Edição 521 | 07 Mai 2018

Legado mais evidente de 68 foi o deslocamento da liderança estudantil para a luta armada no Brasil

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Vitor Necchi

Para Maria Paula Araújo, trata-se de um ano mítico porque explodiram revoltas de jovens, de artistas e do operariado em vários lugares do mundo

Além da evidência decorrente da efeméride, os 50 anos dos acontecimentos relativos a 1968 ganham mais relevância por conta do atual momento “tão ruim de avanço das forças conservadoras”, com a extrema-direita ganhando espaço, observa a historiadora Maria Paula Nascimento Araújo. “O mundo passa por uma experiência tão conservadora que me parece muito natural que 68 galvanize, mais do que nunca, essa metáfora da revolução, da utopia.”

Araújo, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, afirma que 1968 é um ano mítico e simbólico porque explodiram revoltas de jovens, de artistas e do operariado em vários lugares do mundo e porque se tornou uma referência para muita gente que teve a juventude marcada por esse movimento. No entanto, a professora entende que não houve um 1968, mas vários, com conteúdos diferentes.

Na França, havia abundância e se demandava “o impossível, a imaginação no poder”. Nos Estados Unidos, “apesar de ser um país de abundância, o movimento de 68 tem uma radicalidade muito grande porque uma parte dele se associou às lutas dos negros por direitos civis”, como os Panteras Negras e a juventude universitária se recusando a ir para a Guerra do Vietnã.

No Brasil, por conta da ditadura militar, novas pautas demoraram a chegar. O AI-5, em 1968, proibiu manifestações e tolheu a ação política. “O que fazer com aquela energia toda?”, questiona, em referência aos estudantes que tomaram as ruas. “Essa energia gigantesca foi sufocada. Não é à toa que a militância de luta armada se formou com jovens universitários e secundaristas.” Araújo destaca que “o legado mais evidente na época, no final de 68 e início de 69, foi o deslocamento da liderança estudantil das ruas para a luta armada”.

Maria Paula Nascimento Araújo é doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ, mestra em História pela Universidade Federal Fluminense - UFF e graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. É professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que 1968 é um ano mítico e simbólico? Por que se tornou sinônimo de juventude e rebeldia?
Maria Paula Nascimento Araújo – Porque foi um ano em que, em vários lugares do mundo, explodiram revoltas de juventude, com muita força do movimento estudantil, de jovens artistas e também do operariado. 1968 não foi apenas um movimento de estudantes, mas teve muita força dos jovens, então acabou ficando mítico. Também porque é uma referência para muita gente que teve a sua juventude marcada por esse movimento. Foi um mito construído porque permitia essa articulação no mundo.

IHU On-Line – Fala-se em 1968 como se fosse apenas um, no entanto, não seria mais correto pensar na ocorrência de vários 1968?
Maria Paula Nascimento Araújo – Este é um ponto que eu defendo, sem dúvida. Até porque os movimentos que aconteceram foram diferentes. Há inclusive alguns autores que ressaltam essa diferença, assim como outros ressaltam as semelhanças. Podemos analisar tanto pelas diferenças quanto pelas semelhanças, e ambas as situações são interessantes para um historiador. Octavio Paz faz uma distinção dos movimentos de 68 que apareceram em países mais desenvolvidos, como na Europa, que ele chama de movimentos da abundância, e outros, como no México e no Brasil, que são movimentos surgidos em países ditatoriais, marcados pela escassez de liberdades. Há tipologias, como essa, e há outras coisas que podemos observar a partir dos próprios movimentos. Por exemplo: 68 em Paris foi um movimento muito forte de estudantes que se aproximaram de operários de algumas fábricas, mas eles reivindicavam coisas como a imaginação no poder, diziam “você pode desejar o impossível” – e por isso Octavio Paz falava em movimentos da abundância. Podiam reivindicar isso porque já tinham coisas básicas, como uma democracia mais consolidada. Por ter abundância, podiam reivindicar o impossível.

No México, por exemplo, o movimento teve outra conotação. Não era uma ditadura, mas o país vivia um regime mais autoritário, então reivindicavam as liberdades que, ao longo dos anos, o México tinha esvaziado. Lá 68 ficou muito marcado por um episódio de muita violência, conhecido por Massacre de Tlatelolco . O exército e atiradores estavam em locais estratégicos e acabaram com uma manifestação estudantil com muita violência.

68 tem grandes símbolos. Maio, na França, é um deles, mas a Primavera de Praga é outro, totalmente diferente. Num certo sentido, Octavio Paz coloca esses movimentos que surgiram no mundo socialista também como de rebelião em conjuntura de escassez. Eram países dominados pelo stalinismo que não primavam por liberdades democráticas. A Primavera de Praga teve uma simbologia enorme. As pessoas acharam na época que de dentro do mundo socialista surgiria uma nova revolução demandando liberdade, valorização dos seres humanos e suas subjetividades. A Primavera de Praga foi um símbolo muito grande, mas reprimido pelos tanques soviéticos.

Diferentemente da França – onde, no quadro da abundância, demandavam o impossível, a imaginação no poder –, nos Estados Unidos, apesar de ser um país de abundância, o movimento de 68 tem uma radicalidade muito grande porque uma parte dele se associou às lutas dos negros por direitos civis, como os Panteras Negras , que têm uma força grande nisso. E tinha um movimento radical da juventude universitária se recusando a ir para a Guerra do Vietnã , rasgando as cartas de convocação. Era uma radicalidade grande, mas diferente da que houve no México e no Brasil. Uma radicalidade, eu diria, dentro da conjuntura de um país abundante, mas que quer consolidar sua dimensão imperialista – foi exatamente isso que caracterizou o movimento de 68 nos Estados Unidos. Não foi em todo o país, concentrou-se principalmente em Nova York, Columbus, São Francisco e Washington.

A ebulição que houve nesse período foi muito grande, por parte dos movimentos de contestação à Guerra do Vietnã, dos movimentos que incitavam a desobediência civil para não ir à guerra, dos movimentos negros nas universidades. Só que em 68, nos Estados Unidos, ainda tem outra vertente que é o movimento hippie. O jornalista Paul Berman , no livro A tale of two utopias [Encontro de duas utopias], diz que nos Estados Unidos, na década de 60 – que culmina, mas não se restringe a 68 –, esse movimento teve, de um lado, a radicalidade da contestação da Guerra do Vietnã e do movimento negro, e do outro, o movimento hippie, paz e amor, espiritualidade, a vida em comunidade, os festivais de rock.

Algumas vezes, nos próprios festivais de rock, havia pontes entre esses dois movimentos, quando, por exemplo, Jimi Hendrix fez o solo de guitarra tocando o Hino dos Estados Unidos e termina imitando o som de bombardeios. Ele conjugava tudo: um festival de rock, as pessoas estavam acampadas, dormindo juntas, era uma manifestação de amor livre. Essa música é um ato político. Um jovem músico do rock, negro, que faz uma teatralização da contestação à Guerra do Vietnã.

Vamos ao Brasil, com 68 marcadamente estudantil, mas não apenas. Houve as greves operárias de Osasco, São Paulo, e de Contagem, em Minas Gerais. Temos que lembrar que no Brasil, em 68, havia uma face estudantil e outra operária. Os agentes políticos se contrapunham à ditadura militar.

Esses exemplos demonstram a diversidade de 68. E tem outra questão: não aconteceu tudo em 68. As coisas foram acontecendo em 66, 67, 68 e 69. Na Argentina, o 68 aconteceu em 69, que foi o levante estudantil e operário – assim como na França – na cidade de Córdoba, e ficou conhecido como El Cordobazo . Houve ocupações de fábricas e de universidades, greves estudantis.

1968 é um ano chave, mítico e metáfora. E é um ano síntese, porque nem tudo aconteceu em 68. Começou um pouco antes e depois segue para a frente. Um historiador da Unicamp, o Marcelo Ridenti , comenta que o mais correto, historiograficamente, seria falarmos na época de 68.

Todos esses exemplos – México, Brasil, Praga, Paris, algumas cidades dos Estados Unidos – mostram uma diversidade muito grande. Em Praga, tem uma contestação ao regime soviético. Na França, em Paris, as manifestações têm um tom mais anárquico, libertário. Os militantes do Partido Comunista Francês criticaram muito 68, viam como se fosse uma revolta juvenil, inconsequente, não comunista.

São vários tipos de movimento, com conteúdos diferentes. Por isso concordo com você: o mais correto é chamar de as manifestações de 68. Depende muito da abordagem que o pesquisador, o historiador, o jornalista queira dar. Se for discutir os conteúdos políticos, é obrigatório destacar as diferenças. Em certo sentido, essas diferenças talvez sejam o mais interessante, pois mostram a pluralidade.

IHU On-Line – Nos Estados Unidos, em 1968 se observou a mobilização de negros, mulheres e gays. Não é curioso que na França mulheres e negros tiveram papel secundário, como bem mostra João Moreira Salles em seu documentário No intenso agora?
Maria Paula Nascimento Araújo – Sim. Na França, inclusive, as mulheres falam muito nisso, que o movimento feminista, como tal, irrompe depois de 68, inclusive com essa constatação: onde estavam as mulheres, por que não estavam na linha de frente? Por que, apesar de toda a radicalidade cultural e ideológica proposta, era proposta por rapazes bem vestidos, de terno? Depois disso, começa a surgir na França um movimento de mulheres.

IHU On-Line – A efervescência e a intensidade dos acontecimentos de 1968 tiveram que efeito no Brasil? A ditadura tolheu o alcance das pautas, já que havia necessidade de combatê-la?
Maria Paula Nascimento Araújo – As novas pautas demoraram a chegar ao Brasil. Em 66, 67 e 68, houve um movimento fortíssimo de estudantes nas ruas. Esses anos despertaram uma grande energia nas pessoas, grande vontade de participar, de lutar, de enfrentar a ditadura, reivindicar liberdade, mas tudo foi absolutamente ligado às questões das liberdades democráticas. As novas pautas só vão surgir depois. O ano de 68 termina com o AI-5 , que proíbe manifestações, liberdade de expressão, proíbe tudo. Tolhe a ação política.

O que fazer com aquela energia toda? Lideranças, jovens, estudantes universitários e secundaristas foram para as ruas reivindicar liberdade. Essa energia gigantesca foi sufocada. Não é à toa que a militância de luta armada se formou com jovens universitários e secundaristas. A liderança estudantil universitária – e não a massa, o Daniel Aarão Reis insiste muito, a massa simplesmente viveu o recuo – foi constituir a luta armada. No Brasil, um dos legados de 68 foi a radicalização por meio da luta armada. O outro legado, que apareceu com mais força, foram as novas pautas. Movimentos de mulheres, negro – embora tenha demorado mais –, comportamental. Mas o legado mais evidente na época, no final de 68 e início de 69, foi o deslocamento da liderança estudantil das ruas para a luta armada.

IHU On-Line – Que perspectiva preponderou nos eventos e publicações relativos aos 40 anos de Maio de 68?
Maria Paula Nascimento Araújo – Em 2008, os principais livros escritos por militantes ou jornalistas que viveram o 68 tiveram um cunho muito mistificador, laudatório. Este foi o tom que prevaleceu. Os atores e as experiências foram vistos de maneira muito romantizada, fazendo um amálgama de coisas que eram diferentes. Mas entendo isso. Para a geração que viveu 68, no mundo todo, aqueles acontecimentos são centrais em sua vida. Entendo que as pessoas romantizem.

Nos seminários e nas publicações universitárias de pesquisa, feitas por historiadores e cientistas sociais, o tom foi diferente. Eles têm uma postura crítica em relação à memória, à glorificação e à romantização.

Quem trabalha com a história do tempo presente sabe que ela lida o tempo todo com a memória que romantiza, ou vitimiza, ou glorifica, mas muitas vezes parte de uma lembrança que, para o bem ou para o mal, é afetiva. Nos seminários e publicações que fazemos sobre história do tempo presente, sempre tem um pouco desse choque, desse confronto. Há quem diga “vocês não estiveram lá, não podem saber o que é”, então respondemos “estamos analisando do ponto de vista do historiador”. É comum um confronto em relação às formas de ver.

IHU On-Line – E agora, nos 50 anos, o que se percebe?
Maria Paula Nascimento Araújo – Ainda não sei. Ainda não está definido. Vamos fazer um seminário na UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro]. Acho inevitável haver as duas vertentes, tanto a pessoal, da glorificação, quanto a mais crítica e questionadora. Queremos dar uma ótica a partir do mundo, tanto que estará vindo gente de países que usualmente não vêm, por exemplo, o 68 na China, no Japão, na África. Até para discutir se foi mesmo um movimento internacional, quais as diferenças e semelhanças.

De qualquer forma, estamos vivendo no mundo um momento tão ruim de avanço das forças conservadoras de direita. Não é apenas no Brasil, é também na América Latina e na Europa, com a extrema-direita ganhando espaço. Há uma violência enorme contra os refugiados, e a Europa não está conseguindo responder. O mundo passa por uma experiência tão conservadora que me parece muito natural que 68 galvanize, mais do que nunca, essa metáfora da revolução, da utopia.

IHU On-Line – O que a senhora propunha ao afirmar que, em vez de celebrar ou comemorar, talvez fosse importante desconstruir 68?
Maria Paula Nascimento Araújo – Ao desconstruir, podemos dar destaque às diferenças, para entender e pensar em um 68 global, da transformação total da utopia. Em cada país foi de um jeito, porque outras pessoas pensaram diferente de Paris. É importante desconstruir para entender as duas utopias que o Berman fala. Quando se insiste muito nessa ideia global, que é celebrada, perdemos justamente as diferenças. E são sempre as diferenças e especificidades que nos permitem entender mais a história.

IHU On-Line – As revoltas estudantis foram uma das marcas de 1968. A recente ocupação de escolas no Brasil pelos próprios estudantes animou pessoas de idade mais avançada. Foi uma espécie de nostalgia de 68?
Maria Paula Nascimento Araújo – As experiências das ocupações foram maravilhosas. Animaram as pessoas talvez por nostalgia, mas principalmente por reconhecer a novidade que isso significou para o Brasil. No Rio de Janeiro, não tínhamos isso. Não foi tão marcado como na França, mas é diferente. As ocupações no Brasil tinham a ver com o fato de o aluno ser pobre, carente, sem condições de estudos. Foi uma novidade espetacular, fantástica, e as pessoas puderam fazer a comparação. ■

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