituísse uma escola descentralizada, que melhorasse o processo de ensino-aprendizagem e que possibilitasse uma formação em saúde que contribuísse para a melhoria das ações de saúde junto à população.

Contudo, uma grande fragilidade das ETSUS se refere exatamente à forma descentralizada como se constituíram. A maioria das escolas não tem um corpo de docentes fixos e se organiza a partir de uma equipe mínima. Outra questão delicada é que o fato de os docentes serem originários da saúde, apresentando uma formação pedagógica mais fragilizada, apesar de, muitas vezes, serem experts em seus campos de atuação. Por fim, o maior desafio que estas escolas enfrentam se refere ao financiamento de suas ações. Embora sejam majoritariamente vinculadas às secretarias estaduais de saúde, a maioria, desde sua constituição, atua através de incentivos de programas provenientes do governo federal – como o Profae , o Profaps –, não tendo autonomia financeira. Assim, em épocas de restrição orçamentária, a dimensão da formação dos trabalhadores(as) técnicos(as) do SUS fica em plano inferior o que, consequentemente, vai colocando à míngua, a potencialidade formativa destas instituições.

Precarização do ensino e do trabalho

Há que se destacar ainda que os cortes orçamentários irão impactar de forma brutal a formação desses trabalhadores que, apesar de se constituírem como o maior quantitativo de trabalhadores em nosso sistema, são os mais invisibilizados. Não esqueçamos que estão submetidos a contratos de trabalho cada vez mais precários, devido a processos de privatização do SUS.

Por fim, voltando à dimensão educacional, também vivemos um processo de privatização da educação, que incide sobre as políticas de formação de técnicos, chegando a descaracterizar, de forma brutal, a formação e o trabalho de alguns desses trabalhadores (como é o caso do PROFAGS, um programa do governo federal que promete investir um bilhão de reais – mais do que qualquer outra ação de Educação Profissional em Saúde – para formar Agentes Comunitários de Saúde e agentes de combate a endemias em técnicos de enfermagem, descaracterizando esses trabalhadores).).

IHU On-Line – Quais as similaridades e distinções na formação de profissionais para atuarem no sistema público e no sistema privado de saúde?
Anakeila Stauffer – Penso que temos que partir do princípio de que, independentemente de se estar num sistema público ou privado de saúde, todos os trabalhadores e trabalhadoras da saúde estão lidando com vidas humanas e todo ser humano tem o direito à Saúde. Isto está no artigo 196 de nossa Constituição (1988) e, portanto, deve ser seguido por qualquer tipo de instituição de saúde. Outra dimensão que não pode ser esquecida é que a Saúde não é só a ausência de doenças, e deve ser considerada a partir de seus determinantes sociais, ou seja, a dimensão não se resume à dimensão individual e se constitui como dimensão coletiva.

A partir desse pensamento, para o aspecto formativo o desafio é o mesmo: formarmo-nos, enquanto classe trabalhadora, para entender e lutar por um SUS universal, igualitário; entender que Saúde e Educação não são mercadorias e, neste sentido, por mais que se esteja trabalhando numa instituição privada, o direito do ser humano que ali está é de ser atendido em sua integralidade. Mas isso, evidentemente, é muitas vezes limitado pela lógica privada mercantil, que trata a saúde das pessoas e da população como um negócio cujo objetivo principal é gerar lucro e para grupos empresariais cada vez maiores. Por isso, defendemos que o SUS precisa ser público, universal e estatal.

IHU On-Line – Quais os maiores desafios para se trabalhar na formação de profissionais para atuarem na atenção básica à saúde hoje no Brasil?
Anakeila Stauffer – O maior desafio é compreendermo-nos como classe trabalhadora. Neste sentido, deveríamos ter o compromisso de responder ao direito à saúde, garantindo o atendimento às necessidades de saúde da população, sendo esta um dever do Estado. Contudo, esse modelo privatista invade todas as dimensões da vida humana e também incide no que a classe trabalhadora entende como sua necessidade de formação: lhe é incutido, portanto, que a formação deve ser utilitarista o que acarreta uma educação fragmentada, muitas vezes oferecida por instituições privadas duvidosas.

No que tange à Atenção Básica, ela vem sofrendo pressões que trazem contradições importantes, pois, ao mesmo tempo em que busca garantir a ampliação da oferta pública de serviços à classe trabalhadora, sua expansão tem sido realizada através da terceirização da força de trabalho e pelas distintas formas de privatização da gestão pública (via parceria público-privada, por exemplo, principalmente através das chamadas Organizações Sociais - OS). A terceirização fragiliza o vínculo dos trabalhadores que se sentem ameaçados por lutarem por melhores condições de trabalho, assim como por sua formação.

Uma outra questão problemática é que as mudanças realizadas na Política Nacional de Atenção Básica – PNAB durante este governo têm reificado a visão biomédica e medicalizante, abandonando a concepção de cuidado integral e, consequentemente, buscando apagar o papel das determinações sociais nos processos de saúde e de adoecimento da população brasileira.

Por fim, outra dimensão desafiadora para se pensar a formação para trabalhadores atuarem na Atenção Básica se refere à dimensão da participação social –mecanismo fundamental para a instituição cotidiana de um SUS público e universal. Neste sentido, é dever nosso, enquanto instituição de Educação pública para o SUS, efetivar a formação nessa dimensão participativa e democrática não só para os trabalhadores do SUS, mas também ampliando para a sociedade civil, para movimentos sociais e para conselheiros de saúde, pulverizando o SUS como um projeto societário e não somente como algo importante para os trabalhadores e trabalhadoras do SUS.

IHU On-Line – Por que o trabalho de agentes comunitários de saúde é tão importante num sistema como o SUS? Quais os desafios para preparar pessoas para trabalharem nessa área?
Anakeila Stauffer – Se os Agentes Comunitários de Saúde – ACS surgiram como trabalhadores da saúde que deveriam responder às emergências de saúde pública, hoje se compreende que sua atuação vai além dessa dimensão, constituindo-se como trabalhadores fundamentais para a consolidação da atenção básica no Brasil, visto que, atuando no território, desenvolvem ações de educação e de promoção da saúde. Contudo, ainda é muito difícil superarmos as atuações fragmentadas nas equipes de saúde e, não raro, estes trabalhadores são subalternizados na implementação das políticas mais permanentes e, consequentemente, em seu direito à formação.

O fato é que o trabalho dos ACS é reconhecido como potencializador da Atenção Básica. Num seminário realizado aqui na escola, em 2016, o então coordenador geral de Ações Técnicas em Educação na Saúde do Departamento de Gestão da Educação na Saúde da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Aldiney Doreto , ressaltou que “Nenhuma tecnologia salvou tantas vidas como a incorporação do ACS na Estratégia Saúde da Família”. Contudo, sabemos que o Ministério da Saúde, em parceria com as Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde – ETSUS, só financiou o primeiro módulo da formação técnica desses trabalhadores (equivalente a 400 horas). Ora, aí está uma contradição muito grande, pois se admite a ação fundamental desses trabalhadores, mas não se garante sua formação e, além do mais, fragilizam-se as ETSUS ao não possibilitarem que estas ofertem a formação completa, visto que não possuem autonomia financeira. Outra contradição refere-se ao vínculo destes trabalhadores que, por serem contratados de forma precária em boa parte do país, acabam desvinculando-se dos processos formativos viabilizados pelas ETSUS e gerando uma rotatividade grande nos serviços.

Ao pensarmos na dimensão formativa que oferecemos na EPSJV, se ela tem um potencial crítico diante dessa realidade de precarização e exploração do trabalhador e de combate à mercantilização da vida, ela se depara com esta mesma realidade que, muitas vezes, dificulta a presença e o melhor aproveitamento deste trabalhador do processo de ensino-aprendizagem constituído no interior da Escola. Uma das dimensões fundamentais para a formação deste trabalhador se refere à Educação Popular em Saúde como um dos pilares para se consolidar a atenção básica, visto que esta considera a dimensão da participação, do questionamento da própria realidade para a sua transformação, do compartilhamento de conhecimentos e saberes, do planejamento coletivo. E isso o que é senão o elemento constituinte da atuação do ACS junto à população de seu território?

IHU On-Line – Como conceber o fortalecimento do SUS hoje?
Anakeila Stauffer – Em primeiro lugar, revogando a Emenda Constitucional 95, do teto dos gastos, que foi o tiro de misericórdia num sistema que já vem sendo subfinanciado desde a sua criação. Não existe saúde de qualidade sem recursos e o investimento público em saúde no Brasil é absurdamente baixo. Em segundo lugar – o que é a contraface dessa primeira medida –, deixar de subsidiar o grande capital privado que tem avançado sobre a saúde.

Hoje, os grandes empresários da saúde não querem mais propriamente acabar com o SUS, querem receber recursos públicos para “participar”, “organizar” ou ajudar a “gerir” o SUS. Dinheiro público tem que ir para o sistema público estatal. Casado a tudo isso, é preciso fortalecer as instituições e serviços públicos. Mas essas são medidas ‘práticas’ que, no entanto, só são possíveis a partir de uma ação maior, mais importante e mais difícil: a mobilização social. É preciso retomar a organização dos trabalhadores, em sindicatos, movimentos sociais, movimento estudantil etc, para dentro e para fora da área da saúde. É preciso reacender a chama de mobilização social que, 30 anos atrás, tornou possível o SUS.■

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