Edição 518 | 27 Março 2018

Quando a segurança pública é só caso de polícia, a violência juvenil explode

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João Vitor Santos

David Levisky observa como a falta de investimento e de atenção a crianças e adolescentes compromete o amadurecimento do jovem, que reage com arroubos de violência

A explosão hormonal e todas as transformações da adolescência levam os jovens a manifestar com mais facilidade os traços violentos inerentes ao ser humano. Entretanto, é desde muito cedo que se precisa estar atento, porque o fator ambiental é crucial e pode levar ao descontrole. “O que precisamos discutir é o que seria a violência própria do processo de desenvolvimento humano”, sinaliza o psicanalista David Léo Levisky. Para ele, a criança e o jovem que vivem num ambiente de negligências afetivas, sociais e até de infraestrutura naturalizam a violência e a tomam como única resposta. “Quando há um crime, é fácil identificar o motivo, a razão prática. Mas o que está subjacente, no contexto da malha social? Aquelas situações em que um garoto tem uma arma, naquele ambiente, é parte do processo de desenvolvimento e faz parte do rito de passagem”, analisa.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Levisky ainda revela que a sociedade de nosso tempo cria cisões de mundos. Isso gera violência que acaba sendo naturalizada por todos. “E a nossa sociedade, ao criar uma cisão, fez com que o jovem fosse buscar na criminalidade uma valorização. E os líderes do tráfico de drogas sabem que podem contar com os jovens. A violência fica como um elemento do cotidiano dele”, provoca. É por isso que o psicanalista propõe outro conceito de segurança pública. “Para mim, o lixo abandonado na rua é questão de segurança pública; uma favela com esgoto correndo a céu aberto e as crianças brincando ali com todo o tipo de infecção, é caso de segurança pública. Afinal, nesses casos, você está desconsiderando o sujeito, agredindo a pessoa”, explica.

David Léo Levisky é psicanalista e professor da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Formado pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, possui especialização em Psiquiatria e nas áreas da infância e da adolescência. Também é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Recentemente, teve seu artigo Uma contribuição psicanalítica para políticos e cidadãos publicado no livro Winnicott: integração e diversidade (Rio de Janeiro: Perspectiva, 2018), organizado por Anna Melgaço. Entre outras publicações, destacamos Adolescência e Violência: ações comunitárias na prevenção (São Paulo, Casa do Psicólogo. 2001) e Um monge no divã – a trajetória de um adolescer na Idade Média Central (São Paulo. Casa do Psicólogo. 2007).

A entrevista foi publicada nas Notícias do Dia, de 12-3-2018, no sítio do IHU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Arroubos de violência são inerentes à adolescência?
David Léo Levisky – Existem problemas de violência que são inerentes à adolescência, mas existem agravantes, na cultura contemporânea e na realidade brasileira, que contribuem para a exacerbação dessa violência. O que precisamos discutir é o que seria a violência própria do processo de desenvolvimento humano, isto é, os arroubos de violência dependendo da circunstância para que não caiamos na ideia vulgar de que a violência é algo intrínseco à adolescência.

IHU On-Line – No que corresponde aos componentes orgânicos, químicos, como entender essa perspectiva da violência?
David Léo Levisky – O jovem passa pelas transformações hormonais, que geram as transformações da adolescência, que têm repercussões na vida social, afetiva, familiar, e a estrutura egoica. Todo o instrumental que ele tem para lidar com o corpo dele, que vem da infância, fica enfraquecido e dá espaço a uma reestruturação da personalidade e da identidade. É um processo biológico que varia de cultura para cultura, de época para época. Assim, existe uma violência que é resultado de intensa atividade pulsional, porque os mecanismos de defesa da infância são atenuados, os egos de determinada estrutura se fragilizam; tudo isso, contudo, abre espaço para novas experiências afetivas, sociais, intelectuais, o que promove uma reorganização.

Isso, porém, não é tão linear como estou colocando, é um processo de subidas e descidas, êxitos e fracassos onde as frustrações fazem parte de um processo de vivências que dão aprendizado a um sujeito e dão a ele a chance de se organizarem da maneira diferente. O jovem, na faixa etária entre 14 e 16 anos, não tem muita noção da força dele, vem um impulso de fazer um movimento mais brusco e ele pode machucar o outro e se machucar, uma vez que ele ainda está aprendendo a modular emocionalmente a intensidade de sua energia. Paralelamente, este jovem tem um sistema de valores superegoicos que servem também de freio. Por isso que é comum o jovem passar por movimentos de oscilação no humor, na agressividade, na intensidade amorosa – grandes paixões e imensas depressões –, isso tudo sem perceber os desdobramentos que essas coisas podem ter para ele mesmo e para os outros. Ainda que racionalmente ele saiba de todos os perigos, emocionalmente ainda não tem a vivência do que aquilo que ele está fantasiando pode trazer na realidade.

IHU On-Line – E qual o agravante da questão social?
David Léo Levisky – Eu costumo dizer que tudo que se torna repetitivo na cultura se transforma em um valor de cultura. O que se vê de violência na televisão, nos jogos eletrônicos, no noticiário é tão repetitivo na vida do sujeito, sem ser acompanhado de uma análise crítica, com mensagens com pouca discussão, pouca reflexão, pouca percepção do que está acontecendo. Tudo é transmitido como uma informação chapada (sem profundidade) em que não entramos na intimidade dos processos. Esta repetição contínua das mais variadas violências – dos políticos, sua corrupção e desfaçatez aos noticiários policiais ou dos jogos que, se por um lado ajudam a canalizar a violência e destrutividade interna de uma forma fantasiosa, por outro contribuem para transformar essa violência num valor da cultura – torna a violência um modo de ser.

Por exemplo, cito muito o filme A cidade de Deus (2002), onde é retratada uma sociedade muito bem organizada naqueles padrões. Quando o jovem conquista uma arma, conquista um valor daquela sociedade. E a nossa sociedade, ao criar uma cisão, fez com que o jovem fosse buscar na criminalidade uma valorização. E os líderes do tráfico de drogas, os chefes daquela região, sabem que podem contar com os jovens. A violência fica como um elemento do cotidiano dele.

Se entendermos isso, é preciso parar para pensar o que existe na sociedade de um lado e na sociedade de outro lado. Por isso não está integrado? Para aquela sociedade que foi excluída desde o início – o jovem já nasce em situação de exclusão –, toda aquela situação tem uma certa normalidade. E nós também aceitamos e convivemos com isso com uma certa normalidade. Saímos preocupados, olhamos se não há ninguém nos espreitando para nos atacar e roubar, mas isso passa a ser um fenômeno da cultura contemporânea das grandes cidades, como aqui em São Paulo, aí em Porto Alegre, Brasília, Rio de Janeiro. Isso toma outras dimensões porque, além de tudo, os valores culturais que servem de alicerce para a organização da sociedade estão sendo modificados. Inclusive pelas questões da tecnologia, da velocidade da informação, fatores muito conhecidos por todos nós.

Subjetividade ignorada

O que pouco se observa é o subjetivo, como as questões subjetivas permeiam a sociedade. Quando há um crime, é fácil identificar o motivo, a razão prática. Mas o que está subjacente, no contexto da malha social, no inconsciente dessa malha social, que favorece determinadas situações? Aquelas situações em que um garoto tem uma arma, naquele ambiente, é parte do processo de desenvolvimento e faz parte do rito de passagem. Assim como na outra sociedade, a do outro lado, entre muitos jovens o uso da droga, o racha de carro ou a aprovação no vestibular são processos do rito moderno de passagem da adolescência para a vida adulta.

Todas essas são situações de complexidade em que não basta agir de forma linear e não integrada nos vários setores. Num país onde o processo educacional não consegue ensinar a língua materna – veja os índices de reprovação em provas de Português e Matemática, que são altíssimos –, o que se pode esperar?

IHU On-Line – O senhor destaca aspectos do que pode ser chamado de banalização da violência. Acredita que essa banalização, esse gatilho que dispara um círculo vicioso de violência, também tem relação com as desigualdades?
David Léo Levisky – É difícil sabermos o que vem primeiro. É a situação da desigualdade que leva a esse estímulo contínuo de situações de violência ou são situações de violência que são manifestações, às vezes até necessárias, que buscam diminuir a desigualdade? Por isso é importante compreender o que chamo de violência. Uso um conceito que extraí de um livro do professor Zeferino Rocha , chamado Paixão, violência e solidão – o drama de Abelardo e Heloisa no contexto cultural do século XII (Recife: UFPE, 1996). Trabalhei com esse texto em minha tese de doutorado em que juntei História e Psicanálise. O professor diz o seguinte: “entende-se como violência em todas as suas formas de manifestação a força que transgride os limites dos seres humanos, tanto na sua realidade física e psíquica, quanto no campo de suas realizações sociais, estéticas, políticas e religiosas. É uma força que desrespeita os direitos fundamentais do ser humano, sem os quais o homem deixa de ser considerado como sujeito de direitos e deveres e passa a ser olhado como um puro e simples objeto”.

A partir disso, podemos imaginar as consequências do descuido social que existe nas nossas favelas – e aqui não falo de nenhum partido político; falo de uma questão humanitária. Faço questão de deixar isso claro. Uma sociedade que sofre abandono pelo poder público, como é o caso de uma família em que um jovem ou criança é abandonado, ou alguém que é abandonado dentro de sua comunidade, ou a comunidade que é abandonada dentro da malha social do seu estado ou de seu país, acaba produzindo uma violência da autoestima do sujeito.

A violência física é fácil de ser detectada, mas as outras são mais difíceis. São aquelas violências que, por exemplo, humilham o sujeito, as questões de racismo, as homofobias e preconceitos em geral, e que geram um clima de hostilidade que pode acabar caminhando para a violência até física. É a violência moral, que atinge a autoestima. Existe uma questão narcísica, pois todos nós queremos ser, em algum momento, principalmente no início da vida, o centro das atenções. Como dizia Freud , “sua majestade, o bebê”. Ou seja, a criança nasce e requer uma série de cuidados que vão dar condições para estruturar uma personalidade adequada, equilibrada para aprender a lidar com seus amores, suas paixões e suas violências. Isso é necessário para poder, assim, analisar, filtrar e redirecionar essa energia.

Entretanto, essas questões não são levadas em consideração, seja na família ou na grande sociedade. Não levando em consideração essas questões, se abrem feridas profundas na estruturação do sujeito, tanto do ponto de vista neuropsicológico e neuroquímico como do ponto de vista simbólico, da organização da atividade simbólica. Se não olhamos para isso, a coisa vai se degenerando.

O ECA e a renúncia ao sujeito

Veja um exemplo: no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA existe uma expressão chamada “medidas socioeducativas”. Ou seja, o lado psicológico não consta na lei. O jovem tem que se adaptar àquilo que a sociedade dominante espera que ele se adapte. O método que se usa não importa. Essas rebeliões que acompanhamos demonstram que esses jovens já chegaram à adolescência com seu equipamento neuropsíquico, com sua capacidade simbólica de investimento afetivo, comprometidos. Alguns poderão se beneficiar de um processo de reeducação. Mas não basta, se não se trabalhar emocionalmente as feridas profundas causadas na estruturação do sujeito.

O ECA não leva em consideração o sujeito. Se o camarada está praticando delito você pode bater porque ele precisa se enquadrar na norma. Não entra o conceito da formação psicológica, a história do sujeito. A pessoa chegou àquele ponto de delinquência por um conjunto de fatores. Pode até ser genético, mas é a minoria. Há outros fatores, como os familiares, sociais, que se agregam a tudo isso e que a resultante é ele ter virado um delinquente. Simplesmente prender e punir vai só reforçar a delinquência. Alguns até podem se beneficiar com alguma situação de educação, mas não faz parte da lei o conceito psicossocioeducativo. Tudo isso gera violência.

Aliás, o Brasil tem uma frase bonita na sua bandeira: Ordem e Progresso. Estamos vivendo a desordem e da desordem vem a violência, em que a violência não é só negativa. Ela pode ser um grito de esperança. Se seguirmos na linha do Winnicott , veremos que pode ser um grito de esperança, porque se alguém está brigando por mudar alguma coisa, ainda que usando um meio errado, se formos analisar o contexto pelo qual ele está brigando – e aqui não estou falando a favor da briga –, perceberemos que os meios democráticos institucionais de diálogo não estão funcionando. E aí vem a violência. Se pegarmos o caso individual, teremos um tipo de história; se pegarmos casos coletivos, teremos outro tipo de história.

IHU On-Line – No que consiste a violência contra a criança e o adolescente hoje, que o leva, no futuro, a responder com uma postura violenta?
David Léo Levisky – Vamos pensar na linha do artigo que escrevi há muito tempo, chamado Adolescência e violência – uma sociedade carente de pai e mãe . Tome como exemplo uma família – depois podemos expandir esse modelo para uma sociedade, mas vamos tomar uma família porque é mais simples – em que há uma criança que é filha de um casamento mal organizado – quando falo casamento, me refiro a todos os tipos de casamento, indiferente de gênero, me refiro à qualidade do vínculo. Nascendo dentro desse ambiente conturbado, com pais alcoólatras, pais em conflitos contínuos, em violências domésticas, abandonos, tendo tudo isso precocemente ou mesmo antes do nascimento, será gerada uma relação com os pais cheia de tensões internas.

Existem, nesses casos, ainda, questões que envolvem a violência de poder e também de tensão. Numa família desorganizada, geralmente a autoridade dos pais é vivida de uma forma distorcida. Pode caminhar para um autoritarismo, que é muito diferente de autoridade. Assim, o poder é exercido de uma forma repressiva, aniquiladora, e não como um poder estruturante e organizador, acolhedor, que ajuda a pensar, a direcionar, a selecionar.

Ou seja, se essas relações primárias são muito conturbadas, elas vão degenerar a formação do sujeito. E na adolescência isso vem à tona com muita intensidade, porque os núcleos traumáticos já estavam presentes. Mesmo que depois tenha havido uma fase de atenuação, quando chega a adolescência, a organização egoica fica fragilizada e até surgir outra organização mais atualizada o jovem é capaz de passar por muitos transtornos. É diferente quando o jovem vem de uma família mais estável. Quando falo estável não quer dizer que não haja briga familiar, sempre tem, pois cada sujeito é uma entidade diferente. A discussão faz parte do processo de elaboração e do encontro criativo de novos caminhos. Numa família onde se conversa, tem diálogo, onde aquele que se excedeu pode ter a oportunidade de rever o seu pensamento e está levando o outro em consideração, o jovem amadurece de forma mais saudável. O fato de poder levar o outro em consideração ajuda que o jovem também leve os outros – pais, irmãos etc. – em consideração.

IHU On-Line – E essa elaboração que o senhor apresenta com relação à família pode ser levada em conta também se estendermos essas perspectivas para grupos maiores, como uma comunidade, um bairro marginalizado em relação ao Centro que organiza a vida de uma cidade?
David Léo Levisky – Claro. Se você, por exemplo, dentro de um eixo metropolitano, criar lugar onde não há oportunidade, acaba mobilizando coisas como inveja, frustração e raiva, e, de outro lado, estimula a onipotência, a prepotência, uma ilusão de superioridade que só contribui para amplificar o conflito e manter as partes em choque, promovendo o antagonismo. Quando se criam situações mais justas, com oportunidades com estímulo ao trabalho, possibilidade para que o ser humano se envolva, conquiste e enxergue o outro – porque ninguém se desenvolve sozinho, sempre se depende de uma relação – surge uma possibilidade de construção mais harmônica.

Ampliando o conceito de violência

Nós desenvolvemos um projeto em São Paulo em que tentamos entender os mecanismos geradores de violência no meio juvenil, em várias classes sociais e, ainda, observar se havia possibilidade de atenuar a violência. Usando conceitos psicanalíticos, sociológicos, de autores como Michel Foucault , fomos estudar num grupo quais os fatores motivadores e atenuadores da violência na família e na sociedade. Tentamos construir um modelo com base nesses conceitos para que pudéssemos ver isso na prática.

Selecionamos três bairros da cidade de São Paulo que tivessem, no mínimo, uma delegacia, uma escola e um posto de saúde. Se não tiver isso não tem estrutura social mínima para uma vida civilizada, pois é preciso o acolhimento, a ordem e uma orientação. Sem educação não conseguimos fazer nada. Só polícia também não adianta, porque eles não têm métodos adequados para educar, têm uma visão repressiva. Em cada bairro desses escolhemos uma escola particular, uma escola municipal e uma escola estadual para saber se havia diferenças na população e no manejo das situações. O que, para cada escola, era compreendido como violência? Como identificavam a violência? Entre as respostas, tivemos coisas surpreendentes. Por exemplo, ver um computador trancado numa sala porque não tinha dinheiro para pagar a luz ou porque ninguém sabia mexer foi entendido pelos jovens como violência. Afinal, estavam sendo privados de um processo educacional.

Outro grupo de jovens entendeu que violência era falta e falha de comunicação dentro da escola. O que queriam? Um quadro de avisos, onde pudessem se comunicar com os professores, com a direção, com os servidores e mesmo entre os colegas. Em outra escola, que era totalmente gradeada supostamente para se proteger da violência externa, os jovens entravam no prédio e só viam grades. Eram todas as janelas gradeadas, no centro de São Paulo, ao lado da Sala São Paulo, maior sala de concertos onde a elite cultural e intelectual frequenta. Era uma escola estadual totalmente cercada para proteger os alunos, mas, na verdade, os alunos se sentiam excluídos da sociedade.

Cada um desses grupos que se formaram, foram nove ao todo, precisou identificar os fenômenos e estabelecer um projeto que acreditassem que atenuaria a violência. E eles tinham que encontrar recursos para executar o projeto que deveria ter começo, meio e fim. Nesse caso do quadro de avisos, os alunos fizeram uma coleta, conseguiram um pedaço de madeira, outro conseguiu tachinhas para pregar a folha de papel, outro tinha uma tinta especial em que se poderia escrever as diversas comunicações e se organizaram com isso. Durante um ano, o que nós fazíamos era só ajudar a perceber e pensar antes de fazer.

Presença e atenção para atenuar a violência

Ao fim, era preciso terminar de uma forma que desse uma gratificação para eles, pois sem gratificação não adianta. Poderiam ser questões como: tirar o lixo da escola. O que é preciso para tirar esse lixo? Tinha uma parede esburacada. O que precisa fazer para tapar o buraco? E assim por diante. Com isso, eles começaram a perceber que são ouvidos, que tem continência afetiva, que a palavra deles tem presença, tem uma autoridade, um poder, e exemplos desse tipo foram ajudando a atenuar a violência.

Paralelamente, um outro grupo fez também a leitura do que eles entendiam como violência – como no caso em que um terreno baldio abandonado ao lado da escola era visto como violência – e ofertamos a eles um diretor de teatro. Ele ajudou os jovens a escrever uma peça sobre aquilo que estavam vivendo, como por exemplo, como desperdiçavam a comida, jogando-a um no outro. Isso acabou numa grande mostra de teatro, tudo foi muito discutido e publicado.

Teríamos que transformar isso em política pública. Mas aí veio o problema, pois primeiro se avaliava se isso dá voto, se dá dinheiro – aliás, não dá nenhum –, se dá visibilidade etc. Aliás, isso tudo está dentro do processo educacional. Quando se tem uma educação bem organizada com chance para que cada um tenha oportunidade de pensar, de se posicionar e ver o coletivo, o valor do sujeito, de o sujeito perceber o valor do coletivo e vice-versa, as coisas mudam.

IHU On-Line – O senhor revela uma forma de combater a violência muito mais ampla. Mas a maioria das políticas públicas parece compreender a violência apenas como caso de segurança pública. Aí está a principal inabilidade do Estado para lidar com a violência?
David Léo Levisky – A visão do Estado sobre segurança pública é diferente da que apresentei. Para mim, o lixo abandonado na rua é questão de segurança pública; uma favela com esgoto correndo a céu aberto e as crianças brincando ali sujeitas a todo tipo de infecção, é caso de segurança pública. Afinal, nesses casos, você está desconsiderando o sujeito, agredindo a pessoa. Só que essa pessoa se acostuma a viver naquilo e acha natural. É diferente do índio que vivia na oca, sem esgoto, mas que sabia usar o rio e o respeitava. Ai dele se usasse o rio de forma errada, pois dali era aonde caminhava seu esgoto e dali ele retirava comida. Mas ele sabia usar, tinha uma ordem. Aqui, nós vivemos numa desordem. Existe a ordem no papel, mas uma desordem na prática e uma não integração.

No Japão, fiquei emocionado com crianças que, quando acabam de comer, recolhem o lixo e não jogam em qualquer lugar. E se brincaram e deixaram tudo espalhado, cada um vai ajudar o outro a recolher aquilo que ficou espalhado. O conceito de coletivo e integração é completamente diferente. Se temos um conceito de articulação e cooperação, todos iremos nos ajudar. Senão, contribuímos para ficar nisso aí que estamos vivendo: o caos. Aliás, o caos é bom, pois leva a buscar saídas criativas.

IHU On-Line – A violência de nosso tempo, tanto na perspectiva individual como coletiva, pode ser associada aos vazios gerados a partir da modernidade?
David Léo Levisky – Num certo sentido, sim. Se considerarmos a velocidade, a violência com que os valores mudam, em que as informações são substituídas por outras informações sem que tenhamos a possibilidade de elaborar, de incorporar, ponderar e analisar, veremos que isso gera vazios. E esses vazios são preenchidos cada um à sua maneira. Essa compulsão pelo uso do celular, da internet, de um lado atrai e dá prazer, mas de outro lado gera vazios, porque não tem isso que estamos fazendo agora: dialogar sobre questões que nos envolvem.

Há uma quebra de valores, e como novos valores são substituídos muito rapidamente, ficamos sem ter no que nos alicerçarmos. Quando uma família passa por isso e tem a chance de dialogar entre si ou com amigos, quando tem a possibilidade de criar um campo relacional que permite uma reflexão e uma elaboração, progressivamente novos valores vão se criando. Mas quando não tem isso, esse vazio se perpetua. Cada um preenche da maneira mais imediata que estiver à disposição, e aí entram drogas, compulsões, vícios, aderências a situações que dão prazeres, mas que não levam a um processo de trabalho emocional, de reflexão, de análise e comparação antes de agir. Hoje, prevalece muito o ter e o fazer. E não o ser e o pensar.■

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