Edição 525 | 30 Julho 2018

Papel fundamental do marxismo é contribuir para reinvenção do socialismo no século XXI

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João Vitor Santos | Edição: Vitor Necchi

Para Carlos Eduardo Martins, isso deve ocorrer mediante comprometimento com uma democracia radical nos diversos planos

Depois da morte de Marx, “o marxismo torna-se uma força intelectual e política incontestável, convertendo-se em objeto de disputa de distintas frações de classe e grupos de interesse nacionais e internacionais, dando lugar a distintas formulações e orientações teóricas e políticas, muitas vezes rivais e antagônicas”, afirma Carlos Eduardo Martins, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. O mesmo ocorreu na América Latina.

A teoria da dependência, para Martins, ainda é capaz de auxiliar na compreensão das realidades. Isso, no entanto, “exige uma revisão da obra dos fundadores, tendo em vista dois níveis articulados, que são os do desenvolvimento lógico-analítico dos conceitos e sua adequação às tendências de longa duração do capitalismo e à realidade concreta no século XXI”.

Sobre a esquerda brasileira, Martins avalia que ela “abandonou as questões estratégicas nacionais e as relativas à construção de um novo eixo geopolítico regional e mundial”. Isso se deve, em grande parte, “porque o PT no poder desistiu de um projeto de enfrentamento do protagonismo do capital financeiro e da transnacionalização da economia brasileira”. Afirma que a esquerda brasileira “deve sair de uma posição de ajuste à ordem ou de sectarismo e voltar a fazer política de hegemonia”. Na sua visão, “é preciso que a esquerda recupere a ousadia, os projetos estratégicos, as mobilizações sociais e adote políticas universalistas como parâmetro, colocando apenas dentro destas as políticas focalizadas”.

No cenário atual, Martins entende que o marxismo deve analisar, entre outras coisas, “a natureza da financeirização do capitalismo contemporâneo e sua relação com a crise civilizatória do modo de produção capitalista”, “a extensão da superexploração aos países centrais e o caráter que assume no centro e na periferia no século XXI”, “a crise do liberalismo político, o caos sistêmico a que se aproxima a ordem internacional e o recrudescimento do fascismo no século XXI” e “o caráter colonial e violento das estruturas de poder no capitalismo contemporâneo, denunciando o racismo, a heteronormatividade e promovendo sua descolonização e democratização”.

Por fim, defende que “é papel fundamental do marxismo contribuir para reinvenção do socialismo no século XXI, comprometendo-o com uma democracia radical no plano local, nacional, internacional e mundial”.

Carlos Eduardo Martins é graduado em Sociologia e Política pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUCRJ, mestre em Administração pela Fundação Getulio Vargas - FGV-RJ e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP. Leciona no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. É autor de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (Boitempo, 2011).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o marxismo foi apreendido na América Latina? Essa leitura se mantém atual?
Carlos Eduardo Martins – Após a morte de Marx, o marxismo torna-se uma força intelectual e política incontestável, convertendo-se em objeto de disputa de distintas frações de classe e grupos de interesse nacionais e internacionais, dando lugar a distintas formulações e orientações teóricas e políticas, muitas vezes rivais e antagônicas. No caso europeu, os debates sobre o imperialismo, a guerra, o neocolonialismo, as nacionalidades, as tendências monopólicas ou associativas da economia capitalista, o caráter do Estado capitalista, o papel do partido, dos intelectuais, das universidades, das distintas camadas populares, da greve de massas, das reformas, dos ciclos econômicos, da violência e da paz na transição ao socialismo, o caráter da URSS, suas frações de classe e estratégias de desenvolvimento dividirão as interpretações que reivindicam o marxismo como instrumento de análise da realidade em várias correntes: podemos destacar, na Segunda Internacional , a direita, o centro e a esquerda, representados de Eduard Bernstein , Karl Kautsky e Rosa Luxemburgo ; a renovação do marxismo com a Revolução Russa , em que se destacam os aportes de Lenin , Trotsky , Bukharin , Kondratiev e Plekhanov até a afirmação do stalinismo; os aportes de Dimitrov , de Gramsci e seus desdobramentos euro-comunistas. Este processo colossal de articulação com forças sociais em aliança ou disputa nos coloca diante da necessidade, independentemente do nível de criatividade e rigor teórico, de perceber o marxismo no plural enquanto realidade histórica.

Na América Latina, não será diferente. O marxismo assume aqui diferentes formatos e projetos teóricos e políticos em função de suas conexões internacionais e bases sociais internas. É introduzido por imigrantes europeus alemães, italianos e espanhóis no final do século XIX e sofre influência europeia e soviética em cujas estruturas de poder sindicais, partidárias ou estatais havia penetrado mais amplamente. O marxismo latino-americano vai se afirmar entre a influência destes centros e a necessidade de formular uma elaboração original de interpretação e transformação da realidade latino-americana e da própria economia mundial de que era parte. Entre as temáticas sobre as quais vai se debruçar o marxismo latino-americano, estão, além da reelaboração daquelas estabelecidas inicialmente pelo pensamento europeu e soviético, as referentes ao caráter das economias coloniais latino-americanas e caribenhas, à articulação entre as economias capitalistas e pré-capitalistas, ao papel dependente ou revolucionário das burguesias latino-americanas, aos limites da industrialização no capitalismo periférico, à superexploração do trabalho e sua compatibilidade com a mais-valia relativa, ao colonialismo interno e a descolonização do poder, ao caráter socialista ou anti-imperialista das tarefas nacionais, ao populismo e seu papel na formulação do nacionalismo revolucionário, ao papel dos povos originários, do negros e mestiços na transformação social.

Podemos distinguir no marxismo latino-americano diversas formulações que marcarão distintas elaborações complementares ou antagônicas, que formam um vasto e importante patrimônio cultural, teórico e analítico de interpretação da realidade. Assim podemos enunciar, sem nenhuma pretensão de esgotá-lo, as correntes anti-imperialistas radicais dos anos 1920 que encontram no peruano José Carlos Mariátegui e no cubano Julio Antonio Mella sua mais alta elaboração; a presença do stalinismo através do argentino Vittorio Codovilla , que busca aplicar o modelo mecânico a etapista formulado pelo Comintern à realidade latino-americana; as análises do brasileiro Caio Prado Junior e do argentino Sergio Bagú do capitalismo colonial do Brasil, da América Latina e do Caribe; os aportes sobre o colonialismo interno do alemão radicado no México Rodolfo Stavenhagen e do mexicano Pablo Gonzalez Casanova ; as formulações dos brasileiros Theotonio dos Santos , Ruy Mauro Marini e Vânia Bambirra e do chileno Orlando Caputo sobre dependência, sistema mundial, superexploração, subimperialismo, ciclos e a debilidade da democracia na região; as contribuições do argentino Ernesto Laclau e do brasileiro Octávio Ianni sobre o populismo; os trabalhos sobre articulação de modos de produção nas obras do equatoriano Agustin Cueva e do brasileiro Ciro Flamarion Cardoso , ou entre classes e estamentos nos brasileiros Florestan Fernandes e Sedi Hirano para entender um capitalismo sui generis; os aportes sobre poder dual e sociedade abigarrada do boliviano René Zavaleta Mercado ; a formulação da teologia da libertação pelo peruano Gustavo Gutierrez sob forte inspiração marxista; as formulações geopolíticas da mexicana Aña Esther Ceceña e do argentino Atilio Boron ; e a elaboração de um pensamento decolonial pelo argentino Enrique Dussel , pelo peruano Anibal Quijano e pelo mexicano Hector Diaz Polanco , entre outros.

IHU On-Line – A teoria da dependência é um dos principais caminhos para renovação do marxismo? Por quê?
Carlos Eduardo Martins – A teoria da dependência, em sua versão marxista, tem contribuído para desvendar o caráter profundamente antinacional de nossa burguesia, os limites históricos de seus projetos de desenvolvimento em função do lugar subordinado que ocupam na divisão internacional do trabalho, o caráter profundamente excludente de seus padrões de acumulação, o alto nível de barbárie de seus processos civilizatórios, que coloca sob risco a estabilidade política dos regimes democráticos, ameaçados pelo recrudescimentos de neofascismos. Tem contribuído ainda para analisar a crise do capitalismo contemporâneo, formulando as bases de uma teoria marxista do sistema mundial na qual tenho trabalhado a partir dos caminhos abertos por Theotonio dos Santos. A teoria marxista da dependência tem formado novas gerações cujo desafio é o de atualizar conceitos deixados por seus fundadores, como os de superexploração, subimperialismo, padrões de acumulações e seus ciclos, e de formular uma teoria política que seja capaz de analisar o caráter da crise do Estado na América Latina e promover sua transformação rumo a um socialismo democrático e articulado à construção de um novo eixo de poder geopolítico mundial.

IHU On-Line – A teoria da dependência ainda é capaz de auxiliar na compreensão das realidades do nosso tempo? De que forma?
Carlos Eduardo Martins – Penso que sim. Isso exige uma revisão da obra dos fundadores, tendo em vista dois níveis articulados, que são os do desenvolvimento lógico-analítico dos conceitos e sua adequação às tendências de longa duração do capitalismo e à realidade concreta no século XXI. A teoria da dependência deve se desenvolver para ser um dos suportes de uma teoria marxista do sistema mundial, buscando não apenas romper com a dependência nos países periféricos, mas disputar o comando do sistema mundial, modificando sua estrutura rumo a uma civilização planetária, plural e democrática. Para isso é necessário um trabalho de integração e articulação de instrumentos analíticos formulados seja pelo grupo da dependência, seja pelo grupo do sistema mundial, tradicionalmente sediado na esquerda dos Estados Unidos, que carece de maior suporte marxista.

IHU On-Line – Em que medida a intelectualidade brasileira, essencialmente paulista e alicerçada na Universidade de São Paulo - USP, apresenta outra leitura do marxismo, distanciando-se das lógicas das teorias da dependência? E quais os limites dessa leitura?
Carlos Eduardo Martins – A intelectualidade paulista foi profundamente marcada pelo projeto desenvolvimentista do capitalismo dependente brasileiro, que teve em São Paulo seu epicentro nacional. São Paulo lançou-se como centro econômico, demográfico, cultural e político brasileiro a partir dos anos 1930, beneficiando-se, posteriormente, da transferência da capital política do país do Rio de Janeiro para Brasília. Após o fracasso da Revolução de 1932 , as oligarquias paulistas fundam a USP em 1934, retomando a perspectiva de protagonismo sob forte orientação eurocêntrica e buscando matizar a orientação liberal para conciliá-la com a desenvolvimentista.

A derrota imposta pelo golpe de 1964 ao nacionalismo-popular de origem varguista garantiu o protagonismo a um desenvolvimentismo excludente e controlado desde cima, ainda que as oligarquias paulistas só consigam exercer diretamente o protagonismo político e cultural a partir da década de 1990, perdendo espaço para o PT em 2002 e retomando-o com o golpe de Estado de 2016. A transição a este protagonismo se deu com a destruição do projeto cultural do nacionalismo popular e com relações íntimas e perigosas com a ditadura. Zeferino Vaz , que conduziu a construção e estabelecimento da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], de onde foi reitor por 12 anos, foi também o interventor nomeado pelo então general Castelo Branco para destruir a UNB [Universidade de Brasília], de onde demitiu Theotonio dos Santos, Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Perseu Abramo , entre outros.

A formulação teórica do desenvolvimento dependente encontrou sua mais alta elaboração na obra de Fernando Henrique Cardoso , que aponta na dependência o paradigma de desenvolvimento do Brasil e do capitalismo periférico. Na sua formulação, Cardoso salpicou marxismo aqui e ali, mas para tingir uma arquitetura weberiana de pensamento. Onde a dependência era apresentada como o único padrão legítimo de dominação, o único que promovia desenvolvimento. Todavia, paradoxalmente, quando alcança o poder político, este projeto já se torna obsoleto. A reformulação do capitalismo internacional mediante a globalização neoliberal destruiu grande parte da indústria brasileira, e a burguesia optou pela financeirização e pelo subdesenvolvimento para garantir o controle político sobre a classe trabalhadora, impondo-lhe altas taxas de desemprego.

O fracasso deste projeto é melancólico: Fernando Henrique Cardoso, supostamente democrata, se torna um dos articuladores do golpe de 2016 e da aprovação da lei que congela gastos públicos primários por 20 anos. A suposta via do desenvolvimento pela dependência desde a década de 1980 proporciona taxas medíocres de crescimento econômico, excetuado o período de 2004-2012, sob direção heterodoxa petista e aditivada pelo boom dos preços das commodities.

Importante mencionar, entretanto, que se esta é a via que se tornou dominante no padrão uspiano de pensamento, não foi a única vertente ali formulada, nem este o único padrão que se associou à dependência.

Cumpre destacar na USP a sociologia militante de Florestan Fernandes, a geografia de Milton Santos , os pensamentos de Octávio Ianni , de Francisco de Oliveira , de Sedi Hirano, de Ruy Braga , de Leda Paulani , entre outros, como importantes referências críticas ao padrão de desenvolvimento dependente e subordinado.

IHU On-Line – A esquerda latino-americana, especialmente a brasileira, baseia-se essencialmente num marxismo atravessado pela teoria da dependência? Como compreender essa leitura e quais seus limites e potências?
Carlos Eduardo Martins – A esquerda brasileira abandonou as questões estratégicas nacionais e as relativas à construção de um novo eixo geopolítico regional e mundial. Em grande parte, porque o PT no poder desistiu de um projeto de enfrentamento do protagonismo do capital financeiro e da transnacionalização da economia brasileira. Fez políticas desenvolvimentistas e sociais pontuais e graduais, mas que não enfrentaram o monopólio midiático, a apropriação do orçamento público pelos rentistas, o aumento do controle estrangeiro sobre a Petrobras, o monopólio das terras pelo agronegócio, a privatização dos serviços de educação, saúde e transporte e nem impulsionaram uma agenda de integração regional efetivamente robusta. Diante da ausência de enfrentamento das questões estruturais, houve um deslocamento para uma agenda liberal progressista em torno do tema das identidades, mas que, descolada dos temas estruturais, enfrenta limites para avançar mais profundamente, seja porque necessita de mais recursos econômicos, seja porque necessita de ampla mobilização para promover uma ofensiva mais contundente.

IHU On-Line – Como pode se compreender a ascensão de novas potências, como a China, sem romper a ordem capitalista? E que socialismo emerge dessa relação?
Carlos Eduardo Martins – A ascensão da China se dá dentro de uma ordem mundial dominante que é capitalista desde o século XVI e de forma mais ampla desde o século XIX, com a conquista europeia de Ásia e África. Não há como se ameaçar e romper com este comando antes da ascensão, do contrário o que se cria é isolamento. A ascensão chinesa revela o movimento de placas tectônicas que tendem a gerar conflitos amplamente explosivos na ordem econômica predominante. Vemos o agravamento das tensões entre Estados e China, com Trump , e os Estados Unidos cada vez mais na defensiva. O socialismo chinês é um socialismo em elaboração, tal como foram as experiências de socialismo no século XX. Representam uma versão ainda primitiva de socialismo que transita da escassez para abundância de forças produtivas. Neste processo de transição, há uma hibridização com o capitalismo que não retira o antagonismo do processo de ascensão chinesa e nem o comando interno. Estes conflitos pela hegemonia durarão ainda 20 ou 30 anos.

É bastante provável que a humanidade esteja entrando em uma era de caos sistêmico, como postulamos em nosso livro Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2011). A crise acelerada do liberalismo político no mundo, o abandono de política de hegemonia por parte dos Estados Unidos por uma política de força e o avanço da extrema direita indicam que uma ordem está chegando ao fim. Cabe às esquerdas se organizarem para tirar partido deste período. O socialismo só poderá ser aprofundado e desenvolvido com o avanço das lutas de classes e a capacidade de os trabalhadores dirigirem-na.

IHU On-Line – Em entrevista concedida à IHU On-Line em 2017, o senhor destaca que a esquerda brasileira sucumbe ao neoliberalismo e se afasta da teoria da dependência. Hoje, o senhor reforça essa sua análise ou já vivemos um outro momento? E, com base na conjuntura atual, quais as possibilidades de a esquerda promover uma retomada dessas teorias?
Carlos Eduardo Martins – A esquerda brasileira ainda vive os profundos efeitos do colapso do petismo. Divide-se entre o apego à liderança carismática de Lula , cada vez mais fantasmagórica e afastada de projetos concretos de governo e perspectivas de poder, o radicalismo ultraesquerdista estéril e a valorização das temáticas identitárias dentro de um contexto liberal que as desconecta das questões de classe. A esquerda brasileira não está compreendendo a natureza da mudança de regime político que está em curso no país. Saímos de um período de redemocratização inconcluso para um regime de exceção neofascista, ou fascista liberal, em que se estabelece uma ditadura civil do grande capital. Este regime não desmonta completamente o liberalismo político, mas o viola cirurgicamente em seus pontos mais vitais: no livre exercício da soberania popular, manifesto na deposição da presidente Dilma , na prisão e cassação dos direitos políticos de Lula e na criminalização das políticas sociais com a aprovação da lei que congela gastos primários por 20 anos. Trata-se de um regime muito similar ao que se estabeleceu na Itália entre 1922-24, quando Mussolini ascendeu à condição de primeiro-ministro e organizou eleições pluripartidárias sem romper com a legalidade liberal, mas submetendo-a à violência e ao despotismo para que se tornasse uma superestrutura de fachada. A razão pela qual o capitalismo brasileiro mantém esta formulação é a de impedir a criação de um monopólio político que possa rivalizar com o monopólio exercido pelo grande capital na sociedade brasileira, e não por zelo à legalidade democrática.

O reencontro teórico com as formulações da teoria da dependência depende de um reencontro político com a criação de saídas para a crise brasileira, e isto implica em colocar a questão do socialismo dentro de uma problemática nacional envolvendo amplos setores sociais. A esquerda deve sair de uma posição de ajuste à ordem ou de sectarismo e voltar a fazer política de hegemonia. Isso implica em formular orientações estratégicas e táticas e começar do início, e não do final. Pleno emprego, desenvolvimento e democracia se tornaram palavras subversivas para a atual ordem burguesa. Isso exige enfrentar o domínio do capital financeiro sobre os processos de acumulação, democratizar o monopólio midiático e o Poder Judiciário. É necessário partir para reorganizar o movimento popular rumo a tarefas mais ofensivas.

IHU On-Line – Fala-se, no mundo todo, em esgotamento das esquerdas. No Brasil, a esquerda chegou ao seu limite? Por quê?
Carlos Eduardo Martins – Não creio. Chegou ao limite um tipo de esquerda e sua proposta gradualista de transformação. O capitalismo dependente continua cada vez mais desigual, e a superexploração se estende aos países centrais, gerando ensaios de respostas violentas pela direita, que atacam os imigrantes preservando o capital monopólico, seu grande responsável. A esquerda apostou numa versão compensatória do cosmopolitismo liberal e vê seus projetos perderem substância à medida que o capitalismo mundial, mas sobretudo o europeu e o estadunidense, perdem dinamismo. A recuperação europeia e estadunidense não impediu o crescimento da pobreza, cada vez mais associada à baixa remuneração dos empregos e não apenas ao alto desemprego.

É preciso que a esquerda recupere a ousadia, os projetos estratégicos, as mobilizações sociais e adote políticas universalistas como parâmetro, colocando apenas dentro destas as políticas focalizadas. É preciso também uma política para a juventude. É preciso descriminalizar o uso das drogas e dar uma solução à questão prisional e carcerária que afeta as maiorias pobres do Brasil e sua população preta e mestiça. É preciso descriminalizar o aborto. A esquerda limitada pelo neoliberalismo, pelo pensamento conservador católico ou neopentecostal, pelo pensamento que o golpe de 1964 legou às forças armadas ou restrita às negociações com o Congresso se esclerosou e tem pouco a dizer à população brasileira.

IHU On-Line – Como conceber uma reinvenção da esquerda? E quais as contribuições do marxismo nesse desafio?
Carlos Eduardo Martins – A reinvenção da esquerda no Brasil exige retomar o papel do Estado como produtor de bens e serviços estratégicos e o seu controle acionário sobre empresas chaves; sua projeção latino-americana e mundial; a vinculação das políticas identitárias às políticas universalistas. Precisamos montar um importante sistema de inovação, ciência e tecnologia baseado no uso de nossos recursos naturais, como a biodiversidade, reservas de hidrocarburos, de minerais estratégicos como o urânio e o nióbio. Para isso, é preciso parceria e cooperação internacional com os países da América Latina e aqueles que despontam como promotores de um novo eixo geopolítico internacional, tais como China, Rússia, Índia e África do Sul. É preciso ainda romper com a tutela de nosso Estado pelo capital financeiro, democratizando-o radicalmente e ultrapassando os limites autocráticos do liberalismo político e das formas neofascistas. É necessário ainda estabelecer também uma política de segurança e soberania alimentar, o que nos lança o desafio de democratizar a estrutura fundiária da sociedade brasileira. E não menos importante, é necessário orientar a universidade brasileira para sua missão pública e seu compromisso social, restabelecendo sua autonomia e soberania nacional diante do corporativismo privatista que as agências de fomento e os cortes orçamentários lhe impuseram.

Estas são questões que desafiam o marxismo brasileiro a encontrar respostas. Este deve romper com os vícios autoritários, elitistas e desnacionalizantes que o desenvolvimentismo assumiu durante a era Geisel e os governos militares e enfrentar o protagonismo ideológico do neoliberalismo em todas as suas formas: seja como ideologia empresarial e de Estado, seja como ideologia dos movimentos sociais de protesto, seja como ideologia de ascensão pessoal e empreendedorismo dos pobres.

IHU On-Line – Diante das transformações do capitalismo de hoje, da especulação financeira e das constantes transformações apoiada nas mudanças tecnológicas, quais as contribuições do marxismo?
Carlos Eduardo Martins – O marxismo deve analisar a natureza da financeirização do capitalismo contemporâneo e sua relação com a crise civilizatória do modo de produção capitalista; a extensão da superexploração aos países centrais e o caráter que assume no centro e na periferia no século XXI; o papel dos ciclos na definição de conjunturas internacionais e nacionais, em particular os ciclos sistêmicos, os de Kondratiev e os ciclos de entradas e saídas de capitais estrangeiros nos países dependentes; a crise do liberalismo político, o caos sistêmico a que se aproxima a ordem internacional e o recrudescimento do fascismo no século XXI, bem como as novas formas que assume; o caráter colonial e violento das estruturas de poder no capitalismo contemporâneo, denunciando o racismo, a heteronormatividade e promovendo sua descolonização e democratização; e ainda comprometer-se com a criação de uma cultura do bem-viver que reinscreva o ser humano em suas comunidades e nos ecossistemas, rompendo com o antagonismo e a solidão que fundamenta o mal-viver da cultura capitalista e seu apelo ao consumo como saída fictícia. Finalmente é papel fundamental do marxismo contribuir para reinvenção do socialismo no século XXI, comprometendo-o com uma democracia radical no plano local, nacional, internacional e mundial. ■

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