Edição 519 | 09 Abril 2018

O catálogo de tragédias aos Yanomami na voz de Davi Kopenawa

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Ricardo Machado

Julie Dorrico, ao analisar o livro A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami, comenta sobre a força narrativa e política da obra

Os múltiplos sentidos da obra A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami (São Paulo: Companhia das Letras, 2015) vêm sendo, pouco a pouco, revelados por pesquisadores e professores das mais diversas áreas, da antropologia à teoria literária. Com foco nesta última perspectiva, da teoria literária, Julie Dorrico faz uma leitura atenta e minuciosa deste que pode ser considerado um dos principais tratados da cosmologia yanomami. “A narrativa do xamã yanomami denuncia as práticas políticas, econômicas e sociais ancoradas no modelo normativo ocidental. Por modelo normativo ocidental compreendo as formas de produção baseadas no regime capitalista, em que grandes empresas mantêm o monopólio das forças produtivas desencadeando uma série de dependências: financeiras para os grupos com menos potência econômica; e subjetivas, uma vez que nossa sociedade brasileira tende a apagar os sujeitos à margem dos centros bem sucedidos em geral”, descreve Julie Dorrico, que concedeu entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“O xamã nos mostra que a modernidade tem uma relação tão essencial com a mercadoria que transcende e subverte o sentido normativo das relações humanas: de fins passamos a ser meios, ao passo que as mercadorias de meios passam a ser fins”, critica a entrevistada. Uma das características mais potentes do livro é que as tensões trazidas no texto evidenciam que a visão xamânica do mundo não se dá em termos individualizantes, mas relacionais. “O xamã Kopenawa pode, para além da reconfiguração da imagem de seu povo e a sua, compartilhar outras epistemologias que não se subsumem ao binarismo moderno: natureza x cultura, indígena x não indígena, mulher x homem etc.”, analisa. “Devemos ouvir o que diz o xamã para aprendermos que a Terra não é colônia de exploração, é o lugar que habitamos, de que ela não é uma propriedade, mas uma partilha, um presente que foi dado gratuitamente a todos e para o usufruto de todos”, complementa.

Julie Dorrico é graduada em Letras Português e suas respectivas Literaturas na Fundação Universidade Federal de Rondônia - UNIR, onde também realizou mestrado no Programa de Pós-Graduação do Mestrado em Estudos Literários. Atualmente é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Sua pesquisa volta-se à Literatura Contemporânea com ênfase na Literatura Indígena Contemporânea e autobiografia indígena e integra o Grupo de Estudos em Culturas, Educação e Linguagens - GECEL.

A pesquisadora apresentará A Queda do Céu. Palavras de um Xamã Yanomami. Obra de Davi Kopenawa e Bruce Albert, no dia 18-4-2018, a partir das 19h30, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU. O evento integra a programação do evento A contemporaneidade em debate. Intérpretes e suas obras (2ª edição).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a obra A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami (2015) traz novas perspectivas para compreendermos a crise sistêmica instaurada pela obsessão desenvolvimentista?
Julie Dorrico – Antes de tudo gostaria de ressaltar que a leitura que realizo da obra A queda do céu: palavras de um xamã yanomami processa-se à luz da teoria da literatura. Especificamente, da teoria da literatura indígena brasileira. Isso significa dizer que fundamento minhas análises da obra em estudos de teóricos que vêm pensando a expressão indígena no campo da teoria da literatura – só depois procuro pensar questões e consequências políticas dela. Com uma série de autores que intercambiam antropologia, literatura, educação, saúde e política, de modo que esses escritores indígenas e não indígenas trabalham para diminuir as compreensões equivocadas e estereotipadas acerca das expressões estéticas e políticas dos povos indígenas.

Dessa forma, quando eu penso em Davi Kopenawa Yanomami como autor do texto junto ao antropólogo francês Bruce Albert , e penso no enredo do livro, logo considero a potência literária que ela denota em termos de autoria e em termos de narrativa. Utilizo como referência também o intelectual Kaká Werá, no livro Kaká Werá (Rio de Janeiro: Azougue, 2017), que considera serem as sociedades tradicionais, literárias. Em sua visão, os contadores de histórias são imprescindíveis para a coesão de um dado povo. Davi Kopenawa pode ser tomado, nesse sentido, como um exemplo, posto que ele é um narrador que dá coesão, nesta obra, por meio de sua voz, memória e experiência, ao povo Yanomami em suas relações com as sociedades não indígenas, e nesse caso, por meio da escrita alfabética.

A narrativa do xamã yanomami denuncia as práticas políticas, econômicas e sociais ancoradas no modelo normativo ocidental. Por modelo normativo ocidental compreendo as formas de produção baseadas no regime capitalista, em que grandes empresas mantêm o monopólio das forças produtivas desencadeando uma série de dependências: financeiras para os grupos com menos potência econômica; e subjetivas, uma vez que nossa sociedade brasileira tende a apagar os sujeitos à margem dos centros bem sucedidos em geral. Entre outras, uma característica importante dessa compreensão é que a natureza e as relações humanas são concebidas, de um modo geral, como instrumentais – aquilo que Marx chamou de precedência dos valores de troca em relação aos valores de uso. Esta forma de conceber as relações sociais perpassa desde as políticas que regem a nossa sociedade até as epistemologias desenvolvidas na academia. Adotando um modelo discursivo que se pretende neutro, imparcial e impessoal, reproduzimos a visão de que a natureza, as relações e as formas de conhecimento existentes são pertenças coisificadas do homem; como se ao homem, por pura e simplesmente existir, lhe fosse legado o direito de posse sobre a natureza e, como a História têm mostrado em alguns momentos, sobre outros homens. Como consequência desse paradigma moderno e modernizante, vemos, como bem pontuam Ella Shohat e Robert Stam, no livro Crítica da imagem eurocêntrica (São Paulo: Cosac Naify, 2006): a expropriação de territórios em escala maciça; a destruição de povos e culturas locais; a transformação de africanos e índios em escravizados; a ascensão do racismo nos territórios colonizados.

Respondendo a essa conjuntura que se desenhou historicamente, e a partir do seu lugar de fala – sujeito individual, sujeito coletivo, yanomami – Davi Kopenawa denuncia um catálogo de tragédias que afetaram e afetam seu povo.

Devemos lembrar que sua atuação política é voltada para a defesa do seu povo e dos povos indígenas que foram quase extintos com a empresa da modernidade. Logo, seu relato compreende a cosmovisão de seu povo, orientada pelo demiurgo Omama, valorizando a floresta e as relações humanas, o que, em grande medida, nos leva a refletir sobre as nossas próprias na sociedade brasileira. Vale lembrar que, historicamente, desde os primeiros contatos com os não indígenas nas décadas de 1910 e 1940, mediados pelo extinto, em 1967, Serviço de Proteção ao Índio - SPI, os extrativistas, os soldados da Comissão de Limites para demarcar fronteiras brasileiras, a presença pertinente das missões, a abertura da Perimetral Norte durante o período da Ditadura Militar, mineradores e garimpeiros que resistem até hoje, os Yanomami tiveram perdas demográficas alarmantes. Então, a partir dessa sua experiência, material e espiritual, o xamã alerta que as relações ocidentais que se incursionam em direção ao seu espaço estão longe de ser o modelo de vida a ser tomado como paradigma. Podemos inferir, de seu depoimento-profecia que, se o povo da mercadoria continuar sua empreitada de desmatamento desmesurado em favor do lucro, o céu irá desabar. E, dessa vez, os xamãs nada poderão fazer para impedir essa tragédia.

Aliás, uma das críticas mais centrais que Davi Kopenawa faz à modernidade, por meio de sua voz-práxis xamânica, consiste exatamente nessa denúncia de que nos transformamos no povo, na cultura da mercadoria. O xamã nos mostra que a modernidade tem uma relação tão essencial com a mercadoria que transcende e subverte o sentido normativo das relações humanas: de fins passamos a ser meios, ao passo que as mercadorias de meios passam a ser fins. Precisamos, a partir dessa reflexão xamânica, retomar e reafirmar uma noção normativa de sociedade humana, de natureza, percebendo essas esferas como totalmente interligadas.

IHU On-Line – A obra é dividida em três partes – Devir outro, A fumaça do metal e A queda do céu. Como cada uma das seções ajuda a explicar as diferentes crises contemporâneas?
Julie Dorrico – A primeira parte da obra, Devir outro, traz a perspectiva da autoafirmação na e pela diferença. No artigo publicado no periódico O eixo e a roda, A literatura indígena como crítica da modernidade: sobre xamanismo, normatividade e universalismo – notas desde A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, o professor Leno Francisco Danner e eu refletimos que o paradigma normativo da modernidade vê o xamanismo como o antípoda da racionalização, defendendo que a crítica, a reflexividade, a emancipação e o universalismo só são possíveis, por meio desse mesmo paradigma em suas características de formalização, neutralidade, impessoalidade e imparcialidade.

Nessa visão, o xamanismo, a cosmovisão ameríndia yanomami não é compreendida como princípio antropológico capaz de autogerir-se, devendo sempre ser tutelada e assumida como menoridade, como criança órfã que precisa crescer, civilizar-se e integrar-se à sociedade do não indígena (muitas vezes deixando de ser indígena). Davi Kopenawa, nesta primeira parte do livro, mostra exatamente o contrário, ele revela que sua crítica, reflexividade e emancipação são possíveis na própria vinculação sociocultural e pertença antropológico-ontológica, tornando-se crítica da modernidade via xamanismo e desde sua diferença. Situando o leitor na origem de seu povo e do mundo yanomami, ele justifica a normatividade que conduz o seu povo, e, por meio da voz e da palavra, vamos conhecendo a potência estética que perpassa esta narrativa. Do estético ao político, do político ao estético, tudo mediado pelo xamanismo. Nessa fórmula, lemos a obra, sobretudo a primeira parte, que se funda em dois conjuntos de narrativas que orientam o mundo tal qual o povo Yanomami reconhece a configuração dele: o primeiro conjunto é do tempo muito remoto em que os ancestrais animais se metamorfoseavam continuamente. Este conjunto, conforme assinala Bruce Albert, descreve a socialidade sem lei dos ancestrais humanos/animais (yarori) da primeira humanidade, que provocou sua metamorfose em caça (yaro), e a de suas “imagens” (utupë) em espíritos xamânicos; e o segundo conjunto trata do tempo em que Omama cria os Yanomami; esta parte também desenvolve a gesta (a criação/trabalho) do demiurgo Omama e ainda de seu irmão, o enganador Yoasi, criadores do mundo e da sociedade atuais.

O objetivo expresso nesta primeira parte da obra consiste em dar-se a conhecer, pois, conhecendo a ordem que guia seu pensamento-outro, talvez, como afirma Kaká Werá, se diminua a distância de entendimento de costumes, valores, mitologias etc. entre a sociedade não indígena e os remanescentes das culturas ancestrais. A primeira parte ajuda-nos a entendermos as diferentes subjetividades que estão constantemente radicadas no signo das minorias, minorias, é claro, em direitos. Essa parte, entre outras lições que enseja, propõe que conheçamos o outro, a cultura do outro, antes de declarar um ódio àquele que não se enquadra no paradigma ao qual fomos educados, o do homem, branco, heterossexual, capitalista e judaico-cristão. O que, no Brasil, penso ser bastante suspeito adotarmos esse modelo, considerando nossa formação de caráter complexo.

Fumaça do metal

A segunda parte, A fumaça do metal, denuncia metalinguisticamente o contato com os não indígenas e as sucessivas epidemias advenientes desse contato. Ela também nos relata sobre como o desastre ecológico afetou diretamente o mundo espiritual, que, por sua vez, depende da floresta para (sobre)viver perto dos Yanomami. Os espíritos, os xapiri, são seres sensíveis que se comunicam com o xamã quando este fica em estado de fantasma, isto é, quando bebe o pó da yãkoana que o coloca em transe capaz de comunicar-se com o mundo espiritual. Os espíritos habitam esse plano imaterial que se situa na floresta, no céu, no subterrâneo, em todos os lugares.

Gostaria, contudo, de ressaltar dois aspectos em especial: o primeiro é que os xapiri não tocam no plano material, quando eles querem ficar perto dos humanos, eles caminham pela floresta por um caminho espelhado que eles mesmos projetam e criam, nunca tocando o chão; eles são por demais puros. Quando um xamã bebe o pó da yãkoana, os espíritos os ensinam, pelo canto e dança, a caçar, curar doenças, a celebrar a vida. Contudo, com a ação predatória do não indígena, o desmatamento desmesurado da floresta, este forasteiro coloca em risco não só a sobrevivência física do sujeito yanomami, sobretudo a cosmologia na qual os Yanomami radicam seu modo de vida. Antes do contato, quando um yanomami ficava doente, na cultura yanomami a doença significa que a imagem do sujeito está sendo atacada por um espírito (yarori), e os xapiri precisam intervir recuperando a imagem desse sujeito, resgatando-a do ancestral animal raptor, e devolvê-la ao paciente yanomami. Hoje, com as epidemias do ‘branco’, os xapiri pouco podem fazer para ajudar. Estas imagens (estas doenças), eles não as conhecem, por isso não podem fazer nenhum ritual de cura e, além disso, a doença física resultante do contato com o branco significa a doença no plano espiritual dos xapiri. O mundo material e espiritual adoece concomitantemente pondo em risco toda a vida comunitária.

A fumaça do metal, entendida pelo xamã como uma fumaça presente nas ferramentas utilizadas pelos brancos na aldeia ou deixadas aos Yanomami sob a forma de presentes, foi a responsável por reduzir demograficamente os Yanomami em razão de sua constituição diferenciada da do branco. Soma-se a esse contato, nesta parte do livro, a abertura da Perimetral Norte no território sul dos Yanomami, na década de 1970; os projetos de colonização agrícola e ação dos soldados da Comissão Demarcadora de Limites e Fronteiras - CDBL. Todos estes projetos empreendidos pelo governo brasileiro no período da Ditadura Militar foram prejudiciais à consistência do povo Yanomami que, em todos estes períodos, sofreram com perdas e mortes. A ação da equipe de Demarcação de Fronteiras teve consequências dramáticas aos Yanomami; esta ação divulgou as jazidas de minério localizadas no território Yanomami, abrindo picadas e estradas aos mais de 40 mil garimpeiros que viriam explorar aquela região. A atuação de Davi destaca-se na denúncia e luta pela demarcação daquele território, contando com a ajuda de ONGs nacionais e internacionais. A explicação dada dos mundos físico e espiritual revela o esmero para com a floresta e a vida comunitária. As técnicas de subsistência residem no cuidado com o solo, no equilíbrio com a caça na natureza, não poluindo o rio. Orientados por uma entidade espiritual, os Yanomami mostram que sua razão, negada pela modernidade, opera em simbiose, revelando que as formas de vida, para não desaparecerem, precisam atuar de modo coordenado com a natureza e que o não indígena precisa respeitar a vida do sujeito yanomami. Isto é, o não indígena precisa reaprender, reeducar suas formas de relações materiais e subjetivas.

A queda do céu

Por fim, a terceira parte, intitulada A queda do céu, fala do ato político do sujeito Davi em defesa da Terra Indígena Yanomami. Fala um pouco mais de sua empreitada com a União das Nações Indígenas - UNI que começava a articular-se em favor dos povos indígenas no país. Das suas primeiras viagens em defesa da demarcação da TY, o reconhecimento da importância de suas palavras serem publicizadas para além das florestas. As palavras em defesa da floresta são um alerta de que, se os brancos, o povo da mercadoria, continuarem explorando desenfreadamente a natureza, esta implodirá, haverá destruição dos biossistemas e as hastes que sustentam o céu não poderão ser seguradas pelos xamãs, ou seja, decretaremos a nossa própria morte. A paixão pela mercadoria, na visão do xamã, torna o ‘branco’ ganancioso, sempre com o intuito de acumular mais, incapaz de compartilhar suas pertenças. Na contramão da posse, em todos os sentidos, os Yanomami são desprendidos dela, isto porque os objetos não morrem. Os objetos são diferentes dos homens que adoecem, envelhecem e morrem facilmente. Já os objetos não, eles relembram aqueles que as usavam, por isso compartilham para longe estes objetos para não ficarem tristes com a lembrança no objeto do parente que se foi. Outro aspecto a ressaltar é a certeza da morte. Sabendo que vão morrer, os Yanomami desprendem-se facilmente de seus objetos, evitando, assim, a avareza. Com o sentido de partilha coletiva, baseado na economia da troca, os Yanomami evitam ser escravizados por estas mercadorias. Esquivam-se do consumo exagerado e partilham tais objetos, estendendo a amizade para além da comunidade. Nas palavras de Davi: “Se não fosse assim, seríamos como os brancos, que maltratam uns aos outros sem parar por causa de suas mercadorias”.

Portanto, esta expressão yanomami, dividida em três partes, formato escolhido por Bruce Albert, nos ensina, a partir da prática da reflexão, a necessidade de conhecermos um povo, uma cultura e nos relacionarmos com ela antes de a segregarmos por sua diferença radical; que o governo brasileiro foi responsável pela dizimação de muitos povos indígenas com os projetos desenvolvimentistas e expansionistas em relação às regiões centro-oeste e norte, e em particular pelas mortes, de modo direto e indireto, na comunidade Yanomami; e, por fim, a importância de se cultivar uma rede de partilha coletiva de bens materiais e espirituais, a fim de evitar tratamentos inadequados na relação com o outro e na relação com o meio ambiente.

IHU On-Line – O que significa a decisão e a estratégia de Kopenawa de colocar em “peles de papel” suas memórias e falar sobre certos conhecimentos tradicionais dos Yanomami? Qual a importância política desse ato?
Julie Dorrico – Imprimir suas palavras no livro, na “pele de papel”, denota o reconhecimento do alcance dos instrumentos tecnológicos da sociedade majoritária. A palavra oral passada milenarmente de geração em geração não conseguiu frear as incursões predatórias dos não indígenas, nem os projetos do governo contra o seu povo. Reconhecer que o livro, ao lado de outras mídias, pode alcançar a sociedade não indígena, pode ser tomado como ato político na medida em que em um duplo movimento busca ser bem sucedido: ao mesmo tempo em que o xamã dá a conhecer sua tradição ancestral, afirmando sua alteridade, ele denuncia, no corpo do texto, as investidas contra seu povo.

Esse ato é importante, porque marca uma presença, uma voz, via livro impresso, literatura, antropologia, sua reivindicação pelo direito à re-existência. A sociedade não indígena despersonaliza o sujeito indígena porque se agarra ao imaginário construído desde os textos fundacionais do país escritos sob a ótica do colonizador e reproduzidos na literatura, na história, em quase todos os campos de saber. Colocar as palavras, a história em peles de papel significa inscrever o povo Yanomami na história do país, mas uma história adveniente desde si mesmo, de sua experiência e característica calcadas na diferença. Em suma, os indígenas – e, em nosso caso, Davi Kopenawa – escrevem para publicizar condição e a causa indígena, para consolidá-la na sociedade civil, para afirmarem-se como sujeitos público-políticos, desde sua singularidade antropológica.

IHU On-Line – Como esta obra ajuda a compreender uma outra ordem de conhecimento que tensiona o modo hegemônico do Ocidente de pensar o ser humano e a relação com o ambiente?
Julie Dorrico – Conforme falei antes, um dos aspectos centrais da racionalização é exatamente a instrumentalização da natureza e até das relações humanas em muitas situações, inclusive levando à separação (não apenas teórica, mas também política) entre sociedade-cultura e natureza. O xamanismo de Davi Kopenawa, em contrapartida, apresenta uma concepção fundamentalmente normativa de natureza e ser humano e imbrica de modo profundo e mutuamente dependente natureza e sociedade. O xamanismo é uma crítica saudável a esse modelo paradigmático ocidental, é uma crítica que nos invoca a sermos mais sensíveis com o outro e com a natureza.

IHU On-Line – Em vários trechos da obra, Kopenawa desloca o protagonismo para diferentes atores, seja seu sogro, seja os espíritos xamãs, seja os demais seres da floresta. Como isso evidencia a cosmologia yanomami?
Julie Dorrico – O protagonismo é continuamente deslocado para diferentes atores porque a narrativa, tal como o pensamento, não segue a lógica ocidental. O sujeito histórico, Davi Kopenawa Yanomami, não se desvencilha do sujeito mítico, o xamã. Aliás, esta relação une inextricavelmente história pessoal e destino coletivo. Isto é, a autobiografia indígena aqui apresentada não pode ser dissecada na fórmula do sujeito individual individualizante ocidental, senão que reflete o coletivo, a pertença étnica, como o ponto de partida para se entender a voz-práxis indígena. O “eu” que narra é o “eu” coletivo, mas é também o “eu” individual que não se dissocia de sua etnia, por isso plural. Este conceito postulado por Oscar Sáez, de autobiografia indígena, anteriormente encontrado nas narrativas de indígenas norte-americanos, e desenvolvido por Suzane Lima Costa na área da teoria da literatura, não nega a voz aos sujeitos indígenas, reconhece-a em suas manifestações culturais. Por isso fica fácil perceber o descentramento de si para o sogro, para os espíritos, para o demiurgo, floresta, rios, porque a narrativa é desenvolvida nessa perspectiva de caráter pessoal e coletivo, individual e étnico, do homem em seu contexto.

Isso evidencia que a cosmologia opera em termos interligados, e não individuais e individualizantes; isso evidencia, inclusive, que a perspectiva ontológica, esse todo imbricado e relacional, é a base seja da autocompreensão antropológica indígena, seja de sua vinculação público-política como sujeito indígena que fala em nome de um coletivo. A expressão de Davi, a sua voz narrativa que aqui entendemos como autobiográfica, é capaz de situar o leitor na cultura yanomami sem necessariamente passar pela experiência solitária do sujeito, mas de como todo o coletivo são importantes para a sobrevivência do povo. Indica, ainda, que a pertença étnica valoriza a tradição ancestral e a sabedoria que ela tem ensinado aos Yanomami.

IHU On-Line – De que forma a narrativa da obra, autoetnográfica, oferece um novo campo de produção de conhecimento sobre os saberes ameríndios?
Julie Dorrico – A narrativa, adveniente da experiência de Davi, articula uma nova forma de produção de conhecimento. Essa experiência de autoetnografia reconfigura a impressão tida sobre os Yanomami, representados na sociedade ocidental pelo antropólogo norte-americano Napoleon Chagnon como “o povo selvagem”. Utilizando o conceito de Mary Louise Pratt, no livro Ojos imperiales: literatura de viajes y transculturación (Fondo de Cultura Economica USA, 2010), que compreende o conceito como a capacidade de reformulação da representação realizada historicamente sobre os sujeitos periféricos, em resposta a esses textos ou como forma de dialogar com eles, vemos que, a partir dessa experiência autoetnográfica, o xamã Kopenawa pode, para além da reconfiguração da imagem de seu povo e a sua, compartilhar outras epistemologias que não se subsumem ao binarismo moderno: natureza x cultura, indígena x não indígena, mulher x homem etc. A escolha do escritor Bruce Albert na ênfase do relato autoetnográfico possibilita a troca de ideias com outros grupos em suas especificidades culturais, epistemológicas. Inclusive, nesse relato autoetnográfico, não temos mais a descrição objetiva (porque imparcial, impessoal e neutra) do observador extemporâneo acerca de uma sociedade pré-moderna e de sua socialidade-subjetividade tradicional, mas exatamente a autoexpressão e a autoafirmação pública das próprias diferenças, sem mediações tecnicistas, cientificistas e institucionalistas (estas, no máximo, assumem um caráter periférico, porque central é a própria voz-práxis das diferenças, no caso do próprio indígena).

IHU On-Line – Qual a relação da linguagem dos brancos com a instauração das crises da modernidade nas quais estamos inseridos? Como o pensar é revelado no falar?
Julie Dorrico – Uma das características fundamentais do pensamento ocidental está em que a objetividade e a validade teórica é dada pela constituição e pela aplicação de uma linguagem técnica, calcada em um procedimentalismo imparcial, neutro, impessoal e formal, de cunho altamente institucionalista e cientificista, centralizada e monopolizada exatamente pelas instituições e seu pessoal lógico-técnico, assumindo uma dinâmica autorreferencial, autossubsistente, autossuficiente e endógena que, no mais das vezes, (a) prescinde das pessoas comuns e deslegitima o senso comum, bem como (b) estabelece, desde uma perspectiva eurocêntrica e colonialista, uma cisão entre razão e mito-fé, entre modernidade e pré-modernidade ou tradicionalismo que deslegitima o não moderno como algo inferior, incapaz de expressão justificada, incapaz de reflexividade, criticidade e universalismo e, por isso mesmo, dogmático, fundamentalista, fanático.

Nesse sentido, a utilização do xamanismo como base da expressão pública do indígena procura mostrar exatamente a pluralidade e a potência das múltiplas formas de expressão, de ser e de estar no mundo de cada cultura, de cada povo, no caso do povo Yanomami – são perspectivas não apenas suficientes, mas totalmente capazes de fundar e de sustentar sentido, validade e vinculação. E, com isso, não precisamos ser modernos e nem assumir uma perspectiva modernizante para fundarmos a crítica, a reflexividade e a emancipação.

IHU On-Line – Por que a civilização ocidental deveria ler/ouvir atentamente as palavras de um xamã yanomami? Qual a originalidade de seu pensamento sobre o mundo contemporâneo?
Julie Dorrico – A civilização deveria ler/ouvir/conhecer as palavras dadas pelo xamã yanomami, porque elas possuem a voz da ancestralidade. Porque elas nos ensinam modelos alternativos de convivência com o meio ambiente, com o homem, e com a própria noção de posse e partilha. E, além disso, porque elas nos apresentam uma diferença antropológica relatando-se, apresentando-se a nós, para além das caricaturas que dela fizemos. Sua originalidade consiste na condição antropológico-ontológica que resiste no tempo e no espaço. Não obstante a violência perpetrada continuamente contra os povos indígenas, contra o povo Yanomami, eles seguem existindo, contrariando o agronegócio, a bancada ruralista, da bala, da Bíblia e do boi. A mensagem do xamã estende-se não apenas em sua defesa, mas na de todos os humanos. A destruição maciça da floresta prejudica não somente o modo de vida dos Yanomami, mas também daqueles que a destroem. Controlada por empresas que detêm o monopólio econômico, a riqueza de poucos traz sérias consequências para muitos. É nesse sentido que devemos ouvir o que diz o xamã para aprendermos que a Terra não é colônia de exploração, é o lugar que habitamos, de que ela não é uma propriedade, mas uma partilha, um presente que foi dado gratuitamente a todos e para o usufruto de todos.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Julie Dorrico – Gostaria de enfatizar que citei outros livros de autores indígenas e não indígenas nesta entrevista que podem ajudar na compreensão da expressão indígena via literatura. Lembrando sempre que este conceito é usado de modo alargado, pois abarca outras expressões advenientes de suas próprias culturas e não somente aquele formato ocidental conjugado à escrita alfabética. O conhecimento da literatura indígena é, também, uma forma de descolonização do pensamento e dos saberes ocidentais como essencialmente homogeneizantes e determinantes do que podemos gostar-estudar-conhecer, tal como o xamã yanomami nos ensina na obra A queda do céu. Esta abertura a outras epistemologias é uma alternativa para dialogarmos com as diferenças, educando-nos com novos olhares e saberes, sobretudo, pelo que tenho aprendido com essa literatura, em termos de sensibilidade às diferenças. ■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição