Edição 521 | 07 Mai 2018

Quando a comunicação é negada, o outro é reduzido e a violência eclode

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João Vitor Santos

Guilherme de Azevedo analisa um sistema em que a violência se perfaz a partir da redução do ser a um corpo, em que é retirada a “condição de pessoa”, tornando-o descartável

O que é a violência de nosso tempo e como compreendê-la? Para o professor do Curso de Direito da Unisinos Guilherme de Azevedo, a violência pode ter origem na negação de um ato comunicacional. Seguindo uma lógica de Niklas Luhmann, o professor compreende que, como num sistema, uma vez negada a comunicação, a consequência será uma redução do ser. “O conceito da violência surge como uma ‘não-comunicação’, como um fenômeno de negação da comunicação, uma não produção de sentido, isto é, uma redução do outro à condição de corpo”, detalha. Assim, quando se retira a “condição de pessoa”, se tira desse ser a possibilidade comunicacional, numa sociedade que se baseia na própria comunicação. Este ser passa a não ter reconhecimento nos sistemas sociais. “Restando apenas o corpo como categoria sem sentido, disponível, descartável, uma forma que, ao não se apresentar como dotada de sentido, permite altos níveis de exclusão”, completa.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Azevedo aproxima sua perspectiva teórica às lógicas do racismo. “O racismo talvez seja a violência mais representativa do contexto brasileiro, uma dinâmica que potencialmente impacta mais de 50% da população brasileira”, aponta. Para ele, “negar o conceito de raça, para buscar desconstruir o racismo, será, justamente, a ação (comunicação) de reforço do racismo”, algo que vai invisibilizando esses seres. Reduzidos só a corpo, o resultado já é presumível. “Somos o país de mais de 50 mil homicídios por ano, mas esses homicídios não são aleatórios, contingenciais ou difusos. As vítimas são na maioria homens, jovens, pobres e negros”, aponta.

Guilherme de Azevedo é professor e coordenador do curso de Direito da Unisinos. Doutor e mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, desenvolve pesquisa na área da Sociologia do Direito. Entre suas publicações, destacamos De onde observa Niklas Luhmann? Diferenciações de uma Teoria da Sociedade. In: Vicente de Paulo Barretto; Francisco Carlos Duarte; Germano Schwartz. (Org.). Direito da Sociedade Policontextural (Curitiba: Appris, 2013) e Proibição, descriminalização e legalização: alternativas de enfrentamento à crise do proibicionismo (Revista Conhecimento Online, v. 1, p. 104-118, 2015).

O professor participa do evento Violências do mundo contemporâneo – Interfaces, resistências e enfrentamentos, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Azevedo proferirá a conferência A inclusão como possibilidade de enfrentamento às violências, no dia 17/5, às 17h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU, Campus São Leopoldo da Unisinos.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o conceito de violência para o senhor? E como essa violência se materializa em nosso tempo?
Guilherme de Azevedo – Tenho procurado pensar a violência dentro de uma proposta de recepção crítica da teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann . Nessa linha, a construção de um conceito para violência deve ser antecedida por uma especificação de como observo conceitualmente outras duas categorias desse quadro teórico: sociedade e pessoa.

A sociedade aqui é observada como comunicação, como algo constituído única e exclusivamente por comunicação. Logo, o principal estranhamento gerado por essa definição não está propriamente no fato de considerar a comunicação um elemento relevante na observação da sociedade, mas, sim, em não inserir mais o indivíduo como elemento constitutivo da sociedade. Este era o pano de fundo epistemológico que, com maior ou menor intensidade, dominou desde Aristóteles a compreensão do social, sempre se utilizando de referências ao indivíduo – das suas ações, do seu comportamento, de suas interações, de sua suposta racionalidade – como categoria elementar do social.

Contudo, a virada que Luhmann opera na sua teoria da sociedade, ao distinguir o social no conceito de comunicação, rompendo com qualquer nível de individualismo metodológico, permite construir o conceito de sociedade de uma forma suficientemente complexa, com uma adequação epistemológica correspondente ao atual momento do nosso tempo, um cenário de incremento da complexidade que desafia abordagens dirigistas formatadas em ontologias do social, ou em esquemas e narrativas mais causalistas.

Violência

Partindo da ideia de sociedade como comunicação, dessa reconstrução da teoria da sociedade, a compreensão dos termos homem, indivíduo, pessoa não é naturalizada, uma vez que são sempre trabalhados como distinções, como diferenças, formas comunicacionais que operaram como redutores de complexidades, ao facilitarem na comunicação a indicação de endereços comunicativos . Contudo, a redução de complexidade aqui não é sinônimo de simplificação, ou de coisificação, antes o contrário, é uma redução de complexidade que permite a produção de sentido, que permite, portanto, o reconhecimento do outro como parte da sociedade, dada a sua construção como comunicação.

É a partir dessas duas premissas de corte luhmanniano, trabalhadas criticamente, que eu procuro pensar a violência. Nessa forma de se construir os conceitos de sociedade e pessoa, o conceito da violência surge como uma “não-comunicação”, como um fenômeno de negação da comunicação, uma não produção de sentido, isto é, uma redução do outro à condição de corpo. Sobre corpos não se formam expectativas sociais que possam ir além da lógica de satisfação violenta e elementar. A violência é, nesse sentido, uma negação do outro como comunicação, a não formação deste como endereço comunicativo, ou seja, como pessoa. É justamente nestes termos que se conecta a violência, entendida como “não-comunicação”, com o problema da exclusão.

Esse é um dos efeitos mais preocupantes da violência em uma sociedade funcionalmente diferenciada, que contrasta fortemente com as retóricas de inclusão plena, ao expor as flagrantes limitações dessas pretensões mais universalistas de inclusão/integração ainda presentes atualmente. A retirada da condição de pessoa, isto é, da condição de endereço comunicativo, numa sociedade que se reproduz como comunicação, significa a retirada da condição elemento “reconhecível” pelos sistemas sociais, restando apenas o corpo como categoria sem sentido, disponível, descartável, uma forma que ao não se apresentar como dotada de sentido permite altos níveis de exclusão.

Portanto, na sociedade atual, a violência passa a se materializar como um fenômeno de integração pela exclusão, gerado pela não comunicação do outro, que é reduzido a corpo. Esse me parece o gatilho teórico mais interessante para pensar a violência em termos mais amplos, dando conta de reconhecer as dinâmicas da violência em uma sociedade policontextural, isto é, a violência como operação de exclusão e desintegração no Direito, na Economia, na Política e na Religião.

IHU On-Line – Em que medida o pensamento da Modernidade e seu conceito de propriedade privada pode contribuir para a geração de violência?
Guilherme de Azevedo – O papel da Modernidade na compreensão da violência vem sendo retrabalhado pela teoria social contemporânea. A narrativa da Modernidade como uma série histórica de emancipação, inclusão, estimulada por um certo “norte moral” do sujeito moderno europeu iluminista já passa a ser questionada para, no lugar disso, identificarmos na Modernidade uma certa ambivalência violenta e excludente. Prefiro pensar a Modernidade dentro de um quadro sistêmico, como um processo de acentuação das dinâmicas de diferenciação funcional, que dissolveu lógicas violentas de estratificação social, mas, por outro lado, produziu novos mecanismos de desintegração e exclusão, uma vez que a inclusão passa a ser mediada por um controle dos sistemas funcionais (Direito, Política, Religião, Economia, Ciência, Arte) que não respondem da mesma forma à pressão do Estado por inclusão, entendido este como organização sobrevivente da sociedade estratificada.

Um bom exemplo disso é relação da propriedade privada com ideia de pessoa/corpo na Modernidade, ou seja, estamos falando especificamente da elaboração das condições sistêmicas de formação da escravidão moderna. A maior expressão da violência na Modernidade é a construção da dinâmica da escravidão dentro de uma operacionalização orquestrada sistemicamente. A comunicação da propriedade tem uma prestação importante nesse processo. É possível explicar essa dinâmica a partir de uma análise da história por trás do quadro Slave ship , de William Turner , um dos principais artistas do Romantismo e, para muitos, precursor do Impressionismo.

Apenas pela imagem, sem sabermos o que esta conta como narrativa histórica, o sentido desse quadro não alcança o seu desejo de comunicar um evento traumático. Como afirma Jeffrey Alexander , nenhum evento é em si traumático. O trauma, como fenômeno sociológico, é resultado da mediação que a sociedade fez, faz, ou poderá fazer de um evento. A obra “Navio Negreiro” de Turner é inspirada no relato sobre o navio Zong, que poderia ter sido mais um entre os diversos barcos que realizavam o trajeto da África para a Jamaica no século XVIII. Nesta viagem ocorre uma diferença, a descoberta de uma chaga que começava a tomar os porões do navio e, com isso, os africanos ali escravizados teriam destino certo de apenas esperar a morte. Mas para o capitão desse navio, a questão de como essas mortes seriam comunicadas, como elas seriam observadas, fazia a diferença da diferença que constitui a inclusão ou exclusão de suas expectativas em um sistema social.

Sentido econômico e discussão sobre direitos humanos

Em outras palavras, se observado o evento a partir de um sentido econômico, o contrato de seguro comunicava que só reconheceria as mortes que, no mar, ocorressem. Cada morte de escravizado no mar representava um sentido específico no sistema econômico. Contudo, para cada morte no barco, o seguro não deixaria mais que a indiferença e o silêncio. Não havia o sentido de lucro no sistema econômico para escravizados mortos por doenças e, portanto, decidir sobre como a morte dos escravizados seria comunicada passava a ser um problema de generalização congruente de expectativas normativas (direito). Aquele que observava os corpos, vivos ou mortos, tendo para si a expectativa de perder o seu dinheiro, de perder o seu lucro, já decidia em ver o corpo pela forma da propriedade.

Assim, cento e trinta e dois (132) africanos, entre homens, mulheres e crianças, foram jogados ao mar Caribenho, tendo como destino um mar repleto de tubarões, onde muitos destes acabaram dilacerados. Os que a sorte retirou dos tubarões, entregou ao fundo do mar. Mas o proprietário dos escravos comunicou, pelo sistema do direito, a sua indenização. Contudo, registra a historiografia inglesa, que ao ser descoberto e narrado este mesmo caso, um trauma se constituiu. Tal evento será ressignificado pela sociedade inglesa, passando de objeto de lucro, derivado de um contrato de seguro, para um trauma gerador da semântica abolicionista. De uma operação econômica alcançou o sentido de pauta das discussões sobre os direitos humanos, provocando no sistema do direito o reconhecimento da abolição. É isso que Turner vai comunicar no sistema da arte sessenta anos depois do ocorrido. A abolição no direito já era fato, mas ainda assim, o trauma comunicava, agora, no sistema da arte.

A violência da redução do outro a corpo, desenvolvida na escravidão moderna, só foi possível com o desenvolvimento do direito de propriedade. Tradicionalmente, o direito é entendido como um conjunto de normas que limita as possibilidades de comportamento. Mas, em termos funcionais, o sistema do direito está, na verdade, muito mais próximo de exercer o papel de habilitador de comportamentos, de ser a condição de possibilidade para certas condutas, muito mais do que ter a função de limitador destas. Basta pensarmos em figuras jurídicas como a propriedade, contratos, responsabilidade da pessoa jurídica, especialmente no campo do direito privado, o direito age como um viabilizador de expectativas .

Nesse sentido, a propriedade na Modernidade pode ser descrita como um acoplamento estrutural entre o sistema do direito e o sistema da economia. Dentro desse processo, o sistema do direito certamente executou importante função, por meio da construção da escravidão como direito de propriedade, o direito prestou as condições sistêmicas de funcionamento da escravidão, promovendo a estabilização social do maior processo de exclusão do outro como pessoa da modernidade.

O caso brasileiro

Procurando dialogar com a historiografia brasileira, é possível destacar a formalização jurídica do processo escravista, bem descrito por Hebe Mattos . A lei irá substituir o costume como fonte da escravidão a partir do momento que a Constituição de 1824 reconhece comunicações jurídicas acerca do direito de propriedade de escravos. Com o direito de propriedade, o direito fornece segurança para a operação econômica da escravidão, e um empoderamento político da elite brasileira, escamoteando a suposta contradição entre a formação de direitos civis liberais e a validação do direito de propriedade sobre o escravo, para estabilizar uma operação econômica .

A forma prioritária de comunicação do negro não ocorria como pessoa, mas, sim, como propriedade. A propriedade era a principal forma de se comunicar sistemicamente a condição de negro no império. Devido ao fato de o seu tratamento como coisa se constituir como estrutura de operacionalização, isto é, de seleção e redução da complexidade nos sistemas sociais. Diante da redução à condição de objeto, de bem sujeito à propriedade de alguém, sistemicamente é compreensível o “silêncio” da Constituição de 1824 quanto à real condição dos escravizados. Formalizar a observação do negro nos sistemas sociais no século XIX era diferenciar e indicar, principalmente, a categoria da propriedade de um corpo, o cerceamento da liberdade de um corpo.

Essa dinâmica, dentro do pensamento liberal em desenvolvimento, era escamoteada pela lógica da soberania doméstica frente ao Estado, pela blindagem da relação privada frente ao governo. Logo, a real dinâmica comunicacional do negro na escravidão é praticamente ignorada pelo texto constitucional, uma vez que, caso o texto constitucional de fato enfrentasse o tema da escravidão, acabaria por ter de comunicar a condição do negro dentro da lógica de funcionamento do direito de propriedade, dada a função que este acoplamento estrutural entre o sistema do direito, sistema da política e o sistema econômico, executava à época. Mas mais do que isso, o que também fica (não) comunicado, ou latente, pela “não-comunicação” do negro-propriedade no texto constitucional, é que o próprio direito de propriedade não dependida de uma postura de reconhecimento ativa da programação constitucional. O negro escravizado, como direito de propriedade, forma-se sem a ação direta do Governo Imperial . Diante deste quadro, há que perceber que a programação dos sistemas político, econômico e jurídico, em desenvolvimento a esta época, começam a elaborar comunicações sobre o negro internamente, dentro de um jogo entre heterorreferência e autorreferência, mas sempre a partir de um compartilhamento estrutural do reconhecimento da propriedade, ou seja, de uma produção de sentido para o reconhecimento da escravidão.

Propriedade e escravidão seguem imbricadas

Mesmo quando o exame da propriedade, como programa de tomada de decisão, começa a ser levado para o exame das organizações, como tribunais e corporações profissionais, a sua manutenção servia como eixo central de argumentação. Como bem examina Eduardo Spiller Pena , em sua tese Pajens da Casa Imperial: jurisconsultos e escravidão no século XIX , ao demonstrar de forma acurada que a propriedade não era facilmente afastada nos movimentos de tensão que marcaram as discussões entre os membros do Instituto dos Advogados do Brasil - IAB, no que tocava ao mais consistente encaminhamento do sentido jurídico da escravidão.

IHU On-Line – De que forma a exclusão social se configura como elemento propulsor da violência? E como a inclusão pode ser empregada como uma forma de enfrentamento da violência?
Guilherme de Azevedo – Essa questão exige um maior esclarecimento sobre como se desenvolvem dinâmicas de inclusão/exclusão hoje. E para isso, penso que temos que trabalhar essa dinâmica reconhecendo que ela ocorre orientada por um processo de diferenciação funcional da sociedade. Reconhecendo-se o alto índice de abstração que alcança a teoria da sociedade luhmanniana, o que muitas vezes repele a sua leitura e desenvolvimento mais aprofundados, entendo ser fundamental, antes de entrarmos na formalização sistêmica da inclusão/exclusão, conectar a proposta de Luhmann a um ponto de partida clássico, um teorema já há muito sedimentado nas ciências sociais: a ideia de que as sociedades são diferenciadas, ou seja, o fato de que há uma divisão do trabalho nessas sociedades.

Tido como um dos pilares do próprio surgimento da Sociologia, a teoria da divisão do trabalho social é tão antiga quanto as ciências sociais, surge na metade do século XVIII, quando se passa a conceber as sociedades como conjuntos complexos que se mantêm por interdependência. As “partes” da sociedade seriam mantidas em coesão por forças de dependência mútua, isto é, uma parte precisa da outra. É esta a base da divisão do trabalho social, teorema fundamental da Sociologia moderna e que pode ser identificado, respeitadas as especificidades, em diversos autores da Sociologia, como Durkheim , Weber e Simmel . Em cada um desses autores, podemos reconhecer formas de se trabalhar uma diferenciação da sociedade. Contudo, é Luhmann que irá, por sua vez, radicalizar a ideia de diferenciação, passando a trabalhá-la como uma diferenciação funcional.

A observação de Luhmann não se restringe à ideia de uma divisão do trabalho social, à própria ideia de que a sociedade é um conjunto, um todo, em que as partes precisam umas das outras. O sentido de função em Luhmann vai muito além desta ideia de interdependência. Para entendermos melhor o papel que o conceito funcional desempenha, temos que acompanhar o marco evolutivo da complexidade social e, nessa evolução, localizar os processos de inclusão/exclusão contemporâneos.

Inclusão/exclusão

A adoção de um referencial sociológico sistêmico para o estudo da inclusão/exclusão em sistemas sociais coloca o tema em uma relação diferente com o problema da integração social. O ponto que irá se destacar, com grande relevância para os estudos sobre a dinâmica complexa de processos de inclusão/exclusão, é o fato de que a inclusão/exclusão na sociedade é uma forma que se altera profundamente a partir do tipo de diferenciação social vigente nesta sociedade. Não podemos perder de vista que o tema da integração e da exclusão social sempre foi motivo de confusões conceituais e ceticismo teórico.

O trabalho de David Lockood chegou a defender a completa distinção entre o conceito de integração, no seu sentido sistêmico, e o de integração no seu sentido social . Essa distinção procurava não confundir a integração vista como a harmonia interna dos sistemas funcionais, com a integração definida como relação entre sistemas psíquicos, entendidos aqui como indivíduos, e os sistemas sociais. Em Luhmann, a abordagem é feita de outra forma. A integração dos sistemas é proposta como distinção de formas de diferenciação dos sistemas, dotadas essas formas da capacidade (função) de controle desses sistemas parciais em relação ao seu ambiente. Já sobre o problema da integração social, esse é ressignificado como um problema de operação da distinção inclusão/exclusão, seguindo-se aqui, fundamentalmente, a construção que Talcott Parsons irá produzir a partir de sua leitura de T.H. Marshall , no problema da evolução dos direitos civis.

Com isso, a observação sociológica da inclusão/exclusão deve dar conta de expressar todo processo de diferenciação da sociedade moderna. Para isso, Luhmann vai reformular a definição de inclusão/exclusão de Parsons . Para ele, a exclusão deve ser entendida como forma (distinção com dois lados) cujo lado interior é indicado como a oportunidade que as pessoas, aqui entendida como endereços comunicacionais, têm para serem levadas em consideração socialmente (pelos sistemas sociais, organizações, na interação), e o lado exterior dessa forma se mantém sem sinalização .

Dentro dessa perspectiva, existe inclusão apenas quando, ao mesmo tempo, a exclusão é possível. É a existência de pessoas, grupos, segmentos, fora de uma condição de integração, que torna possível observar (diferenciar/indicar) a coesão social e, com isso, possibilita o conhecimento nos termos necessários para promoção dessa coesão. Dessa definição da inclusão/exclusão como forma, decorre uma importante medida de (co)dependência, ou seja, o conhecimento e definição das condições de inclusão geram, ao mesmo tempo, a denominação das formas geradoras da exclusão. O que Luhmann vai destacar, desde o primeiro momento, é que quando os sistemas sociais especificam os critérios de inclusão, ao mesmo tempo, tornam possível o conhecimento da exclusão .

Violência como negação da inclusão

Nesse sentido, passamos a conhecer a violência como fenômeno de negação sistêmica da inclusão. É quando indivíduos dos grupos apresentam alto índice de exclusão nos sistemas sociais, eles não são comunicados, ou seja, são apenas corpos. Quando ocorre ainda alguma inclusão, no sentido de serem reconhecidos comunicacionalmente, normalmente isso se dá a partir de simplificações, descaracterizações, mediadas pelos sistemas sociais.

A violência contemporânea é um processo sistêmico de invisibilidade comunicacional de grupos e indivíduos, que ocorre pela dificuldade de operacionalizarmos inclusão a partir de eixo organizacional central único, como o Estado, a Igreja ou as Universidades. Em outras palavras, deve se ter em mente que a inclusão dos indivíduos nos sistemas é afetada principalmente pelos acoplamentos estruturais/operacionais realizados por esses sistemas, como a propriedade, a constituição, os contratos, pensando especialmente na relação entre direito, política e economia. E com essa dinâmica funcionalista ampliada, passa-se a ter dificuldades de operar na sociedade sob a lógica de que um determinado status social, dado pelo simples nascimento ou pertencimento familiar, garanta por si só critérios ontológicos de inclusão sistêmica generalizada.

A inclusão, no âmbito comunicacional, portanto, na sociedade, passa a depender de oportunidades altamente especializadas, que apresentam muitas vezes um quadro instável na sua estabilidade temporal. Assim, a generalização de expectativas de inclusão, pensando aqui na pressão da experiência de democracia de massas, que passam a se constituir, estrutura-se a pretensão de que cada sujeito de direito representa, ao mesmo tempo, um sujeito ativo economicamente e, também, apto a expressar politicamente seus interesses, com o exercício de representar e ser representado. Esse mesmo sujeito tem a expectativa de acessar uma formação educacional elementar, ter benefícios sociais e direitos básicos que lhe possibilitem gozo e fruição de saúde, ou manifestar afeto e seu credo religioso de forma específica e livre, pelas formas e rituais simbólicos postos pela sua cultura e tradição .

O que Luhmann bem destacou para os estudos da inclusão/exclusão é que, no século XVIII, desenvolve-se uma funcionalidade inclusiva a partir do postulado dos direitos humanos que, procurando romper com formas de diferenciação legadas pela tradição, reconstrói as condições de inclusão dos sistemas funcionais em favor de uma nova premissa: o ser humano pensado como sujeito universal . Nesse processo, vão se fortalecer as diferenciações semânticas da “igualdade” e “liberdade”, como princípios com pretensão de generalidade. Em termos sistêmicos, são autodescrições da sociedade que passa a se observar a partir da comunicação dos direitos humanos.

Contudo, este movimento se dá dentro de uma realidade de diferenciação funcional, posto que as restrições à liberdade e à igualdade somente se dão por meio dos códigos e programas dos sistemas sociais parciais (direito, economia, política, religião etc.), sem contar, nesse sentido, com a possibilidade de atribuir a um sistema o papel diretivo da totalidade da sociedade. Com a formação da semântica dos direitos humanos na sociedade, a análise luhmanniana auxilia na observação do problema que será apontado na modernidade. Essa sociedade irá constituir, através desta lógica de inclusão/exclusão, a ideia de que o único problema da modernidade parece residir que esses direitos, os direitos humanos, não se realizaram de maneira completa, ou da mesma forma, sobre todos os lugares do mundo.

IHU On-Line – Como a articulação do trinômio “proibição”, “descriminalização” e “legalização” pode incidir sobre a violência? Quais as alternativas?
Guilherme de Azevedo – Se pensamos de forma mais restrita, isolando no tema da violência uma das suas principais frentes, como a questão do tráfico de drogas, não há uma articulação desse trinômio. Do ponto de vista do Direito, a resposta tem sido, majoritariamente, monista, isto é, a proibição. Podemos ser otimistas e olhar para iniciativas como a do Uruguai, Portugal, ou a de alguns estados estadunidenses, especificamente na questão da maconha, mas o fato é que o lado pessimista ainda é maior, a tendência mundial ainda é usar o sistema do direito para generalizar expectativas normativas de criminalização da venda e uso de certas substâncias.

Já há um certo consenso científico que esse movimento é um fracasso absoluto em termos de prevenção e prestação de saúde e, por outro lado, um “sucesso” completo em fomentar a violência. As dinâmicas de exclusão que a criminalização do tráfico fomenta são evidentes, especialmente em contextos sociais que apresentam altos níveis de desigualdade de acesso aos sistemas sociais. É senso comum identificar no traficante os marcadores de uma desintegração sistêmica, como baixa escolaridade, desemprego, pobreza, racismo, “não-consumidor”, bandido etc. Esses elementos todos são resultados de exclusão de sistemas sociais, permitindo que esses indivíduos sejam reduzidos à condição de corpos.

Basta observar o perfil que a cobertura jornalística apresenta quando trata das mortes na periferia. Não cita nomes, não apresenta histórias individualizadas, não investiga sonhos, desejos, ou ambições que o indivíduo vítima poderia ter, isto é, ocorre uma simplificação que praticamente retira a condição de endereço comunicativo, naturalizando-o como corpo, ou seja, não comunicando qualquer individualização. Essa prática é causa e consequência da violência. É produto e produtor, é a própria violência e o seu resultado. Antes de examinar alternativas, o desafio é desconstruir esse modelo proibicionista, é reconhecer que ele não funcionou.

IHU On-Line – Que respostas o Direito, na atualidade, é capaz de dar à violência social?
Guilherme de Azevedo – É impossível sinalizar uma fórmula geral para enfrentamento da violência pelo Direito. Contudo, em termos mais reflexivos, acredito que um ponto deve estar presente em qualquer pretensão mais normativista de combate à violência. Esse ponto é atentarmos para o fato de que o Direito só resolve os problemas que ele mesmo cria, ou seja, temos que projetar respostas perguntando como os sistemas sociais constroem os seus processos de inclusão/exclusão.

Racismo

Para não soar tão abstrato, podemos abrir para um certo nacionalismo metodológico, e tomar o Direito para analisar a dinâmica do racismo no Brasil. O racismo talvez seja a violência mais representativa do contexto brasileiro, uma dinâmica que potencialmente impacta mais de 50% da população brasileira. É partir dessa premissa que a construção de uma resposta a esta questão deve elaborar as linhas iniciais de uma observação do fenômeno do racismo no Brasil. Embora a formação dos processos de exclusão, dentro da lógica operativa dos sistemas sociais, escondesse o reconhecimento da raça negra como programação explícita para a desigualdade, o preconceito à raça negra já funcionava, sistemicamente, como o outro lado da forma, o lado não indicado na observação de estruturas de restrição à inclusão dos negros, que opera como “ponto cego”, como um “unmarked space”, da escravidão até o debate das ações afirmativas.

Dessa característica, parece se formar o sentido do racismo brasileiro no período pós-abolição, como “silêncio” normativo (não comunicação), como não-tematização da desigualdade racial que irá se constituir durante boa parte do século XX. O fator sistêmico interessante desse processo, que propomos como uma leitura luhmanniana do surgimento da comunicação da democracia racial, é que ela irá se constituir como um paradoxo: negar o conceito de raça, para buscar desconstruir o racismo, será, justamente, a ação (comunicação) de reforço do racismo. E é essa paradoxalidade que irá caracterizar o racismo na diferenciação social brasileira, um racismo que ocorre pela negação da ideia de raça. Tanto, que isto é o que levará o movimento negro a pressionar pela reconstrução política do conceito de raça, como forma de reconstruir a diferença que possibilita a observação da desigualdade racial, uma forma de combate ao racismo para reintrodução de ideia de raça.

O que se coloca, então, como um dos campos problemáticos para reflexão, é o jogo antagônico entre o aumento na produção de dados empíricos sobre a desigualdade racial, sua exposição e publicização, e a manutenção de uma interpretação dogmática no Direito de que as dificuldades e preconceitos experimentados pela população negra seriam contingenciais, acidentais, ou, de forma mais precisa, o racismo não teria um papel estrutural na sociedade brasileira. Essa recusa interpretativa, que nega a existência de um “racismo sistêmico” no Brasil, que ignora a função que a comunicação da raça negra desempenha na formação de hierarquias na sociedade brasileira, e sua consequente naturalização, acaba gerando mais obstáculos para a eficiência das políticas públicas de igualdade racial.

Violências e violações

As violências forjadas pelo racismo no Brasil ainda não foram plenamente reconhecidas como violações. Há uma naturalização que impacta a eficácia empírica (material) da função do Direito de, supostamente, generalizar expectativas normativas de combate ao racismo, isto é, afeta a capacidade do sistema do direito de fomentar irritações nos demais sistemas sociais (político, econômico, educativo etc.), como forma de desencadear processos de coevolução nestes demais sistemas.

Contudo, apontando para alguma mudança e, talvez, permitindo um certo otimismo nesse tema, é significativo o fato de que o início do século XXI marca uma importante fase do desenvolvimento de políticas de combate ao racismo, especialmente quando pensamos a partir da Convenção de Durban , em 2001, que sinalizou a urgência de uma pauta político-jurídica em escala mundial para o problema do racismo e demais práticas discriminatórias. O Estado Brasileiro pareceu reagir a essa provocação com uma potencialização interna das discussões sobre as relações raciais no país, que acabaram por produzir arcabouços normativos relevantes como a Lei n° 10.639/03, o Estatuto da Igualdade Racial, Lei de Cotas Raciais. Entretanto, esses dispositivos ainda estão longe de se apresentarem como resposta efetiva para o massacre que o Brasil realiza com a juventude negra. Somos o país de mais de 50 mil homicídios por ano, mas esses homicídios não são aleatórios, contingenciais ou difusos. As vítimas são na maioria homens, jovens, pobres e negros. E sobre essa dinâmica da violência, pouca resposta o Direito tem dado.■

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