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Ricardo Machado
Segundo Carlos A. Gadea, as transformações culturais produzidas pelas manifestações construíram uma relação mais eclética que rompe com o esquerdismo governamental
Do ponto de vista econômico, Junho de 2013 mostrou que as estatísticas, às vezes, funcionam como ilusões de efeito quando assentadas sobre frágeis estruturas. Politicamente o que o movimento deixou evidente foi uma certa ilusão de pluralidade democrática. “Que hoje, praticamente, 14 milhões de brasileiros estejam no desemprego só é explicável porque se teria optado por desenvolver políticas assistencialistas eventualmente frágeis (se não forem acompanhadas de outras medidas mais globais e permanentes) em lugar de incorporar os mais vulneráveis em alguma engrenagem possível de produção econômica”, avalia Carlos A. Gadea, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “O ciclo político caracterizado pelos governos do PT teria, tão simplesmente, se caracterizado por uma perversa prática de consensos e de ‘pacto social’, levando a uma pacificação social ilusória”, complementa.
Se é verdade que a esquerda não compreendeu as mobilizações de Junho de 2013, a direita também ficou incógnita. “A esquerda não compreendeu, mas não só ela, sejamos sinceros. O sistema político não entendeu o que estava acontecendo. A Polícia tampouco. A presidenta, no seu momento, achou que era para se sentar e dialogar, sem antecipar que, justamente, Junho de 2013 era sinônimo de ‘fim do pacto’”, explica Gadea. É nesse sentido que o professor sugere que Junho de 2013 trouxe uma nova estética, mas sem definição clara. “Pode-se considerar que a virada estética pós-2013 é uma virada eclética e, assim, desafiadora da institucionalização de uma cultura popular via esquerdismo governamental”, pontua. Diante do transe das ruas e de seus efeitos posteriores, a política institucional abriu mão da reflexão e do senso crítico. “A realidade deve ser olhada e analisada com uma dose maior de pragmatismo, enquanto um fenômeno relacional, e não com um mapa teórico e ideológico. Falta sinceridade; sobram metarrelatos. Faltam coragem e autocrítica; sobra mecanismo de defesa”, completa.
Carlos A. Gadea é coordenador, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos. Pós-doutorado pela Universidade de Miami (Centro de Estudos Latino-americanos). Doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Recentemente foi professor visitante na Universidade de Leipzig (Centro de Estudos Ibero-americanos), Alemanha. É organizador e autor, entre outros livros, de Ciências sociais e sociedade: políticas e práticas sociais na contemporaneidade (São Leopoldo: Trajetos Editorial, 2017) e Fragmentos de la posmodernidad. Cultura, política y sociabilidad en América Latina (Havana, Cuba: TEMAS, 2017).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como compreender Junho de 2013 cinco anos depois?
Carlos A. Gadea – Em junho 2013 o Brasil perdeu sua inocência, e ingressou numa espécie de terapia constante na busca de um espelho que lhe possibilitasse “se compreender” minimamente. Há cinco anos de 2013, ainda não se conseguiu transcender suas implicações. Economicamente, o país foi aceleradamente descobrindo que as estatísticas, por momentos, são meras ilusões de efeito, e que sua fragilidade estrutural poderia implodir a qualquer momento. Que hoje, praticamente, 14 milhões de brasileiros estejam no desemprego só é explicável porque se teria optado por desenvolver políticas assistencialistas eventualmente frágeis (se não forem acompanhadas de outras medidas mais globais e permanentes) em lugar de incorporar os mais vulneráveis em alguma engrenagem possível de produção econômica. Políticas de assistência em casos específicos podem ser bem-vindas, mas não se podem converter em simples bandeira política que justifica o caráter popular de um governo; aliás, o 1% do orçamento dedicado, por exemplo, ao Programa Bolsa Família pode convencer, da sua virtude, unicamente os mais fanáticos.
Por outro lado, a ideia de que o consumo leva à possibilidade de uma ampliação da cidadania, e que elevando o conforto e a obtenção de certo padrão de vida material estaria garantido, por conseguinte, um capital cultural, simbólico e político acorde aos novos tempos, não resultou, da mesma maneira, empiricamente consistente. Inclusive porque esse consumo era sustentado a créditos, e com juros que logo se tornariam insustentáveis.
Politicamente, com 2013 veio à tona o descobrimento da crise de representação política. O Brasil descobriu que teria construído uma ilusão de vida democrática e plural quando, na realidade, o ciclo político caracterizado pelos governos do PT teria, tão simplesmente, se caracterizado por uma perversa prática de consensos e de “pacto social”, levando a uma pacificação social ilusória. O fato de a maioria dos mais ativos movimentos sociais ter se incorporado ao modelo político do ciclo petista não significa que as tensões sociais estivessem adormecidas. A esperança de que estes governos tiveram o caminho livre para a materialização das demandas fez com que a inquietação social fosse diminuindo, instaurando-se uma cultura política caracterizada, em primeiro lugar, pela reprodução de uma excessiva dependência da atuação das instituições ou organismos públicos (com o correlato de uma mentalidade “Estadocêntrica”) e, em segundo lugar, por uma conseguinte redução do embate político de setores da oposição do sistema político, e dos demais setores da própria sociedade, de certa maneira.
Com isso, descobriu-se que a corrupção não só seria uma prática social na busca por privilégios de grupo ou individuais, mas também que seria aquilo que teria permitido essa ilusão de consensos e a ausência de grandes conflitos, abafados pelas espúrias alianças entre o poder público e a atividade privada privilegiada. 2013 abriu a sociedade, aparentemente, fechada. Parafraseando o livro de Karl Popper , a sociedade aberta teve seus inimigos no ciclo político que levou aos acontecimentos de 2013 e 2014. Os efeitos residuais, e não menos importantes, dessa crise política são palpáveis quando se tornam legítimos no jogo das preferências eleitorais narrativas políticas de baixo nível de argumentação: o populismo à direita de Bolsonaro e o de esquerda do desintegrado lulismo são exemplos da hiper-realidade à brasileira de hoje. E culturalmente, junho de 2013 trouxe um verdadeiro carnaval estético. Carnaval não no sentido pejorativo a que possa se associar, mas sim no sentido da espetacularização, do exagero e da instauração de uma nova dinâmica mais assentada no conflito frontal. A cultura foi o âmbito que, autonomizando-se, libertou novas energias que terminariam impactando a política na sua fragilidade e vazio decorrente do ciclo político anterior: feminismos, antirracismos, políticas do corpo, sexualidade, são exemplos disso. Evidentemente, estes fenômenos foram efeitos, por vezes, de políticas de governo concretas, mas também de uma circulação, na sociedade, de pautas e demandas que foram se desenvolvendo como correlato ao esvaziamento da política tal qual espaço de dirimir conflitos. Os conflitos terminaram migrando, logo de 2013, para o âmbito da cultura.
IHU On-Line – Que mudanças estéticas foram produzidas na política brasileira após Junho de 2013? Como saímos de um cenário de multiplicidade e negação de lideranças para outro de polarização e messianismo (à esquerda e à direita)?
Carlos A. Gadea – Junho de 2013 trouxe uma nova estética, sem clara definição, mas, certamente, foi ao encontro de superar a hegemonia estética da esquerda melancólica à la Chico Buarque . Fora o significado cultural e estético do tropicalismo, Chico Buarque ou a liturgia das clássicas “músicas de protesto”, pode-se considerar que a virada estética pós-2013 é uma virada eclética e, assim, desafiadora da institucionalização de uma cultura popular via esquerdismo governamental. Por outro lado, não sei se se pode afirmar que existia um cenário de negação de lideranças. Vejo mais um cenário profundamente dependente das figuras que representam conduções políticas fortes: não esquecer que o lulismo tem, na sua carne, a semente do culto ao líder que “teria feito coisas para o povo”, esse mesmo povo que, provavelmente, migrou sua preferência de liderança para Bolsonaro. O que, sim, trouxe este processo é um aprofundamento desse modelo e a conseguinte polarização política sustentada em imaginários salvacionistas e messiânicos. Nessa polarização participam, desempenhando um papel interdependente, Bolsonaro e Lula , duas caras da mesma moeda. Não todos o compreendem assim, admito, mas não posso compreender a popularidade de Bolsonaro sem o anti-lulismo, nem a popularidade de Lula sem a construção de um cenário político de temor pelo suposto avanço da direita. Se um desaparece, o outro, provavelmente, também. A legitimidade de um está sustentada na figura do outro.
IHU On-Line – Como a esquerda institucional tem compreendido os movimentos autonomistas como as Jornadas de Junho de 2013, o Movimento Secundarista e a greve dos caminhoneiros? O que há de comum e de distinto entre esses fenômenos?
Carlos A. Gadea – A esquerda não compreendeu, mas não só ela, sejamos sinceros. O sistema político não entendeu o que estava acontecendo. A Polícia tampouco. A presidenta, no seu momento, achou que era para se sentar e dialogar, sem antecipar que, justamente, Junho de 2013 era sinônimo de “fim do pacto”. Era para não se dialogar que junho de 2013 surgiu. Junho de 2013 era o produto da ação em rede, horizontal, amorfo e, por momentos, de formas variadas. O ciclo político petista nos tinha acostumado a um exercício do poder em que se teria institucionalizado o protesto no formato que o próprio ciclo teria construído. O que surgia fora dele era imediatamente banido e deslegitimado. Era fascista, próprio da nova direita, coxinha, insensível com os pobres, autoritário, racista, machista, et cetera. Curiosamente, muitos começaram a fazer parte desse grupo de críticos que tiveram que se esconder para não ser definidos por tais adjetivações. Novamente, a ideia era hegemonizar o discurso da crítica, e paradoxalmente isso se fazia desde o governo e os governistas.
IHU On-Line – Em que Junho de 2013 se mantém criativo e em que se manifesta como uma força destrutiva e de desagregação?
Carlos A. Gadea – Toda emergência social tem um caráter construtivo e destrutivo simultaneamente. Mas incluir fenômenos entendidos como destrutivos ou construtivos levam a um inevitável juízo de valor. Vencendo isto, e não querendo parecer legislador do valor, 2013 desagregou aquilo que era ilusão de agregação e foi muito criativo no que respeita a uma sociedade que se politizou na pancada, no grito, na rua, na heterogeneidade de apresentações. Foi criativo ao instituir uma discursividade com ausência de narrativa e metarrelato. Certamente, 2013 é visível em situações como a mobilização de caminhoneiros recente, e no seu desfecho também. Sem lógica e sem possibilidade de compreender tal qual uma mobilização social dos anos 1960, 1970 e 1980.
IHU On-Line – De onde vem a dificuldade de análise conjuntural? Trata-se de um esgotamento das categorias políticas do século 20 ou de uma paixão exacerbada pela institucionalidade política?
Carlos A. Gadea – Evidentemente que sim. Esgotamento de categorias de análises e paixão exacerbada. A realidade deve ser olhada e analisada com uma dose maior de pragmatismo, enquanto um fenômeno relacional, e não com um mapa teórico e ideológico. Que é justo? Que é melhor? Ou para onde estamos indo? Quando alguns, por exemplo, falam do crescimento político da direita e de pautas conservadoras no país, eu sempre me pergunto onde estavam vivendo nos últimos 30 anos. Ou como, de um dia para outro, na explicação de um suposto “golpe” político, a realidade teria mudado tanto? Falta sinceridade; sobram metarrelatos. Faltam coragem e autocrítica; sobra mecanismo de defesa.
IHU On-Line – Para onde vai Junho de 2013? O que podemos esperar daqui para frente?
Carlos A. Gadea – O que esperamos é que outubro de 2018 nos dê a possibilidade de um começo político e econômico que contemple a maioria dos brasileiros. Junho de 2013 não vai para lugar nenhum, porque foi um acontecimento saturado de sentido e sem um caminho traçado a priori. A sociedade se polarizou, está mais conflitiva, menos tolerante, de todas as partes envolvidas; não alguns mais e outros menos. Fake news é o exemplo disso: como a realidade parece ter se ausentado, o hiper-real me permite manifestar na frente da Polícia Federal gritando “Lula livre”, permite-me levantar nos ombros Bolsonaro em algum aeroporto do país, admitir que o Papa Francisco é pop porque um vídeo o mostra dançando cumbia, e por aí vai. Mas um fio de realidade entra de penetra e nos lembra de 2013 como, paradoxalmente, um acontecimento onde alguma coisa aconteceu, enquanto hoje esses exemplos são acontecimentos em que não acontece nada; só a vontade, por antecipação, de que aconteça. ■
Leia mais
- Breves e rápidos comentários sobre as eleições primárias parlamentares na Argentina. Artigo de Carlos A. Gadea publicada nas Notícias do Dia, de 17-8-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU;
- Ernesto Laclau e a “razão populista”. Artigo de Carlos A. Gadea publicado na revista IHU On-Line, nº 508, 7-8-2017;
- Os “filhos de Marx e da Coca-Cola”: os Estudos Culturais e a sua aliança populista. Artigo de Carlos A. Gadea publicado nas Notícias do Dia, de 28-11-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU;
- Manifestação jovem de Porto Alegre. Uma crítica à instrumentalização da vida. Entrevista especial com Carlos A. Gadea publicada nas Notícias do Dia, de 11-4-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU;
- Os movimentos sociais e o lulismo. Entrevista especial com Carlos A. Gadea publicada nas Notícias do Dia, de 27-11-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.