Edição 519 | 09 Abril 2018

A vida pulsante, da nascente à foz, em um dos rios mais poluídos do Brasil

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Lara Ely* | Edição: Ricardo Machado

Sociedade civil se aproxima do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, para resgatar a potência de sua força vital

No momento em que os olhos do Brasil e do mundo se voltaram para debater o uso público dos recursos hídricos em Brasília, dentro do Fórum Mundial da Água, o manancial do Vale dos Sinos desperta a atenção de uma série de televisão chamada Cidades Azuis. Trata-se de uma produção documental que retrata a realidade dos rios do Sul e Sudeste do país, com foco em mostrar os arranjos produtivos locais. Personagens das regiões de nascente, curso e foz do Sinos foram mapeadas para retratar problemas e soluções relacionados a sua gestão, qualidade e sustentabilidade. O intuito é mostrar que, se na superfície as cidades são cinzas, em seu subterrâneo elas pulsam azuis.

Ouvir as histórias que estabelecem conexões entre os atores que ligam essas partes faz parte do propósito do trabalho. Ao percorrer o rio de ponta a ponta, a equipe da pesquisa encontrou realidades bastante distintas. Se na nascente, perto de Caraá, na Serra Geral, a duas horas de Porto Alegre, ele corre com suavidade e mansidão por lugares onde a vida também tem um ritmo menos apressado, no desenrolar de seu curso a paisagem muda de forma abrupta. Conforme se aproxima da região metropolitana, mais urbanizada e com maior concentração populacional, o Sinos sofre com a carga de esgotos domiciliares e dejetos industriais, culminando em uma zona de podridão que abrigou, em 2006, a maior mortandade de peixes devido à poluição já vista no Estado.

A origem de todo o mau trato vem do despejo de esgoto doméstico não tratado e de resíduos industriais. Entre esses dejetos das fábricas, estão as sobras do curtimento do couro, um dos pontos fortes da economia do Vale, importante polo coureiro-calçadista do Brasil. A soma de tanto descaso faz do Sinos o quarto rio mais poluído do Brasil, segundo Indicadores de Desenvolvimento Sustentável - IDS publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, em 2012.

Nascente

Nascido no platô de uma cascata de 116 metros de altura, cujo acesso se dá após uma caminhada de duas horas pela mata fechada, o ponto onde nasce o rio desperta a curiosidade de viajantes, ecoturistas e amantes de trilhas. O difícil acesso, dado a partir da comunidade de Fraga, a 15 quilômetros de Osório, é um ingrediente a mais para quem procura aventura. Por ali, compõem o cenário a paisagem agrícola, ateliês de montagem de sapatos e uma vida pacata do interior. Dono das terras onde está a cascata da nascente, o fotógrafo Ivan é uma espécie de guardião desta riqueza. Para ele, que mora em Santo Antônio da Patrulha e visita o local somente nos finais de semana, a região serve como escape, refúgio de paz onde ele busca tranquilidade em meio à natureza. Ele simboliza a resistência, já que a maioria dos antigos moradores saiu em busca de lugares mais produtivos e movimentados para viver.

 

Ivan de Paula, dono das terras onde está a cascata da nascente do Rio dos Sinos, é uma espécie de guardião desse patrimônio natural

Foto: Lara Ely/@ecohistorias

 

Há duas horas dali, em altitudes superiores a 800 metros, está a cidade de São Francisco de Paula, uma das 32 cidades que compõem a Bacia do Rio dos Sinos e possui em seu território rios que são afluentes. Nesta região já é possível observar suas curvas, característica que levou à origem do nome, como escreveu em seu blog o agrônomo, jornalista e ecologista Arno Kayser. Uma das histórias diz que no rio foram encontrados vários sinos. Outra conta que estes sinos seriam parte de imensas riquezas lançadas ao rio pelos Jesuítas fugidos das missões guaranis – que até hoje tocam para lembrar o crime cometido por portugueses e espanhóis.

Comitê da Bacia dos Sinos

Na região dos Campos de Cima da Serra vive a professora do Curso de Gestão Ambiental e Coordenadora do Curso de Mestrado Ambiente e Sustentabilidade na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - Uergs Márcia Berreta. Geógrafa com mestrado e doutorado em Análise Ambiental, ela fez um estágio na Université du Maine, em Le Mans, na França, onde aprimorou conhecimentos sobre a legislação de recursos hídricos. Márcia gosta de desafiar os alunos a pensar sua relação com os recursos naturais, por exemplo, quando os convida para descer as corredeiras do Rio Paranhana durante um passeio de rafting. Segundo ela, é preciso conhecer para preservar, é preciso estar perto da natureza para entender o valor que ela tem. Como na música de Almir Sater, “é preciso amor pra poder pulsar”. Ela relembra que o Comitê da Bacia dos Sinos foi o primeiro mecanismo deste tipo a ser implementado no Brasil, porém, apesar de ser importante instrumento de gestão, não tem poder executivo, o que torna limitado o poder de seus articuladores.

 Segundo Márcia, apesar da qualidade da água ser boa em grande parte das nascentes e no alto da Serra, existem por todo o seu curso depósitos de lixos e ligações de esgotos irregulares que contribuem para gerar impacto negativo no rio. A melhoria do problema dependeria de uma eficiente gestão do saneamento, mas as ligações irregulares de esgoto domiciliar (da rede cloacal na pluvial) atrapalham o processo.

 Alcance

Também pudera. Antes de chegar até a foz, localizada junto ao delta do Jacuí, no município de Canoas, numa altitude de apenas 5 metros, o Sinos deslocou-se por uma área de 3.693 km², o equivalente a 1,3% do território estadual. Teve contato com uma população estimada em 1,3 milhão de habitantes, moradores de Araricá, Cachoeirinha, Campo Bom, Canela, Canoas, Capela de Santana, Caraá, Dois Irmãos, Estância Velha, Esteio, Glorinha, Gramado, Gravataí, Igrejinha, Ivoti, Nova Hartz, Nova Santa Rita, Novo Hamburgo, Osório, Parobé, Portão, Riozinho, Rolante, Santa Maria do Herval, São Francisco de Paula, São Leopoldo, São Sebastião do Caí, Sapiranga, Sapucaia do Sul, Santo Antônio da Patrulha, Taquara e Três Coroas.

Articular a gestão do saneamento, abastecimento e decisões políticas que impactam toda essa rede é o trabalho que o engenheiro ambiental John Wurdig tem se ocupado em desempenhar dentro do Consórcio Pró-Sinos. Instalada em São Leopoldo, a entidade busca mapear caminhos para a gestão sustentável do rio, além de defender, ampliar e promover a interação, fortalecer e desenvolver a capacidade administrativa, técnica e financeira dos serviços públicos de saneamento básico nos municípios que integram o consórcio. Não é tarefa simples, mas John busca suporte em pesquisas acadêmicas, suporte das prefeituras e apoio de uma estrutura de educação ambiental.

Sua missão seria ingrata se fosse solitária. Mas a boa notícia é que, além dele, há outras pessoas cujos trabalhos despertam mais esperança do que desilusão. Dois exemplos rápidos que misturam empreendedorismo e conservação ambiental jogam luz para analisarmos o futuro do Sinos. O primeiro deles é o trabalho da Insecta Shoes, uma empresa de sapatos veganos, que reaproveita resíduos da indústria calçadista como matéria-prima em sua fábrica de Sapiranga. Com lixo zero, conseguem fazer um ciclo fechado de impacto ambiental, servindo de modelo para aliar negócios à preservação. Outro exemplo é o movimento Abrace o Rio dos Sinos, que realiza saraus todos os meses no Museu dedicado ao rio em ações que mobilizam a comunidade. Segundo Julia Rolim, uma das fundadoras do Interventura Urbana, grupo de voluntários que realiza a ação, a ideia é aliar sociedade civil, poder público e instituições de ensino em torno do cuidado com o Rio. A ideia de resgatar a paisagem urbana e ocupar a cidade por seus cidadãos, construindo uma cidade para as pessoas faz eco pelo Vale localizado junto à região metropolitana de Porto Alegre. O Sinos grita por socorro, mas tem gente que ouviu o seu chamado e arregaçou as mangas para fazer a diferença.■

 

* Lara Ely é jornalista, mestre em comunicação e criadora do projeto @ecohistorias.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição