Edição 519 | 09 Abril 2018

Desafio é integrar a Constituição à sociedade

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João Vitor Santos

Lenio Streck destaca que, antes de pregar uma reforma constitucional, é preciso compreender e aplicar plenamente a Carta de 1988. Para ele, algo que não é feito nem pelos juristas de hoje

Crise econômica, institucional, política e ética. Num momento de ressaca e inebriamento decorrente dessas crises, a solução mais apressada que surge é a de repensar a Constituição de 1988. Entretanto, o jurista Lenio Streck afirma que o ponto é outro: é preciso, primeiro, conhecer e aplicar plenamente o que já está posto no texto constitucional. “Hoje em dia defender a Constituição (e o Direito) é uma tarefa árdua”, brinca. Segundo ele, é preciso compreender que a “Constituição não deve conter uma preocupação absoluta com o Estado, mas ser mais ampla, constituindo também a sociedade”. “A crise que se observa tem (des)constituído o Estado e (des)legitimado o instrumento constitucional como instrumento estabilizador da sociedade a partir de demandas nem sempre internas dos Estados Nacionais”, acrescenta.

Lenio, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ainda destaca que essa inabilidade de apreender a Carta de 88 é, inclusive, uma deficiência entre seus pares. “Os juristas têm se preocupado pouco com o Direito nos dias de hoje. Nas faculdades de Direito os alunos e professores se preocupam com ciência política, economia, moral. E o Direito fica atirado. Lá no cantinho da sala. Com o STF não é diferente”, critica. Ele vai além e defende que é preciso “baixar a bola”. “Nós, juristas, sabemos muito menos do que achamos que sabemos. Por isso que devemos seguir a Constituição. Nos amarrar às correntes”, constata.

Lenio Luiz Streck é mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, com pós-doutorado pela Universidade de Lisboa. Atua como professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos. Também é membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Entre suas publicações mais recentes, destacamos Hermenêutica e Jurisdição: diálogos com Lenio Streck (Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017), Hermenêutica (São Leopoldo: Edição do Autor, 2017) e Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito (Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A Constituição de 1988 é fruto de um longo processo de construção de democracia, com destaque para a participação popular. O Brasil de hoje já compreendeu esse processo? Por quê?
Lenio Streck – Não. Digo isso, sobretudo, pela presença facilmente constatável daquilo que denomino de “baixa constitucionalidade”. Baixa constitucionalidade significa baixa compreensão, que ocorre porque parte minoritária da doutrina e a jurisprudência continuam assentadas em dicotomias ultrapassadas. Por exemplo, por vezes o Judiciário se agarra à letra da lei; em outras, ignora aquilo que podemos chamar de limites semânticos do texto legal. Ou seja, de um lado ainda se utiliza uma hermenêutica clássica de cunho reprodutivo; de outro, impera o subjetivismo. O bizarro é que às vezes em uma mesma decisão se diz que está claro o texto legal e, mais adiante, a clareza é ignorada. Tudo porque se ideologizou a aplicação do direito. Na maior parte das vezes ocorre um solipsismo judicial, a partir do que chamo de Privilégio Cognitivo do Juiz - PCJ. Dependemos, pois, da vontade de quem julga.

Na verdade, há uma crise no ensino jurídico que impossibilita a comunidade jurídica de compreender que a Constituição tem, por excelência, um papel contramajoritário. Ela serve justamente para que não caiamos na tentação de apostar em clamor público e coisas do gênero. Nem o juiz é escravo da lei e nem é o dono da lei. A democracia pressupõe a presença do povo no processo decisório, contudo, esse deve ser garantido mediante espaços reais de presença e de conhecimento sobre quais são os temas essenciais à democracia contemporânea e os limites necessários a sua consolidação.

IHU On-Line – Como compreender o espírito do processo constituinte? E, na prática, a Carta Magna mantém ou se afasta desse espírito?
Lenio Streck – Venho defendendo há anos que essa ideia de espírito do legislador – ou do constituinte – acaba levando a equívocos. Santiago Nino , um conhecido jurista, sempre ironizou as “propriedades que caracterizam o legislador racional”, uma vez que “ele” é uma figura singular, não obstante os colegiados etc. É permanente, pois não desaparece com a passagem do tempo; é único como se todo o ordenamento obedecesse a uma única vontade; é consciente, porque conhece todas as normas que emana; é finalista, pois tem sempre uma intenção; é onisciente, pois nada lhe escapa, sejam eventos passados, futuros ou presentes; é onipotente, porque suas normas vigem até que ele mesmo as substitua.

É de se perguntar: pode alguém, ainda, acreditar em tais “propriedades” ou “características” do “constituinte”? No final das contas, o “espírito” do constituinte acaba servindo de álibi retórico para tentar legitimar decisões arbitrárias. A melhor forma de, se assim quisermos, compreender o “espírito do constituinte”, é interpretar a Constituição levando em conta aquilo que Gadamer nos lega: “quem quer dizer algo sobre um texto deve deixar que o texto lhe diga algo antes”.

IHU On-Line – Vivemos hoje um estado de democracia plena? Como, a partir da Constituição de 1988, radicalizar o conceito de democracia popular?
Lenio Streck – Estamos vivendo num ambiente em que a democracia na sociedade contemporânea de modo geral e, no Brasil, especialmente, está em constante redefinição. A “Democracia plena” nem a Grécia, berço do pensamento ocidental, vivenciou. Bonavides já havia destacado, no início dos anos 2000, sobre os limites que a democracia formal-representativa significa para o Brasil e, nesse sentido, indicava a potencialidade da democracia participativa para a consolidação de uma democracia que de fato amplia e radicaliza o conceito de democracia popular. Superar o procedimentalismo e consolidar um ambiente democrático substancialista.

Em Paulo Bonavides se percebe dois problemas que se destacam, entre outros, como o da necessidade de (in)corporação da democracia direta como necessária ao terceiro milênio, como forma de garantir o exercício do poder pelo povo e a “(des)politização da legitimidade”, uma vez que a legitimidade, enquanto crença ou valor fundamental de sustentação do poder com base no consenso dos governados, é um conceito histórico, aberto e apresenta um conteúdo variável que sempre deve ser atualizado intensamente em uma Constituição.

IHU On-Line – Quais os campos em que a Constituição trouxe maiores avanços? E que pontos não foram tocados?
Lenio Streck – Torna-se vital a reincorporação de um sentido mais amplo à Constituição. Essa deve manter parcela de sua visão institucionalizada; contudo, precisa-se desenvolver uma análise crítica da necessidade de integrar a sociedade à Constituição, conforme as condições impostas por uma sociedade complexa. A Constituição não deve conter uma preocupação absoluta com o Estado, mas ser mais ampla, constituindo também a sociedade. A crise que se observa tem (des)constituído o Estado e (des)legitimado o instrumento constitucional como instrumento estabilizador da sociedade a partir de demandas nem sempre internas dos Estados Nacionais.

Dito isso, a Constituição é um documento político por excelência. Então responder sobre “avanços” é uma questão complicada, na medida em que o que significa um avanço para um progressista pode significar um retrocesso para um conservador. Contudo, sob a perspectiva de uma sociedade democrática, penso que é seguro afirmar que um avanço inegável foi o rol de direitos fundamentais expostos no art. 5º. Retrocesso? A reforma trabalhista que vai contra a Constituição.

IHU On-Line – Com base na atuação do Supremo Tribunal Federal em casos recentes, podemos afirmar que o Judiciário atende ao clamor das ruas ou ao clamor da Constituição?
Lenio Streck – O Supremo Tribunal Federal tem procurado responder aos anseios das ruas, sobretudo em matérias penais. Eu tenho brincado muito com essa questão, afirmando que sou um constitucionalista, mas sou limpinho. Hoje em dia defender a Constituição (e o Direito) é uma tarefa árdua. O professor de direito constitucional é um subversivo diante do desrespeito da Constituição. Quando digo que devemos respeitar o texto Constitucional, não prendendo condenados em 2º grau, sou taxado de abolicionista, marxista etc.; quando defendi que a decisão do STF que autorizou o aborto foi ilegal, fui taxado de conservador, fascista etc. Veja que interessante, pois sou taxado de tudo, menos daquilo que gostaria de ser, isto, um jurista constitucionalista. Disso tudo, posso dizer que os juristas têm se preocupado pouco com o Direito nos dias de hoje. Nas faculdades de Direito os alunos e professores se preocupam com ciência política, economia, moral. E o Direito fica atirado. Lá no cantinho da sala. Com o STF não é diferente.

O mais importante jusfilósofo do século XX, Ronald Dworkin , perguntava, em casos de extrapolação nas decisões judiciais (ativismo), acerca de quanto estamos dispostos a pagar para que todos tenham direitos (e eu acrescento: inclusive nossos adversários ou inimigos). A minha pergunta, aqui, é a mesma que fiz no caso do juiz que resolveu, por sua conta e risco, que um pai de gêmeos podia usufruir, por conta do erário público, 180 dias de licença paternidade. Eu indagava: quanto estamos dispostos a pagar? E agora pergunto, no caso do cumprimento de pena em 2º grau: quanto queremos investir? Todos os nossos recursos democráticos? Vamos bancar que tipo de jogo? O jogo da Constituição ou o jogo do clamor das ruas? Ou da mídia?

Advirto a todos que, na famosíssima metáfora de Ulisses , este só se salvou das sereias porque ordenou que os marujos o amarrassem ao mastro e não obedecessem a nenhuma outra ordem em contrário. Sobreviveu. Será que sobreviveremos se continuarmos a tomar decisões ad hoc? Entre o clamor das ruas e o ronco da Constituição fico com a Constituição.

IHU On-Line – Na perspectiva do Direito Penal, qual a função da Carta Magna? Pode ser tomada como instrumento para combater o crime?
Lenio Streck – Combater o crime é uma questão de política pública. Existem órgãos responsáveis e que estão (ou pelo menos deveriam estar) atentos a essas questões. Deveriam estudar os problemas de criminalidade para, dentro do âmbito do executivo ou do legislativo, tomar as medidas mais adequadas para cada caso. Respondendo objetivamente, juristas não devem usar o Direito para combater o crime. Constituição é uma carta de direitos. Contra o Estado.

O meu argumento é, em certa medida cético, com relação à capacidade da razão humana (e não com a razão em si). Hoje, um juiz acaba enfrentando um problema de repercussão econômica; amanhã, um problema que tem repercussões políticas e públicas, como o exemplo do combate ao crime; depois, cai em sua mesa um processo com uma questão moral altamente contestável, como o caso do aborto. Como esperar que o juiz seja um cientista político hoje, um economista amanhã e, depois um filósofo moral?

Meu argumento, cético, vai no sentido de “baixarmos a bola”. Nós, juristas, sabemos muito menos do que achamos que sabemos. Por isso que devemos seguir a Constituição. Nos amarrar às correntes. No fundo, o canto das sereias para os juristas, sobretudo os juízes, é a sua própria razão lhe sussurrando no ouvido: “você sabe muito de economia (embora nunca tenha lido um livro sequer sobre o tema); adote um critério econômico para resolver esse problema e deixe o Direito de lado”. E isso é a morte do direito.

É muito perigoso apostar em um juiz, sem nenhuma formação específica, para resolver controvérsias políticas, morais e econômicas (que os próprios especialistas da área divergem). No final, a decisão acaba virando um “achismo” do juiz sobre a questão. Pergunte para qualquer um: “você quer que sua demanda seja definida pelo Direito ou pelo senso de justiça do juiz?”. Esse é o ponto.

IHU On-Line – O que os episódios relacionados à Operação Lava Jato revelam acerca de nossa maturidade constitucional?

Lenio Streck – Revelam que a maturidade constitucional não existe. Para se ter uma ideia da gravidade do problema, Alexandre Morais da Rosa escreveu, em 2015, um texto perguntando “Como é possível ensinar processo penal depois da operação ‘lava jato’?” . Respondi esse texto dizendo, em suma, que sequer ensinávamos o processo penal antes da operação “lava jato” .

Aliás, se o nosso Direito não estivesse afundado em uma crise profunda, a própria operação “lava jato” não teria sido possível. Costumo falar que isso tudo é fruto de muito “esforço”. São anos de um ensino jurídico de péssima qualidade, formando, quando muito, profissionais especialistas em má TPP (Teoria Política do Poder).

Portanto, o nosso Direito perdeu completamente sua racionalidade, que deveria ser própria. Pessoas em bares, nos finais de semana, discutem tomando cerveja o que acham mais correto ou não para os problemas jurídicos. Só que o bar adentrou o Direito. Hoje em dia, juristas raciocinam assim.

Muitos já me contestaram, dizendo que é implicância minha. Mas em qual outra área do conhecimento se verifica um professor ensinando uma ação constitucional com o “funk da aprovação”? Quero ver quem é que vai se operar com um médico que aprendeu a fazer cirurgia cardíaca com o “sertanejo da operação”? (não posso perder a oportunidade de dizer que vai ser uma “sofrência”); ou vai passar por cima de uma ponte em que o engenheiro estudou pelo “manual descomplicado de construir pontes”? Já escrevi rios de tintas sobre isso.

No Direito isso é aceito com uma normalidade assombrosa. É terrível. E o efeito prático disso é que o Direito não possui mais critérios para nada. Não temos critérios para questões essenciais como a valoração probatória. Nada mais natural que a “lava jato” represente apenas aquilo tudo que foi “construído” com muito “esforço” (por favor, não esqueça as aspas), motivo pelo qual simplesmente não existe uma “maturidade constitucional” nesse país.

IHU On-Line – A emergência de uma reforma política revela que a proposta de sistema político pensado pela Constituição de 1988 se esgotou? Quais os desafios para se “reformar” o sistema político brasileiro?
Lenio Streck – Sou um constitucionalista ortodoxo. Não penso que a Constituição tenha se esgotado embora ela tenha alguns pontos que poderiam ser repensados. Acho até contraditório sustentar que a culpa de tudo é a Constituição quando tudo o que se faz é não cumpri-la.

Quero dizer que é preciso uma boa leitura da realidade. Se a Constituição não é cumprida e se o quadro político é caótico, em que medida uma nova Constituição vai resolver os problemas? Não vão ser as mesmas figuram carimbadas que vão manejar essa nova Constituição?

IHU On-Line – No que residem os argumentos, tão em voga hoje, de que se precisa de uma reforma constitucional? Quais os riscos de se mexer na Constituição nesse momento?
Lenio Streck – Os principais argumentos utilizados pela reforma constitucional seguem a linha de questionar o caráter programático da Constituição. Existem muitas questões de políticas públicas que adentram de forma detalhada dentro da CF como, pegando apenas um exemplo, a diretriz do art. 42 do ADCT, que determina que “Durante 40 (quarenta) anos, a União aplicará dos recursos destinados à irrigação: I - 20% (vinte por cento) na Região Centro-Oeste; II - 50% (cinquenta por cento) na Região Nordeste, preferencialmente no Semiárido”. De fato, esse tipo de previsão acaba até engessando as políticas públicas, na medida em que a alteração da Constituição carece de um procedimento muito mais moroso e lento do que uma lei ordinária.

É difícil fazer um prognóstico sobre os riscos de alterar substancialmente uma Constituição no momento, sobretudo pelo fato de que, conforme já mencionei, a nossa Constituição não é, de fato, aplicada. ■

Leia mais

- Lava Jato: Quando a exceção se torna regra. Artigo de Lenio Streck, publicado nas Notícias do Dia de 6-12-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
- Inconstitucionalidade do crucifixo? Artigo de Lenio Streck, publicado nas Notícias do Dia de 19-10-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
- ''A PEC 37 é produto de lobby poderoso da polícia''. Entrevista especial com Lenio Luiz Streck, publicada nas Notícias do Dia de 19-12-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
- ''O CNJ está incomodando setores do Judiciário''. Entrevista especial com Lenio Streck, publicada nas Notícias do Dia de 9-1-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
- O crime e a sociedade estamental no Brasil. Artigo de Lenio Streck, publicado no Cadernos IHU Ideias, número 178.

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