Edição | 27 Março 2018

A doce e utópica paixão adolescente

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Fernando Del Corona

“Me chame pelo seu nome” propõe questionamentos usualmente negados a narrativas queer

Através das décadas, houve uma mudança considerável na representação pelo cinema da vivência queer. De motivo de vergonha, piada ou sinal de vilania, conforme a epidemia da aids assombrava a comunidade homossexual, ser gay no cinema cada vez mais aproximava o personagem de uma sentença de morte. Se não fosse pela doença, seria pelo preconceito. Ao longo dos anos, uma série de obras lidaram com a dor de pessoas queer e frequentemente são esses filmes que ganham um público maior, fora do meio representado. Filmes premiados, como Filadélfia (Jonathan Demme, 1993), Meninas não choram (Kimberly Peirce, 1999) e Brokeback Mountain (Ang Lee, 2005), por melhor que sejam, estabelecem a narrativa que é consumida e aceita pela crítica e pelos grandes públicos.

Conforme a pior parte da crise ficava para trás, uma nova forma de representação começou a se estruturar através de uma forma de assimilação, de heteronormatizar e higienizar as relações gays. São filmes que apresentavam situações e vidas distantes da realidade da maioria da população queer, dramas em que histórias usualmente associadas com personagens héteros eram recriadas trocando apenas o sexo da pessoa amada. De um jeito ou de outro, ainda é uma questão que não foi totalmente resolvida.

Me chame pelo seu nome, o filme mais recente de Luca Guadagnino, baseado no livro homônimo de André Aciman lançado em 2007, atraiu uma série de críticas por sua aparente postura apolítica. A história do romance entre dois jovens dentro de determinados padrões de beleza parecia perder o clima geral que os filmes queer vêm buscando. Com obras como os recentes 120 batimentos por minutos (Robin Campillo, 2017) e Uma mulher fantástica (Sebastián Lelio, 2017), e seguindo a vitória de Moonlight (Barry Jenkins, 2016) no Oscar de 2017, foi um período carregado politicamente para a representação queer. Me chame pelo seu nome escolheu o caminho oposto, mas o interessante é tudo que ele conseguiu ser através dessa escolha.

Reprodução: Cena do filme

Se em Moonlight o protagonista Chiron, gay, cresceu com a mãe viciada em crack e sendo cuidado por um traficante, sempre reprimindo seus sentimentos sob o risco da morte e do isolamento, em Me chame pelo seu nome o cenário não poderia ser mais distinto. Elio (Timothée Chalamet), o jovem protagonista de 17 anos, passa seus verões em uma idílica cidade no norte da Itália, entre seus pais, Sr. e Sra. Pearlman (Michael Stuhlbarg e Amira Casar), amigos e pequenos casos amorosos. Ele passa o tempo lendo livros, nadando no lago, transcrevendo música e tocando piano – a fim de se exibir para o novo hóspede, simula uma versão de como Liszt tocaria Bach e, na sequência, como Busoni tocaria a versão de Liszt. Nada se coloca no seu caminho.

Até que chega Oliver (Arnie Hammer), o estudante americano que vem fazer uma temporada de estudos com o pai de Elio e passar o verão com a família, um de vários pesquisadores que se sucedem ao longo dos anos. Mas algo é diferente em Oliver. Uma amiga de Elio comenta que ele é mais confiante que o último estudante. Elio o acha arrogante, com sua maneira displicente de dar tchau – later –, mas, para o Sr. Pearlman, ele é apenas tímido.

O que começa com um falso desinteresse, quase desprezo, de Elio por Oliver, logo se torna algo além. O mais jovem busca a aprovação de Oliver enquanto toca piano para ele. Oliver pede a opinião de Elio sobre o trabalho que está escrevendo. Ambos andam juntos de bicicleta pela cidade e passam os dias quentes na piscina, dormindo em quartos separados apenas por um banheiro, onde shorts são abandonados e o corpo do outro é visto através de vislumbres.

A maneira que a relação deles se desenvolve é a chave do filme. Para as pessoas sensíveis aos lugares comuns dessas histórias, já se imagina o que deve acontecer. Ele vai reprimir os sentimentos. Ele vai ser ridicularizado pelos amigos. Ele vai sofrer dúvidas, preconceitos, dor... quem sabe morte? Passa-se nos anos 80. Oliver tem uma ferida infeccionada. O público gay está atento a todo sinal de perigo.

Mas não é isso. O roteiro oscarizado de James Ivory – conhecido por dirigir obras de época como Retorno a Howard’s End (1992), Vestígios do dia (1993) e Maurice (1987) – propõe um cenário que beira ao teórico, ao utópico, para desenvolver questões que dificilmente chegam ao jovem queer, em dúvida e se descobrindo. E se sua experiência não for marcada pela dor e pelo preconceito?

O cenário do amor entre Elio e Oliver é ideal, quase surreal demais, mas essa é a ideia. Os diálogos hiperintelectualizados dos seus personagens reforçam isso.

A questão é: como pode e como poderia ser essa experiência caso não fosse completamente regrada por todas as leis que parecem reger a vivência gay?

Me chame pelo seu nome oferece uma visão palpável sobre questionamentos que passam na mente de jovens queer, mas rapidamente relegados sob a ideia de que são pensamentos exclusivos da experiência heterossexual. Para esses jovens, a mídia vai lhe dizer principalmente sobre sofrimento, preconceito e se encaixar em padrões românticos heteronormativos. No entanto, existem questões inerentes à experiência adolescente de descoberta que devem ser postas além disso.

Elio exala confiança. Em certo ponto, Oliver lhe pergunta: “Existe algo que você não sabe?”. Mas o filme questiona o quanto um tipo de maturidade intelectual pode preparar um jovem para uma relação emocional. O próprio Oliver não é tão mais velho do que Elio – no livro ele tem 24 anos, mas o ator Arnie Hammer parece mais próximo dos 30 –, e, apesar de ser experiente, também não possui as respostas certas e lida com suas próprias inseguranças. Suas intenções aparentam ser boas, mas também ainda é jovem, apesar da pompa.

Timothée Chalamet entrega uma atuação tão completa que é difícil encontrar semelhantes. Desde minúcias das expressões, sua maneira de falar, sua corporalidade, tudo trabalha para construir um personagem que parece real em seus mínimos detalhes. Quando um filme tem uma performance central tão cativante e exuberante, é fácil gerar uma situação com o resto do elenco tentando superar um ao outro. Não é o caso aqui. Arnie Hammer entende a relação entre os personagens e no que ele deve focar sem roubar a luz de Chalamet. É uma atuação comedida, mas que dá chances de ele brilhar em momentos específicos. Todo o elenco funciona, pois sabe trabalhar dentro de sua dinâmica, seja Esther Garrel como Marzia, uma amiga que participa das descobertas sexuais de Elio, ou Amira Casar, a mãe, atenta e elegante. Mas é a Stuhlbarg como o Sr. Pearlman que é dado um dos momentos mais potentes e sensíveis do filme.

Assim como o verão durante o qual a história de desenvolve, a trama é morosa. Os eventos acontecem sem grandes viradas ou motivos óbvios. A câmera foca a bela paisagem italiana, a chuva que cai, o tempo passando. Uma mosca onipresente que sugere algum significado conforme aparece em cena após cena. Em certo momento, enquanto Elio espera um Oliver que não chega nunca, conforme ele aparenta estar se despedaçando em dúvidas, a própria imagem do filme parece se tornar rarefeita e se desfazer diante dos nossos olhos.

Existe um foco no filme sobre um estilo de beleza clássico, comparando com pouca sutileza os corpos jovens de Elio e Oliver com estátuas greco-romanas que são descobertas, seus músculos firmes e sua “ambiguidade atemporal”, como coloca o Sr. Pearlman. O corpo mais maduro de Oliver, seu peitoral coberto de pelos, em contraste com a juvenilidade de Elio, magro e desajeitado. O filme parece sugerir algum tipo de valor intrínseco nesse tipo de beleza – no único momento fraco de um intenso discurso de Stuhlbarg, ele comenta que, depois de um tempo, “ninguém mais olha para o seu corpo”, uma espécie estranha de profecia inclusa em um momento tão sensível –, mas ao mesmo tempo funciona para revelar o poder de um desejo desafiador: quando Oliver levanta sua camisa para revelar uma ferida, não deixa de ser um momento erótico.

Além do desejo, existe algo que é tão importante de se entender quando se fala de uma relação do mesmo sexo. Como um romance desse lida com sentimentos de admiração, comparação e ciúme? Aos poucos vemos Elio emulando Oliver em suas vestimentas, acessórios, até em seus movimentos. Em um dos momentos mais intensos do filme, Oliver diz para Elio chamá-lo pelo seu próprio nome, que ele o chamará pelo dele. O que significa para um adolescente dizer o seu próprio nome de maneira afetuosa e ver ele mesmo em alguém que admira? São questões importantes.

E aí está o poder de Me chame pelo seu nome. O cenário pode parecer idílico demais, mas quantas experiências heterossexuais são justificadas em situações de fantasia ou até absurdas? O jovem queer deve ter o poder de lidar e questionar as complexidades dos seus sentimentos e relações sem o peso da dor social. Trata-se de uma vivência que é complexa. É política, é sexual. Mas também é emocional. É válido – e importante – ser capaz de fazer questões sobre descoberta e autoentendimento, mas são questões muitas vezes negadas. Para uma juventude cuja existência parece ser tão regrada por uma negação de sentimentos, deve ser possível mergulhar nas possibilidades além da dor.

Se em Moonlight foi visto o resultado de se crescer em uma sociedade em que essa possibilidade é proibida, em Me chame pelo seu nome os limites são expandidos. Dizer que esse é um filme sobre ser gay, sobre se assumir, até mesmo falar que é sobre questões de gênero, não faz jus à história contada.

Antes disso, existe uma descoberta de você mesmo. ■

Reprodução: cartaz do filme

Ficha técnica
Me chame pelo seu nome
Título original: Call Me by Your Name
Direção: Luca Guadagnino
Roteiro: James Ivory
Produção: Emilie Georges, Luca Guadagnino, James Ivory, Marco Morabito
Elenco: Timothée Chalamet, Arnie Hammer, Michael Stuhlbarg, Amira Casar, Esther Garrel
Itália/ Brasil/ França/ EUA, 2017, 131 min.

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