Edição 521 | 07 Mai 2018

68 foi a maior greve geral selvagem da história da França, mas saiu vencida

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Vitor Necchi

Para Erick Corrêa, o significado mais profundo da crise que explodiu há 50 anos reside no rechaço ao capitalismo e às principais formas partidárias e sindicais

A evocação dos 50 anos do movimento que inflamou a França permite que se estabeleça uma relação com a atualidade brasileira, “após cinco anos de uma singular contrarrevolução sem revolução, em resposta às jornadas de junho de 2013”. Para Erick Corrêa, “assim como na França em 68, o trabalho de desqualificação e de deslegitimação das posições da esquerda revolucionária durante e depois da crise, realizado tanto por gaullistas como por comunistas-stalinistas, não se distancia muito do trabalho realizado no Brasil, sobretudo entre 2013 e as jornadas anticopa de 2014, feito por petistas e antipetistas, contra os movimentos sociais de base autônoma, como o Movimento Passe Livre ou as federações anarquistas e demais frentes populares independentes de partidos e sindicatos”.

Nas duas situações, “tais posições de certa maneira prepararam o terreno para uma contraofensiva da direita que, em simbiose com os aparatos estatais de controle e repressão, depois atingiria frontalmente todo o campo da esquerda”, avalia Corrêa, que identifica um risco: “No plano histórico, quase sempre que as posições da direita e da esquerda reformista se uniram no ataque às correntes minoritárias e revolucionárias do movimento operário, o fascismo avançou e o autoritarismo estatal instaurou-se”.

Ao refletir sobre os episódios transcorridos há meio século, Corrêa, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, avalia que “na radicalização de setores minoritários do meio estudantil, principalmente em Strasbourg, Nantes e Nanterre, que reside o significado mais profundo da crise que explode em Maio-Junho de 68: um duplo rechaço, simultaneamente dirigido ao sistema capitalista e às principais formas partidárias e sindicais (social-democrata ou bolchevique) de organização e representação política e econômica das classes trabalhadoras”.

O que ocorreu naquele ano transformou a realidade: “A crise redefiniu a dinâmica da modernização capitalista e o panorama social e político francês das décadas seguintes”. Para Corrêa, “68 foi a maior greve geral selvagem da história da França, mas saiu vencida”, e essa derrota “abre o caminho para as reestruturações produtivas posteriores”.

No Brasil, a resistência à ditadura instaurada em 1964 impactou o teor e o rumo da efervescência de 1968. O regime de exceção colocava os contestadores “diante de um horizonte de expectativas historicamente mais rebaixado do que aquele aspirado pelos contestadores de um país como a França, que gozava de liberdades democráticas mínimas (todavia ausentes no Brasil), além de um vigoroso Estado de Bem-Estar Social, após cerca de 20 anos de glórias econômicas e expansão capitalista na Europa ocidental”.

Erick Corrêa é graduado, mestre e doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista - Unesp. Sua dissertação é intitulada Guy Debord: crítica e crise da sociedade do espetáculo. Organizou, com Maria Teresa Mhereb, o livro 68 – como incendiar um país (São Paulo: Ed. Veneta, 2018). Atualmente desenvolve sua tese sobre a revolução portuguesa de 1974-75.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que forças e pensamentos políticos compunham o cenário que antecedeu o Maio de 68 na França?
Erick Corrêa – No campo intelectual de esquerda, o marxismo francês da época era marcado por uma vitalidade conferida pelo questionamento, portado por correntes heterodoxas, ao conformismo e à ortodoxia teórica patrocinada pelo Partido Comunista Francês - PCF, bem como por uma redescoberta criativa dos textos de Marx que sublinham a alienação e a subjetividade revolucionária, como era o caso de Henri Lefebvre , André Gorz e Jean-Paul Sartre . No plano político, o PCF havia apoiado a repressão dos stalinistas na revolução húngara de 1956 e se recusado a aprofundar a desestalinização da organização, mesmo após a morte de Stalin e do Relatório Khrushchov sobre os crimes do stalinismo, além de prosseguir com o expurgo de suas correntes radicais, o que explica em parte a sensibilidade anticomunista de grande parte dos protagonistas de 68, sobretudo dos mais jovens (entre estudantes e trabalhadores).

As organizações mais originais deste campo à esquerda do PCF eram minúsculas, como Informação Correspondência Operária (ICO, 1958-73) e a Internacional Situacionista (IS, 1957-72), organização que realizou com êxito um esforço de conciliação entre a crítica da cultura e a crítica da economia política. Havia também diversos grupos da extrema-esquerda, de orientação pró-chinesa (maoísta) ou trotskista.

Algumas revistas, como Arguments e Socialisme ou Barbarie, conduziam um trabalho de “revisão” do marxismo. As teses conselhistas de Rosa Luxemburgo e de Anton Pannekoek reencontravam um solo fértil para uma retomada dos princípios de autonomia decisória e de controle da produção pelos próprios trabalhadores. Nas antípodas do pensamento heterodoxo, Louis Althusser conduzia uma equipe de jovens pesquisadores encarregados de esterilizar o marxismo de qualquer traço de “ideologia”.

No campo da sociologia, especificamente nos anos que antecedem a explosão revolucionária de 1968, Paris contava com pelo menos quatro importantes revistas científicas: a Sociologie du travail, animada por Georges Friedmann e de cujo comitê de redação participariam, entre outros, os sociólogos Michel Crozier , Jean-Daniel Reynaud , Alain Touraine e Jean-René Tréanton ; a Revue française de sociologie, cuja chefia de redação era assinada por Edgar Morin ; a Archives européennes de sociologie, dirigida por Raymond Aron e de cujo comitê de redação se destacariam Croizier (França), Ralf Dahrendorf (Alemanha) e Thomas Bottomore (Grã-Bretanha); além da Communications, na qual participariam nomes como Roland Barthes e Morin.

No decurso de 1968, G. Friedmann, Morin e Touraine se destacariam nas páginas do Le monde como os principais articulistas franceses da crise sociopolítica deflagrada naquele ano. Dentre as editoras que acolheram em seus catálogos e coleções as principais obras do pensamento sociológico francês daquele período, destacam-se a Plon, a Éditions du Seuil e a Minuit. Elas publicariam O Fenômeno burocrático (1963), de Croizier, e Os herdeiros, os estudantes e a cultura (1964), de Bourdieu e Passeron.

À direita e à extrema-direita do espectro sociopolítico, entre gaullistas moderados e monarquistas radicais, havia organizações, como o grupo Occident, além de revistas como Rivarol ou Restauration Nacionale.

IHU On-Line – Antes de o movimento eclodir, havia prenúncios dele?
Erick Corrêa – Sim, certamente a agitação no meio estudantil francês já apresentava sinais de radicalização pelo menos desde 1966. Naquele ano, um grupo de estudantes da Universidade de Estrasburgo, por exemplo, associou-se à Internacional Situacionista para denunciar uma crise geral do meio estudantil francês, em todos os seus aspectos (econômico, político, psicológico, sexual e intelectual), propondo, por sua vez, alguns meios revolucionários de resolvê-la. Voltada contra o reformismo da principal entidade representante do sindicalismo estudantil francês, a Unef (União Nacional dos Estudantes da França, equivalente à UNE brasileira), tal crítica se fazia desde uma perspectiva revolucionária, de inspiração conselhista e situacionista. A Associação de Estrasburgo chegou a apresentar uma moção de dissolução da Unef, aprovada pela Associação de Nantes, na assembleia geral da entidade, em janeiro de 1967.

Em março daquele ano, estudantes do sexo masculino, da faculdade de Nanterre, ocuparam os prédios de moradia destinados exclusivamente às estudantes (homens eram até então proibidos de visitar os pavilhões femininos, sendo permitido apenas o contrário). O diretor da faculdade convocou rapidamente as forças policiais para realizarem a desocupação dos pavilhões femininos. A polícia estava proibida de intervir no perímetro universitário desde a Idade Média. A partir de 1968, essa prática passa a acontecer normalmente na França.

Houve ainda uma série de greves parciais de trabalhadores ao longo dos anos 1960, de diferentes setores da economia, como a greve de fevereiro e março de 1966, na fábrica da Rhodiacéta, em Besançon. Mas é na radicalização de setores minoritários do meio estudantil, principalmente em Strasbourg, Nantes e Nanterre, que reside o significado mais profundo da crise que explode em maio-junho de 68: um duplo rechaço, simultaneamente dirigido ao sistema capitalista e às principais formas partidárias e sindicais (social-democrata ou bolchevique) de organização e representação política e econômica das classes trabalhadoras.

IHU On-Line – A intelectualidade francesa foi pega de surpresa pela explosão das ruas?
Erick Corrêa – Sim, com exceção dos situacionistas. Um episódio é exemplar nesse sentido. Em 1967, Henri Lefebvre publicou na França Posição contra os tecnocratas, um livro de crítica sociológica ao campo tecnocrático, mas no qual, a certa altura, o então professor de sociologia de Nanterre debocha dos situacionistas justamente por acreditarem e difundirem a ideia de que uma conjuntura insurrecional como aquela ocorrida em Paris, em 1871, estava prestes a retornar à França...

Entre os “teóricos críticos” (ou “marxistas ocidentais”), os filósofos alemães Herbert Marcuse e Theodor Adorno também não apostavam, em suas principais obras do período imediatamente anterior a 1968 (respectivamente, O Homem Unidimensional e Dialética Negativa, ambos publicados em 1966), em nenhuma forma de irrupção revolucionária das contradições sociopolíticas engendradas pelo capitalismo do segundo pós-guerra, dado que as classes que encarnavam a sua negação haviam sido, de acordo com eles, totalmente integradas ao sistema.

Já o situacionista Guy Debord , em seu livro A sociedade do espetáculo, publicado em novembro de 1967, via na “recusa da antiga política especializada, da arte e da vida cotidiana”, presente em movimentos de contestação radicais espalhados pelo mundo àquela altura, “o prenúncio do segundo assalto proletário contra a sociedade de classes” (§ 115).

IHU On-Line – E os partidos e políticos, como reagiram?
Erick Corrêa – Em favor da restauração do Estado, do início ao fim da crise. Desde o período da Resistência ao regime de colaboração de Vichy (1940-44), o PCF detinha uma influência muito grande sobre a vida cultural e política da França, que até a fundação do Partido Socialista - PS, em 1971, contava com uma esquerda não comunista pequena e dividida. Grosso modo, as posições do PCF se resumiram, no início da crise, a apoiar vagamente a solidariedade entre professores, estudantes e operários, mas condenando sempre a ação dos grupos esquerdistas, como o 22 de Março, a IS, dentre outros grupos de orientação anarquista ou conselhista, além daqueles comitês de trabalhadores formados espontaneamente, em bases autônomas a partidos e sindicatos que, segundo os comunistas, estavam jogando o jogo do governo, tomando-as como elementos provocadores a serviço da burguesia.

Ao final da crise, em junho, os comunistas do PCF pactuariam os chamados Acordos de Grenelle que, costurados pelo primeiro-ministro Georges Pompidou , a burguesia, o Ministério do Trabalho e a Confederação Geral do Trabalho - CGT sob seu controle, impôs ao movimento grevista um duro golpe em suas aspirações iniciais, canalizando seu potencial revolucionário para vias reformistas. Essa situação vai favorecer um novo equilíbrio de forças na esquerda francesa, que a partir de 1970 passa progressivamente a se deslocar em favor dos socialistas.

IHU On-Line – Jovens e operários franceses tentavam combater o autoritarismo do Estado, dos partidos políticos e dos sindicatos. Houve transformação nessas três formas de poder e de representação?
Erick Corrêa – Sem dúvida, a crise redefiniu a dinâmica da modernização capitalista e o panorama social e político francês das décadas seguintes. O sucessor imediato de De Gaulle, Georges Pompidou, procurou atenuar o dirigismo do general e moderar o estatismo vigente na chamada modernização gaullista (1945-68), dando ao empresariado mais liberdade de manobra nos mercados domésticos e externos.

As demandas gestadas na dinâmica do processo revolucionário, como das mulheres e dos novos setores do trabalho qualificado por maior autonomia e liberdade, ignoradas pelas rígidas instituições partidárias e sindicais da esquerda comunista e socialista, acabaram sendo incorporadas e neutralizadas pelo próprio capitalismo vitorioso, na forma de uma inserção subordinada da mulher no mercado de trabalho e de uma desregulamentação predatória das legislações trabalhistas. Uma tese desenvolvida de certa maneira tanto pelo português João Bernardo em Economia dos conflitos sociais (1991), como também pelos franceses Luc Boltanski e Ève Chiapello em O novo espírito do capitalismo (1999).

IHU On-Line – No Brasil, em que as pautas da mobilização se aproximavam e se afastavam do movimento francês?
Erick Corrêa – A resistência à ditadura civil-militar instaurada em 1964 colocava a geração de contestadores brasileiros de 68 diante de um horizonte de expectativas historicamente mais rebaixado do que aquele aspirado pelos contestadores de um país como a França, que gozava de liberdades democráticas mínimas (todavia ausentes no Brasil), além de um vigoroso Estado de Bem-Estar Social, após cerca de 20 anos de glórias econômicas e expansão capitalista na Europa ocidental.

Aqui, 68 tem início em fevereiro, com a agitação dos secundaristas cariocas da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço - Fuec. A luta contra o aumento do preço da refeição culminaria na morte do estudante Edson Luís , após uma ação policial de repressão política. A repercussão de sua morte rapidamente se espalha por todo o país. Em março, ocorrem as primeiras greves operárias desde 1964, em Contagem (MG) e Osasco (SP); em junho, no Rio de Janeiro, ocorrem os episódios da “Sexta-feira Sangrenta” e a subsequente “Passeata dos Cem Mil”.

No segundo semestre, os militares iniciam uma contraofensiva inicialmente dirigida a operários, professores, estudantes, parlamentares, jornalistas e artistas que se opunham ao regime. Em julho, sob a capa paramilitar do Comando de Caça aos Comunistas - CCC, invadem e espancam atores da peça teatral Roda viva, de Chico Buarque (montada por Zé Celso Martinez Corrêa ), e destroem a ocupação estudantil do prédio da Filosofia da Universidade de São Paulo - USP, na Rua Maria Antônia (com saldo de mais uma vítima fatal). Em agosto, invadem o campus da Universidade de Brasília - UnB para aterrorizar professores e estudantes, numa operação conjunta das forças de repressão (Polícia Militar, Dops, Polícia Federal, SNI e Polícia do Exército). Em outubro, invadem o 30° Congresso da União Nacional dos Estudantes - UNE e prendem todos os seus dirigentes, em Ibiúna, interior de São Paulo. Em dezembro, desferem o golpe final, com a decretação do Ato Institucional N° 5 - AI-5 , que daria início aos chamados “anos de chumbo”.

Há, portanto, uma dinâmica de aproximação e afastamento entre as demandas brasileiras e francesas de 68. As formas de governo mais ou menos democráticas, mais ou menos autoritárias, vigentes na França e no Brasil em 1968, representavam, grosso modo, forças complementares de um mesmo sistema complexo, o capitalismo (ou espetáculo, nos termos situacionistas). Tal dinâmica resultava, portanto, das contradições sociais, políticas e econômicas estruturais do sistema, globalmente agudizadas em 68. Nessa perspectiva sistêmica, as revoluções de 1968 portavam um mesmo sentido antissistêmico, o que fazia delas partes constituintes de um mesmo “acontecimento histórico-mundial” (Cf. Immanuel Wallerstein. Os limites dos paradigmas do século XIX), como 1848.

IHU On-Line – Os estudantes franceses criaram slogans marcantes e tingiam muros com suas frases de efeito. A disputa narrativa e as estratégias discursivas adotadas tiveram que importância para a expansão do movimento e para a memória que se fez dele?
Erick Corrêa – A produção de grafites, cartazes e panfletos, de informação ou propaganda política, floresce especialmente em momentos de levantes revolucionários. Em 68, mais especificamente no 68 francês, tal produção gráfica tornou-se mesmo indissociável do imaginário sobre aquelas lutas. Grande parte dessa intensa literatura/iconografia revolucionária foi, inclusive, produzida em gráficas ocupadas por trabalhadores em greve, que desviavam o uso de seu maquinário para fins revolucionários. Os situacionistas inovaram neste aspecto da propaganda política, ao desviarem os textos dos balões de histórias em quadrinhos de super-heróis, dando a elas uma nova significação (revolucionária). Os slogans e palavras de ordem pichados pelos muros e paredes de Paris exprimiam uma variedade incrível de orientações ideológicas, em sua maioria de inspiração socialista e libertária: anarquistas, maoístas, guevaristas, situacionistas e até surrealistas.

IHU On-Line – Que crítica o movimento fazia à sociedade do espetáculo?
Erick Corrêa – A crítica da sociedade do espetáculo foi particularmente desenvolvida pelos situacionistas e difundidas na Europa ocidental, mas também no leste europeu, no norte africano, no Japão e nos Estados Unidos, desde o final da década de 1950. Tal crítica se encontra sintetizada em dois livros de teoria, publicados na França poucos meses antes do incêndio de Maio-Junho de 68: A sociedade do espetáculo, do francês Guy Debord, e A arte de viver para as novas gerações, do belga Raoul Vaneigem . Esses livros exerceram influência decisiva na radicalização do meio estudantil francês no período que antecede a explosão de Maio, como vimos. O próprio Daniel Cohn-Bendit , então estudante de sociologia da faculdade de Nanterre, eleito pela mídia europeia como a principal liderança do movimento, reconhece a influência dos textos situacionistas na formação do movimento 22 de Março que, surgido em Nanterre, seria um dos principais pivôs da crise que em Maio de 1968 incendiaria a Sorbonne e, na sequência, o país inteiro.

Grosso modo, a crítica dos situacionistas levou a contestação social e política moderna a terrenos até então protegidos da luta de classes histórica, como a educação, a literatura e a arte moderna, a arquitetura, o urbanismo, a publicidade e a comunicação. Na concepção original de Debord, o espetáculo representa o estágio mais avançado já atingido pelo sistema capitalista, no qual ocorre uma colonização total da vida cotidiana. A tomada de consciência teórica dessa crise da vida cotidiana, na forma de uma crítica situacionista do espetáculo, era um dos princípios de base da IS. Seu programa objetivava a uma descolonização total da vida cotidiana.

Em termos materialistas, Debord e os situacionistas sabiam que o desenvolvimento das forças produtivas de então possibilitava a realização de novas formas de vida que, contudo, permaneciam impedidas pelas relações de produção capitalistas. A IS defendia também uma concepção de proletariado mais ampliada, pluriclassista, do que aquela, em vigor no século 19, que o circunscrevia aos trabalhadores das fábricas, aos operários. Na perspectiva bastante heterodoxa dos situacionistas e de Debord em particular, a classe proletária constitui, na sociedade espetacular-mercantil, “a imensa maioria de trabalhadores que perderam todo poder sobre o uso de sua própria vida” (A sociedade do espetáculo, § 114).

IHU On-Line – Caracterizaste a crise revolucionária de 1968, na França, como renovação das tentativas derrotadas de revolução proletária de 1917-21, ocorridas em diversos países europeus. Comente esta afirmação, por favor.
Erick Corrêa – Sim, como também a revolução portuguesa de 1974-75 e a italiana de 1968-78. Em todas essas situações, as correntes minoritárias e revolucionárias do proletariado saíram da crise derrotadas por suas próprias representações sindicais e partidárias. Isso ocorre pela primeira vez na vitória do partido social-democrata alemão contra o poder dos conselhos (raete) de trabalhadores em 1918-20, num processo concomitante à centralização do poder operada pelo partido bolchevique russo, durante o processo revolucionário de 1917-21, contra o poder autônomo dos soviets.

A polêmica original entre social-democratas, bolcheviques e esquerdistas (concentrada em torno de questões de princípio e táticas, como entre massas ou chefes, conselhos ou partidos, revolução ou reforma, em suma, entre os paradigmas conflitantes da autonomia proletária e da representação proletária), transcorrida no primeiro quarto do século 20, será reposta em jogo e atualizada sob as novas condições do capitalismo do segundo pós-guerra, pelas tendências conselhistas que retornam com muita força a partir da crise do movimento comunista internacional (de 1956-57), tanto em países do leste europeu como Hungria, Polônia, China ou Alemanha oriental, como também nos países ocidentais, como França, Itália, Espanha e Portugal.

IHU On-Line – Em um artigo, trataste da repercussão de Maio de 68 no pensamento de Michel Foucault. Que impacto foi esse?
Erick Corrêa – A produção teórica de Michel Foucault se divide em dois polos sucessivos, o arqueológico e o genealógico. Trata-se de uma conhecida divisão metodológica (ou “ruptura epistemológica”, nos termos foucaultianos), a qual corresponde uma transição temática, das reflexões sobre o saber para aquelas sobre o poder. O que procurei demonstrar neste artigo é precisamente como esse ponto de inflexão na produção intelectual de Foucault tem origem no processo de “politização” deflagrado pela explosão de 68. Argumento, porém, que para além do fato de ter exercido uma influência decisiva sobre o pensamento de Foucault, o movimento revolucionário refutou o método arqueológico empregado em seu livro de 1966, As palavras e as coisas. Afinal, como um acontecimento histórico ligado à luta de classes e à práxis revolucionária podia ser acolhido teoricamente pelo mesmo autor que, antes de 68, e de acordo com as suas exposições teóricas da década de 1960, teria considerado uma irrupção de natureza histórica e social como aquela um fenômeno exterior e independente do campo científico, assim como, igualmente, teria considerado uma teoria que o acolhesse como “doxológica” – isto é, “não científica” –, situando-a no campo da ideologia?

IHU On-Line – Os movimentos sociais foram influenciados pela efervescência de Maio de 68?
Erick Corrêa – Certamente. Ocorre que tais tendências, como o movimento feminista, LGBT ou ecologista, apesar de já atuarem na França de modo embrionário no período pré-68, só passam a formalizar suas organizações no pós-68, depois que ocorre uma abertura, nos planos da cultura e dos costumes, ocasionada pelo levante de maio-junho de 68. É o caso do Movimento de Libertação das Mulheres - MLM, formalizado em 1970, como da Frente Homossexual de Ação Revolucionária - FHAR, fundada em 1971.

IHU On-Line – É correto afirmar que Maio de 68 também abriu caminho para ideias neoliberais, ao se pensar na liberdade não como construção humanista? Como isso ocorreu?
Erick Corrêa – Essa leitura faz parte de uma espécie de contrarrevolução cultural preventiva que, ao falsificar a memória histórica de 68 (ocultando seus aspectos mais selvagens e destacando suas supostas características liberal-modernizantes), pretende afastá-la do presente e confiná-la ao seu acabamento conclusivo no passado, apenas como objeto de interesse de alguns especialistas, entre historiadores, jornalistas e cientistas sociais.

68 foi a maior greve geral selvagem da história da França, mas saiu vencida. É a derrota da revolução de 68 que abre o caminho para as reestruturações produtivas posteriores. A crítica radicalmente centrada na questão do Estado partia antes de um ponto de vista proletário (e de inspiração anarquista, conselhista ou situacionista), mas jamais de um ponto de vista liberal ou neoliberal. Essa elaboração enviesada parece ter sido introduzida na França nos anos 1980, por intelectuais conservadores como Luc Ferry e Alain Renaut , responsáveis pela popularização da enganosa expressão pensamento 68 que, segundo eles, estaria presente nas teorias de autores historicamente ignorados pelos contestatários de 68, como Foucault e Bourdieu. Sabe-se, entretanto, que a ação dos contestatários de 68 era muito inspirada pela literatura de esquerda, dos clássicos, como Marx e Engels , Lenin , Rosa, Trotsky , Pannekoek, Korsch , aos contemporâneos, como Sartre, Mao , Marcuse, Lefebvre, Debord, Reich , Vaneigem, Débray , Negri .

IHU On-Line – E a direita, se apropriou das perspectivas de Maio de 68?
Erick Corrêa – Historicamente, a direita se apropria das novas formas e métodos de luta e organização construídos pela esquerda, mais do que de suas perspectivas, aspirações e expectativas. Foi assim que o fascismo italiano se apropriou da forma de organização do partido bolchevique russo, que a extrema-direita estadunidense se inspirou nas formas de luta do seu principal oponente, o Black Lives Matter, nas manifestações racistas de Charlottesville, em 2017, e que o Movimento Brasil Livre - MBL incorporou, a partir de 2016, não somente parte da nomenclatura da sua organização, como também alguns métodos de luta usados pelo Movimento Passe Livre - MPL durante as jornadas de junho de 2013.

Na França pós-68, será apenas nas eleições de 1986 que a direita conquista uma maioria parlamentar, liderada pela Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen , após duas décadas de contrarrevolução, num contexto, portanto, de baixíssima sindicalização, de desarticulação e desmobilização das classes trabalhadoras (com o refluxo dos movimentos grevistas e a desativação da luta de classes revolucionária), como também de um eclipse intelectual da esquerda, marcado pelo abandono do marxismo e pela vigência de um vácuo ideológico em que predominavam as vozes conservadoras do neoliberalismo ortodoxo, do racismo, do nacionalismo e do paternalismo.

IHU On-Line – As efemérides são momentos de celebrar datas e de reinterpretá-las. Para além disso, a evocação de 1968 pode sugerir algumas chaves para compreensão da atual conjectura do Brasil e do mundo?
Erick Corrêa – Sem dúvida. Mais do que cíclica, a história é infinita, o que quer dizer que ela não se repete, simplesmente, mas continua. O que nos liga ao 68 francês é precisamente o fato de que, a partir daquelas jornadas, isto é, na reação a elas, a distinção clássica entre Estado de Direito e Estado de Exceção como antíteses inconciliáveis passa a perder seu sentido histórico. As soluções encontradas pela Quinta República francesa para um desfecho que lhe fosse favorável no combate à radicalização proletária que se anuncia na crise de maio-junho de 68 combinou elementos coercitivos e coesitivos que dariam origem a um novo ciclo histórico, marcado pela fusão entre as máfias, os Estados e mercados, pela mentira como técnica de governo normal das democracias contemporâneas, pela imposição de um estado de violência permanente, além do crescente poder de influência do segredo e dos serviços secretos nos arranjos estatais (esse é o diagnóstico feito pelo situacionista Guy Debord em 1988, em seus importantes, porém pouco lidos Comentários sobre a sociedade do espetáculo).

Eis o fio que nos conduz da França de 1968 ao Brasil de 2018, após cinco anos de uma singular contrarrevolução sem revolução, desencadeada em resposta às jornadas de junho de 2013. Assim como na França em 68, o trabalho de desqualificação e de deslegitimação das posições da esquerda revolucionária durante e depois da crise, realizado tanto por gaullistas como por comunistas-stalinistas, não se distancia muito do trabalho realizado no Brasil, sobretudo entre 2013 e as jornadas anticopa de 2014, feito por petistas e antipetistas, contra os movimentos sociais de base autônoma, como o Movimento Passe Livre ou as federações anarquistas e demais frentes populares independentes de partidos e sindicatos.

Aqui como lá, tais posições de certa maneira prepararam o terreno para uma contraofensiva da direita que, em simbiose com os aparatos estatais de controle e repressão, depois atingiria frontalmente todo o campo da esquerda, até mesmo as suas variantes mais reformistas e conciliadoras (como o Partido Comunista lá e o Partido dos Trabalhadores cá). Uma contraofensiva que prefigura uma situação de desconstrução da seguridade social e de retração das liberdades democráticas básicas. No plano histórico, quase sempre que as posições da direita e da esquerda reformista se uniram no ataque às correntes minoritárias e revolucionárias do movimento operário, o fascismo avançou e o autoritarismo estatal instaurou-se.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Erick Corrêa – Comentei, no início da entrevista, o fato de que a agitação das alas mais radicalizadas do movimento estudantil na faculdade de Nanterre foi um dos elementos detonadores da crise revolucionária de maio-junho de 1968 na França. Desde 1978, a cada decênio, repõe-se uma situação de disputa pela memória daquele episódio. Contudo, entre as dezenas de interpretações acadêmicas, jornalísticas, político-partidárias, produzidas há 50 anos sobre aquele evento extraordinário, não há nenhuma mais apta a reconhecer a natureza histórica real da revolução de 68 do que aquela que se coloca desde o ponto de vista dos protagonistas da luta que se desenrola sob os nossos olhos em 2018.

Eis um trecho que selecionei de um panfleto produzido por estudantes de Nanterre contrários à realização de um evento ocorrido na faculdade local, no dia 22 de março de 2018, em “comemoração” ao primeiro cinquentenário de 68 e, especialmente, ao movimento construído por jovens marxistas e libertários no campus de Nanterre e fundado no dia 22 de março de 1968: “Nesta quinta-feira ocorrerá a comemoração do Maio de 68, uma ocasião para a universidade de Nanterre se reapropriar da memória de um movimento cujos princípios, no entanto, ela rejeita pela aplicação de uma política neoliberal. Essa comemoração é uma afronta, não somente à memória das lutas que se comemoram, como se elas pertencessem apenas ao passado, mas igualmente porque se trata de uma recuperação hipócrita quando nosso direito aos estudos não para de recuar. Enquanto participam ativamente da privatização da universidade pela Lei Vidal, eles comemoram um movimento que aspirava a uma universidade popular, crítica, aberta a todas e todos. Na verdade, não é Maio de 68 que eles comemoram, mas a sua vitória sobre Maio de 68” (Estudantes reunidos em comitê de mobilização na Universidade Paris-Nanterre em 20 de março de 2018). ■

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