Edição 518 | 27 Março 2018

A impossível superação da violência sem o combate às injustiças

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João Vitor Santos | Edição Ricardo Machado

Marcos Sassatelli analisa os arranjos estruturais da desigualdade que colocam em marcha uma sociedade latente de violência

Há um tipo de violência que, de tão cotidiana, não estampa as manchetes de jornais. O frei dominicano Marcos Sassatelli chama essa violência de estrutural e exemplifica com a provocação: “Quantas pessoas morrem todo dia por falta de atendimento médico e por falta de vagas na UTI no Brasil e no mundo. É, na prática (mesmo que não o seja na teoria), a pena de morte institucionalizada e legalizada”. Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, Sassatelli comenta sobre os processos de desigualdade, que produzem uma das formas mais hegemônicas de violência, a injustiça. “A desigualdade é uma situação de injustiça e toda situação de injustiça é uma violência estrutural permanente, manifesta-se de diferentes maneiras e com diversos rostos”, pontua.

“Portanto, a violência não é ‘resultante da desigualdade econômica’, mas é a própria desigualdade econômica que é a violência, a maior violência”, ressalta. O entrevistado aborda criticamente a proposta da Campanha da Fraternidade de 2018 de discutir a violência. “O Texto-Base da Campanha da Fraternidade 2018 traz reflexões interessantes, mas é bastante genérico e não aprofunda o tema central da questão da violência, que é a violência estrutural. Não é um texto profético e parece que tem medo de falar a verdade”, pondera. “Sem justiça não há superação da violência e sem superação da violência não há fraternidade”, complementa.

Marcos Sassatelli, frade dominicano, é doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP e em Teologia Moral (Assunção - SP). É professor aposentado de Filosofia da Universidade Federal de Goiás - UFG. Assessora e participa de CEBs, Pastorais Sociais e Ambientais, e Movimentos Populares.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que consiste a violência de nosso tempo?
Marcos Sassatelli – Em nosso tempo, a violência é uma constante. Fundamentalmente, temos dois tipos de violência: a violência social ou estrutural e a violência individual ou pessoal.

A violência social ou estrutural não é uma simples dimensão (ou repercussão) social da violência individual, mas uma realidade objetiva, institucionalizada e legalizada, que adquiriu uma consistência própria e independe da consciência ou não das pessoas. É uma violência silenciosa, que exclui, descarta e mata 24 horas por dia. Do ponto de vista ético, podemos chamá-la “um mal moral social ou estrutural” (em linguagem filosófica) ou “um pecado social ou estrutural” (em linguagem teológica).

Para entendermos o que é "mal moral social ou estrutural", "pecado social ou estrutural", devemos entender, em sua especificidade, o conceito científico do adjetivo "social". "É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma imposição externa". Assim, o "social" é "como uma coisa", independente do indivíduo, exterior e que se impõe a ele.

Portanto, o “mal moral social ou estrutural”, o “pecado social ou estrutural” é "um mal humano que adquire uma existência exterior à consciência dos indivíduos, impondo-se a ela. É exatamente a isso que aludimos quando falamos de 'estruturas de pecado'. As estruturas não são coisas, mas um modo de relação entre coisas” (BOFF, C. O pecado social, em "REB" 148 (1977) 675-701).

A violência individual ou pessoal é todo tipo de violência entre pessoas, famílias e grupos. É uma violência direta, que – por sua visibilidade imediata – assusta e choca as pessoas, sobretudo quando mata friamente.

Não podemos esquecer, porém, que a violência estrutural é muito mais grave e mata muito mais gente. Por exemplo – só para citar uma situação de violência estrutural –, quantas pessoas morrem todo dia por falta de atendimento médico e por falta de vagas na UTI no Brasil e no mundo. É, na prática (mesmo que não o seja na teoria), a pena de morte institucionalizada e legalizada.

Sem querer negar – a não ser em casos patológicos – a responsabilidade individual das pessoas, embora “situada e datada” (ou seja, historicamente condicionada), a violência estrutural é, em grande parte, a causa principal das diversas formas de violência pessoal.

Como já disse no meu artigo sobre a Campanha da Fraternidade 2018, a violência estrutural, na sociedade e também na Igreja (que é parte integrante da sociedade), se manifesta de muitas maneiras e tem vários rostos.

IHU On-Line – Como conceber uma visão realista, mas sem ser fatalista, acerca da violência?
Marcos Sassatelli – Fazendo uma análise histórico-crítica do sistema (sócio-econômico-político-ecológico-cultural) em que vivemos e tendo consciência que o ser humano é capaz de construir novos espaços e abrir novos caminhos, que – a médio e longo prazo – levem à mudança do sistema. Como diz o Papa Francisco , este sistema ninguém suporta mais.

IHU On-Line – De que forma podemos compreender as questões de fundo que fazem a violência de nosso tempo enraizar na sociedade?
Marcos Sassatelli – Adquirindo uma consciência crítica da realidade e entendendo como funciona o sistema capitalista: um sistema estruturalmente violento e perverso. O Papa Francisco lembra-nos de que a idolatria do dinheiro mata e que, quando as pessoas se tornam escravas do dinheiro, perdem o sentido da existência e vivem para adorar o dinheiro e para fazer dele o seu deus.

IHU On-Line – Em que medida a perspectiva da religião inebria a visão real da violência, constituindo assim uma perspectiva idealista sobre o tema? E, na prática do dia a dia, como superar essa cegueira idealista?
Marcos Sassatelli – Historicamente falando, as Igrejas e Instituições religiosas sempre foram e continuam sendo contraditórias. Às vezes – por terem uma visão crítica da realidade e de sua missão no mundo – tornam-se uma força libertadora e transformadora da sociedade; outras vezes, por terem uma visão ingênua da realidade ou por interesses institucionais não sempre transparentes, tornam-se uma força conservadora, que serve para legitimar – muitas vezes, em nome de Deus – uma sociedade desigual, injusta e violenta.

Hoje, nas Igrejas e Instituições religiosas, há muita falta de interesse, muita indiferença e muita omissão a respeito dos grandes problemas da sociedade e do mundo. São Igrejas alienadas e alienantes; são Igrejas fechadas sobre si mesmas, sem profecia, sem compromisso e com medo de falar a verdade. Não são – como deveriam sê-lo – Igrejas “em saída”, luz do mundo, sal da terra e fermento na massa.

Para os que são realmente cristãos e cristãs, discípulos missionários e discípulas missionárias de Jesus de Nazaré, “a fé esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do ser humano. E por isso orienta a mente para soluções plenamente humanas” (Concílio Vaticano II . A Igreja no mundo de hoje - GS, 11). “O mistério do ser humano só se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado. (…) Cristo manifesta plenamente o ser humano ao próprio ser humano e lhe descobre a sua altíssima vocação” (GS, 22). “Todo aquele que segue Cristo, o Homem perfeito, torna-se ele também mais ser humano” (GS, 41).

Os cristãos e cristãs devem ser especialistas em humanidade; devem – diz o teólogo Hans Küng – ser radicalmente seres humanos. Ora, como o ser humano é parte integrante da natureza e a natureza é também ser humano, não podemos separar o ser humano da natureza e a natureza do ser humano. É por isso que o cristianismo deve ser um humanismo natural e um naturalismo humano radical.

O humano natural e o natural humano é, pois, o ético. Portanto, podemos dizer que o comportamento ético do ser humano é o comportamento mais humano natural e mais natural humano possível numa determinada situação histórica concreta.

IHU On-Line – O senhor defende que a desigualdade não gera violência, mas, sim, é a própria violência. Por quê?
Marcos Sassatelli – Porque a desigualdade é uma situação de injustiça e toda situação de injustiça é uma violência estrutural permanente, manifesta-se de diferentes maneiras e com diversos rostos. A violência estrutural é a maior violência e é também a principal causa das violências pessoais (somente nesse sentido, podemos dizer que a desigualdade – como violência estrutural – “gera” violências pessoais).

Portanto, a violência não é “resultante da desigualdade econômica”, mas é a própria desigualdade econômica que é a violência, a maior violência. O Texto-Base da Campanha da Fraternidade 2018 traz reflexões interessantes, mas é bastante genérico e não aprofunda o tema central da questão da violência, que é a violência estrutural. Não é um texto profético e parece que tem medo de falar a verdade. “A verdade vos libertará” (Jo 8,32). Nas preces da Oração da Tarde (Vésperas) da Liturgia das Horas de quarta-feira da 2ª Semana da Quaresma, lemos: “Fazei que todos/as rejeitem qualquer desigualdade injusta”. Pergunto: por acaso, existe desigualdade justa?

IHU On-Line – A desobediência civil e religiosa são caminhos para que se supere a violência estrutural?
Marcos Sassatelli – Em nome da “objeção de consciência”, diante de leis, civis ou religiosas, claramente injustas, todos e todas somos obrigados e obrigadas – do ponto de vista ético – a praticar a “desobediência civil e religiosa”, que são também caminhos (não os únicos) para que se supere a violência estrutural. Resta saber se temos coragem de fazer isso. A “desobediência civil e religiosa” pode ser praticada por meio de gestos proféticos pessoais (mesmo tendo que enfrentar perseguições e cadeias) ou, quando possível, por meio de manifestações públicas de Movimentos Sociais Populares organizados.

IHU On-Line – Que caminhos a teologia pode oferecer para se compreender a violência de nosso tempo? E como a utopia do Cristo, de que todos somos irmãos, sem o romantismo do senso comum, pode ser interpretada com vistas a superar situações de violência?
Marcos Sassatelli – Para se compreender a violência estrutural e pessoal do nosso tempo, a teologia, em suas reflexões e em suas pesquisas, deve vivenciar o método (caminho) “ver-julgar-agir” (“analisar-interpretar-libertar”) e “celebrar”. Não precisaria nem dizê-lo, toda a teologia é da libertação. Se não for da libertação, não é teologia. Sempre devemos apontar e ter presente a utopia de Jesus de Nazaré “vocês são todos e todas irmãos e irmãs” (Mt 23,8) como um ideal a ser perseguido e – vivenciando o método acima – indicar também, em cada situação concreta, os passos a serem dados para que esse ideal se torne cada vez mais uma realidade histórica. Na medida em que esse ideal se tornar uma realidade histórica, estaremos construindo novos espaços de justiça e paz, de superação da violência e de verdadeira fraternidade; estaremos também abrindo caminhos para a mudança do “sistema econômico iníquo” (Documentos de Aparecida - DA, 385), no qual vivemos. Sem justiça não há superação da violência e sem superação da violência não há fraternidade. Falar em fraternidade, sem superação da violência, é mentira, é hipocrisia.

IHU On-Line – De que forma o senhor avalia as estratégias do Estado no combate à violência? Em que medida centra esforços apenas na perspectiva pessoal da violência, caindo na polaridade mocinho e vilão, e deixa de lado abordagens no campo da violência estrutural?
Marcos Sassatelli – As estratégias do Estado de combate à violência, apenas na perspectiva pessoal, são medidas paliativas que – mesmo resolvendo ou amenizando a situação de alguns casos concretos – servem para enganar o povo, mantendo-o submisso aos interesses dos detentores do poder econômico. No campo da violência estrutural não podemos esperar nada do Estado. Por ser aliado e defensor dos interesses financeiros das empresas multinacionais – os esteios do sistema capitalista neoliberal –, o Estado é o agente principal da violência estrutural.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Marcos Sassatelli – Como diz sempre o nosso irmão Pedro Casaldáliga , a esperança nunca morre. Outro mundo é possível e necessário! Vamos à luta, participando ativamente de Partidos Políticos Populares, de Movimentos Sociais Populares, de Sindicatos autênticos de Trabalhadores e Trabalhadoras, de Conselhos de Direitos, de Fóruns ou Comitês de Defesa dos Direitos Humanos e de outras Organizações Populares, que trabalham por mudanças não só conjunturais, mas sobretudo estruturais, e abrem caminhos que fazem acontecer um Projeto Político alternativo, o Projeto Popular: Projeto de um Mundo Novo.■

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