Edição 518 | 27 Março 2018

A inconsequência de Trump tem poucos limites

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Gabriel Pessin Adam

“Trump manteve o conteúdo imperialista da política externa do país, o que era de se esperar, mas abandonou a tática de seu antecessor de mascarar seus atos com ações multilaterais e uma retórica mais pacifista. [...] O último ato inconsequente do mandatário foi o reconhecimento de Jerusalém como a capital do Estado de Israel, seguida da declaração transferindo a embaixada estadunidense para a cidade sagrada”, escreve Gabriel Pessin Adam.

Gabriel Pessin Adam é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais, mestre em Relações Internacionais e doutor em Ciência Política. É professor dos cursos de Relações Internacionais e Direito na Unisinos.

Eis o artigo.

A eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos lançou uma série de dúvidas quanto ao seu futuro governo, sobretudo à política externa, pois, na sua campanha, os temas internacionais foram tratados de forma superficial, quase leviana. Às vésperas de completar um ano de mandato, Trump manteve o conteúdo imperialista da política externa do país, o que era de se esperar, mas abandonou a tática de seu antecessor de mascarar seus atos com ações multilaterais e uma retórica mais pacifista. As constantes ameaças à Coreia do Norte, o bombardeio a uma base aérea síria e o pouco caso com tradicionais aliados demonstram que a agressividade típica do Partido Republicano retornou com força. O último ato inconsequente do mandatário foi o reconhecimento de Jerusalém como a capital do Estado de Israel, seguida da declaração realizada em 6 de dezembro de 2017 de que a embaixada estadunidense naquele país seria movida para a cidade sagrada.

Antes de avaliar as razões que fundamentaram tal declaração, bem como seus possíveis efeitos, cabe trazer alguns dados acerca da cidade. Hoje, Jerusalém tem 857.752 habitantes . Deste total, pouco mais de um terço dos moradores são palestinos e a maioria é de judeus. O plano de partilha da Palestina elaborado pela ONU em 1947 previa Jerusalém como uma Cidade Sagrada, que não pertenceria nem a Israel e nem ao Estado da Palestina, norma internacional ainda vigente. Na cidade, se situa o Muro das Lamentações, caro aos judeus, e a Mesquita de Omar, o terceiro local mais sagrado para os muçulmanos. Isto sem falar na Basílica do Santo Sepulcro, de grande importância para os cristãos. Qualquer ato que atente contra direitos dos palestinos em Jerusalém ou gere grave ofensa religiosa terá desdobramentos imediatos, os quais não se resumem à própria cidade, nem ao conflito entre Israel e Palestina, pois atingem todo Oriente Médio e, consequentemente, a política global. E foi justamente isto que ocorreu a partir da declaração de Donald Trump.

No nível local, milhares de palestinos contrários à consagração de Jerusalém como capital de Israel protestaram. A resposta israelense foi intensa, e o saldo, ainda em dezembro, era de nove mortos e milhares de feridos. Tel Aviv justificou seus atos como resposta a lançamentos de foguetes em seu território. A situação ainda pode escalonar sensivelmente. O grupo Jihad Islâmica tem angariado apoio entre os palestinos desapontados com a falta de resultados concretos obtidos por Hamas e Al Fatah. Caso este processo continue, a violência deve recrudescer e não se descarta o início de uma terceira Intifada.

Na disputa pela liderança geopolítica do Oriente Médio atualmente em curso, eventual indecisão da Arábia Saudita e de seus aliados pode representar ganhos expressivos para Turquia e Irã. O presidente turco, Recep Erdogan, que tem se afastado de Washington desde que foi vítima de uma tentativa de golpe de Estado, foi veemente nas críticas aos atos de Trump, tendo inclusive declarado que a Turquia estabelecerá uma embaixada para relações diplomáticas com a Palestina em Jerusalém. E o Irã, que ensaiou uma aproximação com os Estados Unidos ao assinar em 2015 o JCPOA [Plano de Ação Conjunto Global, em inglês, Joint Comprehensive Plan of Action], voltou a ser alvo de ataques verbais por parte da Casa Branca. Sua posição de luta contra o Estado Islâmico lhe angariou simpatias insuspeitas na região, e o seu apoio ao Hezbollah o aproxima da causa palestina. A Rússia, cuja presença no Oriente Médio tem aumentado desde o início da guerra civil síria e os combates ao Estado Islâmico, também se beneficia do unilateralismo estadunidense. O Kremlin declarou que apoia as decisões da ONU sobre o tema, clamou pela retomada de negociações entre Israel e Palestina em um formato multilateral e se colocou à disposição como mediador .

No âmbito global, a atitude do governo Trump gerou repercussões em diversos países e na ONU. Manifestações de contrariedade foram registradas nas embaixadas estadunidenses do Japão, da Itália, da Hungria, da Polônia, do Afeganistão, da Malásia e das Filipinas, entre outros. Na ONU, a situação dos Estados Unidos é ainda pior. No dia 14 de dezembro, o Egito propôs resolução no Conselho de Segurança que proibia qualquer modificação unilateral do status de Cidade Sagrada de Jerusalém garantido pela ONU. A votação foi de 14 a 1 pela aprovação, sendo que o voto contrário foi o veto estadunidense, o que impediu a aprovação da resolução. No dia 21 de dezembro, em votação na Assembleia Geral, 128 países aprovaram a resolução, 35 se abstiveram e somente nove negaram.

Diante de tantos efeitos negativos, cabe questionar os motivos de Trump para este reconhecimento. A causa principal é a crescente conexão entre o Partido Republicano e o lobby israelense, capitaneado pelo American Israel Public Affairs Committee (AIPAC) e pela Conference of Presidents of Major Jewish Organizations. Estas organizações aportaram volumosos montantes à campanha de Trump e de outros deputados e senadores republicanos. Ocorre que a própria população estadunidense desaprovou a atitude de seu presidente por uma margem de 63% a 31%, segundo pesquisa da Maryland University com o Instituto Nielsen.

O quadro apresentado permite concluir que o ato de Trump agrava a polarização interna dos Estados Unidos, bem como gera prejuízos políticos no Oriente Médio, na ONU e no sistema internacional como um todo. Enquanto a Casa Branca não perceber que demonstrações gratuitas de poder e desconsideração a opiniões alheias não têm gerado respeito pelos Estados Unidos, pelo contrário, mas uma crescente aversão, o processo de declínio de prestígio da (ainda) maior potência do mundo não será revertido.■

Expediente
Coordenador do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto Stumpf Paes Leme
Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

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