Edição 518 | 27 Março 2018

Ouvir as pessoas implicadas na vida das periferias é imprescindível

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

João Vitor Santos | Edição: Vitor Necchi

Para Daniel Hirata, essa escuta é necessária para se estabelecer o que é pertinente quando se discute violência

A violência, cada vez mais, é pesquisada no Brasil. No que tange às periferias, no entanto, falta um detalhe importante: ouvir. “Vale a pena o esforço de escuta sobre o que as pessoas dizem. Todas as pessoas. É imprescindível ouvir as pessoas que estão direta ou indiretamente implicadas na vida das periferias para estabelecermos os contornos de o que é pertinente e o que não é para tudo o que discutimos”, destaca Daniel Hirata. Sem isso, “podemos ficar sem entender o que é mais importante e sem conseguir dar respostas ao principal, que é o fato de o Brasil ser um país onde se mata e morre muito”.

Hirata, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, estabelece uma espécie de genealogia do controle das periferias. A começar pelos anos 1990, quando os policiais eram amigos dos comerciantes mais estabelecidos nos bairros, ao mesmo tempo em que se relacionavam com os chamados pés de pato – “justiceiros, herdeiros históricos dos famosos grupos de extermínio dos anos 1970/80”.

Dessas relações emanava a gestão da ordem do bairro. Sem melindres, colocavam na linha ou matavam “vagabundo” e “malandro”. Ao mesmo tempo, “tinham uma certa coerência: moral do trabalho, respeito à família e aos mais velhos, o fascínio da ordem”. Conforme Hirata, “é o velho conservadorismo autoritário com cara de extermínio que sempre assolou as periferias de São Paulo”.

Nas cadeias, havia um espelhamento, e o convívio era dividido por bairro, por quebrada. “Essas quadrilhas foram se organizando para matar os pés de pato fora/dentro das cadeias. E mataram”, afirma. “Não dependiam dos comerciantes para pagar pelas execuções ou pela proteção, não dependiam dos policiais para fazerem a sua proteção em troca de outras mortes.” Desta forma, o negócio do crime cresceu. O Primeiro Comando da Capital – PCC, “como grupo prisional, produz uma articulação dessa história interna à cadeia, e essa história das ruas, das quebradas”. Funcionou como amplificador das demandas dos prisioneiros e das quadrilhas. Isso explica o lema “paz entre os ladrões e guerra com a polícia”.

Daniel Hirata é doutor e mestre em Sociologia e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP. Realizou estágio pós-doutoral na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Leciona na Universidade Federal Fluminense – UFF. É pesquisador do Núcleo de Estudos de Cidadania, Conflito e Violência Urbana– NECVU-UFRJ; do grupo Cidade e Trabalho do Laboratório de Pesquisas Sociais – LAPS-USP; e do Núcleo de Pesquisas em Economia e Cultura – NUCEC-UFRJ.

A entrevista foi publicada nas Notícias do Dia, de 19-3-2018, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/2DYBOG5.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são e como compreender os processos transversais que, na prática, hoje fazem a gestão da ordem das periferias brasileiras?
Daniel Hirata – Hoje existe um corpo relativamente grande de pesquisas sobre o tema, que é muito variado porque as territorialidades urbanas são bastante diferentes em cada cidade e mesmo no interior de cada cidade. Então vamos encontrar várias composições diferentes entre dinâmicas societárias e institucionais em cada um desses territórios, tudo isso é matéria de pesquisa empírica, de entendimento específico. Existem processos históricos situados que dizem respeito à maneira pela qual isso foi sendo construído, e por aí temos um caminho para entender a coisa toda.

No que diz respeito ao que venho pesquisando e nos lugares onde venho pesquisando em São Paulo, esses processos históricos podem ser bem delimitados. Tenho feito esse esforço com a professora Vera Telles . Já temos coisas publicadas sobre isso, mas estamos preparando algo que deve sair em breve.

Nos anos 1990 (e de outras formas até hoje), os policiais eram amigos dos padeiros, do açougueiro, dos donos de mercadinhos – dos comerciantes mais ricos do bairro. E eram amigos dos pés de pato – os justiceiros, herdeiros históricos dos famosos grupos de extermínio dos anos 1970/80. Por sua vez, essas relações estruturavam a gestão da ordem do bairro. O que se conta deles é muito impressionante, matavam ou davam uma dura em qualquer pessoa que parecesse “vagabundo” ou “malandro”, nos termos deles – os dados sobre homicídios mostram que os anos 1990 eram muito violentos; parte importante considero que era por essas ações.

O que acontecia? Esses eram os caras que dominavam a quebrada, essa trinca entre pés de pato, polícia e comerciantes. Esse era o poder de gravitação maior dos ilegalismos no bairro. Tinham uma certa coerência: moral do trabalho, respeito à família e aos mais velhos, o fascínio da ordem. É o velho conservadorismo autoritário com cara de extermínio que sempre assolou as periferias de São Paulo (acho que isso no Rio tem cara de Baixada Fluminense, com uma temporalidade que é até parecida, mas isso é outra conversa...). Tudo isso não é algo que apareceu de repente no Brasil, todo mundo sabe.

É contra isso que “o crime” se insurge, pensando “o crime” pela definição de Adalton Marques . Eram as quadrilhas, eram galeras que ficavam ali, que faziam umas fitas, que por vezes vendiam uma parada ou saíam para roubar. Na cadeia, havia um espelhamento, o convívio era dividido por bairro, por quebrada, por área (se falava assim) – e o seguro era o lugar dos pés de pato, no Carandiru era o COC [Centro de Observação Criminológica]. Essas quadrilhas foram se organizando para matar os pés de pato fora/dentro das cadeias. E mataram. Não dependiam dos comerciantes para pagar pelas execuções ou pela proteção, não dependiam dos policiais para fazerem a sua proteção em troca de outras mortes. E assim a coisa cresceu. O crescimento dos negócios é o que me chama mais a atenção, mas não vou poder entrar muito nisso.

Tudo isso se acoplou com uma demanda interna às prisões que vinha se construindo: dentro do cárcere, 1992, depois 2001, depois 2006. Os trabalhos de Karina Biondi , Gabriel Feltran e Camila Dias , entre muitos outros, detalham isso de forma bastante clara. O PCC , como grupo prisional, produz uma articulação dessa história interna à cadeia, e essa história das ruas, das quebradas – o PCC é um amplificador das demandas dos prisioneiros e das quadrilhas e, não à toa, vem o lema: “paz entre os ladrões e guerra com a polícia”.

Do ponto de vista da história urbana, é claramente uma disputa pelo controle das quebradas, outras facções de classe em aliança, outros ilegalismos, outra política – igualmente mortal, diga-se de passagem, eram os “feios, sujos e malvados” –, nem por isso eram os bonzinhos da história, não é isso que quero dizer, quero dizer que é outra composição social, outras associações sociológicas. O que me parece importante é que não tem, ao menos para mim, nada que foi propriamente inventado pelo PCC, mas tem muita ressonância, muita amplificação da época das quadrilhas. Tanto da política quanto dos negócios que foram feitos depois. O PCC, para usar um termo luminoso que a Vera Telles usa em outro contexto, é um operador de escala. Operador de escalas políticas e econômicas. Foi um operador de escala de uma disputa dentro das periferias, de estratos sociais diferentes, de visões políticas diferentes, de práticas diferentes, ou seja, cada um mobilizando aliados diferentes, conflitivos – para mim essa era a disputa, a disputa sobre a gestão da ordem.

IHU On-Line – O que é o chamado “dispositivo de gestão das mortes” e como se manifesta nas periferias? Quais os efeitos desse dispositivo quando vaza para regiões mais centrais?
Daniel Hirata – Isso se relaciona à gestão da ordem que você se referiu anteriormente. O dispositivo de gestão de mortes é como essa gestão da ordem atua especificamente em relação à questão da vida e da morte, ou seja, é uma expressão analítica que procura entender quais são as situações em que alguns perdem suas vidas. Isso tem uma modulação histórica, como disse antes.

Esse dispositivo de gestão das mortes é feito em uma articulação complexa entre os agentes oficiais das forças da ordem (as diversas polícias e agentes de fiscalização) e os atores informais ou criminais. O Michel Misse vem insistindo há tempos no conceito de mercadoria política para falar sobre os chamados mercados da proteção. Acho que esse é um conceito fundamental, porque ajuda a entender como existe uma articulação nas interações entre as forças da ordem e os coletivos criminais. Não é que existe um equilíbrio, mas existe uma articulação que vai pontuando as configurações pelas quais as mortes acontecem. A delegação dos poderes soberanos de vida e morte é uma forma; a guerra entre coletivos criminais entre si ou com as forças da ordem, outra; as chacinas, outra, enfim, tudo isso passa por essa articulação, que tem direta ou indiretamente a ver com os negócios, porque a proteção é a condição de possibilidade de os negócios acontecerem. Então as duas coisas estão conectadas, o que sempre está em disputa é a gestão da ordem, o que reflete nas formas pelas quais as mortes vão acontecer.

Claro que isso tem uma distribuição desigual, aliás, como tudo, nos diversos territórios urbanos. Outro dia o comandante da ROTA falou explicitamente que a abordagem era diferente nas periferias ou nos Jardins. Isso é explícito. “A carne mais barata do mercado é a carne negra” , “negra, pobre e periférica”, enfim, essa conformação não é um desvio de finalidade, uma disfunção, é assim mesmo que funciona e temos que enfrentar isso sem concessão. Não é casual, é uma coisa que tem um sentido muito claro e definido, e temos muitas pesquisas que sustentam esse sentido.

IHU On-Line – No que consiste a adesão de comunidades de periferias a grupos associados ao crime organizado? E por que algumas comunidades parecem aceitar mais esses grupos do que o próprio Estado?
Daniel Hirata – Não acho que exista adesão das pessoas das periferias ao crime organizado, claro que as pessoas sempre têm opção. Também não acho que aceitam mais o “crime” do que o Estado. Inclusive, a coisa, me parece, tem que ser melhor colocada, ou seja, não uso a categoria crime organizado justamente porque ela separa muito claramente Estado e crime, e todo um conjunto bem consolidado de pesquisas vem mostrando como essas duas dimensões são articuladas. Também não acho que a questão é dizer simplesmente “os criminosos são outros”. É isso, mas é mais que isso, são essas articulações entre crime e Estado que vão pontuando a construção conjunta e articulada dessas duas coisas.

IHU On-Line – Como compreender a complexidade dos coletivos criminais de hoje? De que forma se constituem como agente econômico, político e moral, conectado e conectando uma série de outros agentes?
Daniel Hirata – Eu gosto da expressão coletivos criminais porque, ao contrário da expressão “crime organizado”, ela dá conta mais das associações que dos limites, especialmente aqueles entre Estado (Estado de direito, as instituições formais que são normalmente vinculadas a esse conjunto) e sociedade (os criminosos, os delinquentes etc.). Os coletivos criminais são compostos de dimensões sociais, políticas, morais e econômicas, e tudo isso se associa para sua formação. Tem que ver como historicamente isso foi se formando, reformando, mudando, tem linhas de continuidade, enfim, é necessário entender como essas coisas vão acontecendo.

Atualmente temos que dar um passo para trás e pensar com muita atenção, porque, depois da morte do Rafaat e do ocorrido no Complexo Penitenciário Anísio Jobim na virada do ano passado, as coisas ficaram meio loucas, não exatamente no mundão, mas na maneira pela qual as pessoas vêm analisando a situação, inclusive aquelas contrárias ao uso da categoria “crime organizado”. É como se disséssemos “bom, agora é crime organizado”. Em relação ao que ocorreu em Manaus, o Fabio Candotti , a Flávia Cunha e o Ítalo Siqueira já cantaram a bola de que temos que entender a coisa situada historicamente e com um outro nível de complexidade. Em relação à morte do Rafaat, eu gostaria de ver algo parecido. Desde os anos 1990 os caras do PCC já tinham cumprido pena no Centro-Oeste e no Paraná. Os negócios começaram ontem?

Cada coletivo criminal tem uma história de associações diferente, quando eles se encontram são essas associações que se encontram, então elas mudam. Bom, então a coisa não ficou com cara de crime organizado, ficou mais complicada, porque o que significa cada um desses coletivos está mudando. Como você disse, são redes políticas, econômicas e morais, então tem que entender as articulações que cada uma dessas coisas produz.

IHU On-Line – Quais são os principais coletivos criminais no Brasil hoje? Quais suas distinções e similaridades?
Daniel Hirata – Essa é uma pergunta difícil, saber “quais os principais”. É difícil, mas a longo prazo temos que conhecê-los e como eles estão mudando.

Estou atualmente em uma empreitada com a Carolina Grillo , um trabalho de colocar em perspectiva as nossas pesquisas sobre os coletivos criminais, pensando as possíveis comparações entre Rio de Janeiro e São Paulo. Em um primeiro artigo, tentamos pensar alguns parâmetros comparativos no que diz respeito ao mercado varejista de drogas. Trabalhamos três dimensões: os lugares de venda de droga, os coletivos criminais e as relações com as forças da ordem. A distribuição de drogas é muito distinta em cada uma dessas cidades. A circulação de mercadorias ocorre no Rio de Janeiro tendo por base uma extensão organizacional e territorial que multiplica as funções intermediárias e fragmenta progressivamente as quantidades de droga. Em São Paulo, utilizam-se unidades de venda compactas e com pouca abrangência, que concentram a venda no aumento de sua densidade e volume na circunscrição territorial. Assim, mesmo que os comandos paulistas e cariocas possam ser caracterizados como redes de alianças, como apontaram Antônio Rafael Barbosa e Michel Misse, cujo alinhamento com uma ou outra facção determina a adesão de todos os seus subordinados, as diferenças são marcantes.

Vemos horizontalidade entre os “donos de morro” do Rio de Janeiro e os “patrões” em São Paulo, assim como hierarquia desses com seus subordinados nas “firmas”. Contudo, como a venda de drogas em São Paulo conforma um sistema de alianças formadora do coletivo composto por um número muito maior de “patrões” do que de “donos de morro”, o PCC emerge como um coletivo mais móvel e translocal, e o CV , como mais centralizado e hierárquico. Assim, os conflitos e negociações com as forças da ordem tendem a se caracterizar de forma distinta também – ainda que os arranjos políticos ao redor das mercadorias políticas sejam comuns às duas cidades.

Isso é acionado no Rio de Janeiro em contornos intra e interfaccionais mais bélicos que em São Paulo, onde acentuam-se as negociações intramuros seguidas de demonstrações de força em práticas de execuções extralegais, ao passo que, no Rio de Janeiro, os confrontos por regiões mais lucrativas têm impactos nas prisões. Essas três dimensões ajudam a entender como os conflitos pelos mercados criminais têm maiores consequências desestabilizadoras na dinâmica faccional no Rio de Janeiro que em São Paulo e como se relacionam de forma distinta com a gestão das mortes em cada cidade.

Tudo isso tem que ser feito com cuidado, porque quando comparamos meio indistintamente os coletivos criminais por meio de categorias muito genéricas, o risco é perder o mais importante, que são as diferenças de cada um que podem apontar elementos para se pensar o conjunto. É complicado, complexo, longe de ser evidente.

Também tem uma questão importante, que é o tempo, a história desses coletivos. Podemos fazer comparações mais diacrônicas e mais sincrônicas, mas a dimensão do tempo, das camadas históricas, é fundamental. O CV se formou nos anos 1970 e o PCC, nos anos 1990. São momentos diferentes, que lidam com repertórios sociais diferentes, então isso tem que ser levado em conta.

IHU On-Line – Quais os limites do Estado, e da própria academia, para compreender a realidade das periferias?
Daniel Hirata – Vale a pena o esforço de escuta sobre o que as pessoas dizem. Todas as pessoas. É imprescindível ouvir as pessoas que estão direta ou indiretamente implicadas na vida das periferias para estabelecermos os contornos de o que é pertinente e o que não é para tudo o que discutimos. Esse trabalho ainda não é muito valorizado, mas, sem ele, podemos ficar sem entender o que é mais importante e sem conseguir dar respostas ao principal, que é o fato de o Brasil ser um país onde se mata e morre muito. Essa tem que ser a questão principal. Nesse ponto, até tem uma rede de alianças possíveis bastante forte para contrapor aquelas políticas (hegemônicas) que só ampliam os confrontos e jogam gasolina na fogueira. Temos que esvaziar o balão.

IHU On-Line – Como pensar em linhas de fuga para comunidades de periferias mergulhadas nessas disputas entre o poder estatal (das polícias e dos governos) e o poder paralelo (coletivos associados ao crime organizado)?
Daniel Hirata – Uma coisa fica no ar: como negociar com esses atores? Porque a preocupação principal – acho que em relação a isso avançamos bastante – tem que ser baixar ao máximo as mortes. Como faremos? Não me parece que seja possível minorar isso sem negociar publicamente com todos os envolvidos e prestar atenção no que estão dizendo. O que acontece é que as negociações são feitas todas de forma encoberta e todos os holofotes são jogados nas ações bélicas e militaristas. O melhor seria inverter isso. ■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição