Edição 517 | 18 Dezembro 2017

A busca por uma civilização mais igualitária e livre

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Ricardo Machado

Maria Alice de Carvalho mergulha na produção e na vida de André Rebouças, cujo pensamento progressista estava assentado na noção de “bem comum”

André Rebouças é reconhecido, principalmente, pelo planejamento e execução de obras de infraestrutura, como, por exemplo, as relacionadas ao Plano de Abastecimento de Água na cidade do Rio de Janeiro, durante a seca de 1870, e a construção das Docas da Alfândega, onde permaneceu de 1866 a 1871. Apesar de seu protagonismo na segunda metade do século XIX, “André Rebouças ainda não é suficientemente conhecido pelo conjunto da sociedade brasileira, ainda não integra o nosso panteão de heróis nacionais. Mas o conhecimento da sua obra como engenheiro tem crescido e é provável que, nesse caminho, sua atividade como intelectual reformador seja recuperada”, pondera a professora e pesquisadora Maria Alice Rezende de Carvalho, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“André Rebouças e sua obra servem – e sempre servirão – aos propósitos de uma sociedade que tem a liberdade como principal anseio”, frisa Maria Alice, ao explicar que Rebouças defendia não somente o fim da escravidão, mas a garantia aos negros de acesso à terra, o que permitiria, finalmente, livrar os escravos do senhorio. “A ideia do pequeno produtor organizado em cooperativas não visava solucionar questões econômicas, e sim deslocar a centralidade material e moral das grandes fazendas, em prol da organização de comunidades livres, assentadas sobre a noção de ‘bem comum’”, complementa.

Maria Alice Rezende de Carvalho é graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, mestra em História Social pela Universidade Estadual de Campinas e doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - Iuperj, onde trabalhou entre os anos de 1987 e 2007. Atualmente é professora do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. A professora é autora e organizadora de diversas obras, das quais destacamos O quinto século. André Rebouças e a construção do Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1998), República no Catete (Rio de Janeiro: Museu da República/Faperj, 2001) e Imprensa e Cidade (São Paulo: Editora Globo, 2012).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quem foi André Rebouças e como ele se tornou um dos personagens centrais na construção do Brasil? Qual foi sua formação e profissão, além de intelectual importante?
Maria Alice Rezende de Carvalho – Os ancestrais de André Rebouças foram muito pobres. Seus avós paternos foram Gaspar Pereira Rebouças, um português que veio ao Brasil para “tentar a vida” e se estabeleceu em Maragogipe, no Recôncavo Baiano, casado com Rita Brasília dos Santos, negra liberta, nascida em Salvador. O avô materno de André Rebouças era um modesto comerciante pobre, com uma única filha: Carolina.

André Rebouças nasceu na cidade de Cachoeira, no dia 13 de janeiro de 1838, filho de Antônio Pereira Rebouças e de Carolina Pinto Rebouças. Em 1846, sua família migrou para o Rio de Janeiro e, em 1857, André se matriculou na Escola Militar, depois chamada Central e por fim Politécnica, situada no Largo de São Francisco, onde concluiu as disciplinas preparatórias e foi promovido a Segundo Tenente do Corpo de Engenheiros. Para a obtenção do título de Engenheiro Militar, complementou sua formação na Escola de Aplicação da Praia Vermelha, tendo obtido o grau almejado em dezembro de 1860.

André Rebouças e seu irmão Antônio, também engenheiro militar, se empenharam na estruturação de companhias privadas que pudessem captar recursos junto a particulares e a bancos nacionais e estrangeiros para a consecução de obras de modernização do país. As obras mais importantes de André Rebouças foram as ligadas ao Plano de Abastecimento de Água na Cidade do Rio de Janeiro durante a seca de 1870 e a construção das Docas da Alfândega, onde permaneceu de 1866 a 1871.

Foram muitos os projetos idealizados por André Rebouças na década de 1870, esbarrando em empecilhos de variada natureza. Convencido de que o desenvolvimento do país era estorvado por uma sociedade apática, composta por senhores de escravos corrompidos pela instituição da escravidão, se entregou com todas as suas forças à campanha abolicionista. Porém, a abolição da escravidão, em 1888, acirrou os ânimos dos grandes proprietários de terras, cuja indignação se associou ao temor de que o Imperador viesse a alterar a situação agrária do país, mediante uma política de taxação de propriedades improdutivas. O movimento militar de 15 de novembro de 1889 proclamou a República e baniu a família imperial do território brasileiro. André Rebouças embarcou no mesmo navio, acreditando ser possível a articulação, na Europa, de uma reação monárquica.

Em suma, André Rebouças foi um engenheiro e um agente modernizador do Brasil no século 19; um dos mais ativos abolicionistas e formulador de propostas para a reorganização agrária do país, livre do monopólio da terra.

IHU On-Line – Como a proximidade de seu pai com dom Pedro II, de quem era conselheiro, ajudou-o a ter um certo protagonismo social em um Brasil escravocrata?
Maria Alice Rezende de Carvalho – Antônio Rebouças, o pai, era um autodidata, que obteve permissão para advogar na Bahia, e posteriormente em todo o Império. Ainda muito jovem foi secretário do Presidente da Província de Sergipe, membro do Conselho Provincial da Bahia, várias vezes Deputado na Assembleia Geral e participante de comissões de reforma judiciária. Portanto, era mesmo um homem de grande prestígio na Corte, por seus conhecimentos jurídicos e por sua defesa da “Causa da Justiça”. Como advogado do Conselho de Estado, esteve, ademais, muito próximo do Imperador, apoiando a monarquia e auxiliando a ação governamental do monarca. Por isso é possível que sua posição tenha aberto portas para o filho instruído e cheio de planos para mudar o Brasil.

Mas André Rebouças tinha voo próprio. Tanto é assim que, embora seu pai fosse um liberal histórico, o “padrinho” político de André Rebouças foi o Visconde de Itaboraí, Joaquim José Rodrigues Torres , membro, à época, do Partido Conservador. O Visconde de Itaboraí foi presidente do Banco do Brasil em dois períodos, ministro da Fazenda, conselheiro de Estado e senador do Império do Brasil de 1844 a 1872. Tinha especial admiração pelo ímpeto e obstinação de André Rebouças quando se tratava de construir equipamentos necessários à modernização brasileira, como portos, túneis e estradas, chamando-o carinhosamente de “meu inglês”. Nesse sentido, pode-se dizer que a firmeza, o caráter e a obra de Rebouças deviam falar mais alto ou tão alto quanto o fato de ser filho de Antônio Rebouças.

IHU On-Line – De que maneira podemos entender a perspectiva política de André Rebouças, ao lado de Visconde de Taunay (conservador) e Joaquim Nabuco (liberal), na luta abolicionista no final do século XIX?
Maria Alice Rezende de Carvalho – O movimento abolicionista foi um movimento irresistível para as populações urbanas brasileiras. Em todas as capitais de Províncias e nas maiores cidades do país foi crescente o sentimento de que era preciso abolir o trabalho compulsório, de que era preciso mudar. O movimento foi abraçado por intelectuais e políticos de diferentes orientações e compreendeu muitas estratégias como as conferências públicas, os debates, as manifestações de rua.

Rebouças foi dos mais ativos abolicionistas, engajado e disciplinado, pronto para qualquer tarefa que lhe coubesse, articulando nacionalmente o movimento que se tornava caudaloso. Mas compreendia que havia diferenças na adesão à causa, na intensidade e mesmo no entendimento do que deveria ser a mudança. E tais diferenças podiam ser percebidas em seus companheiros mais antigos, como Taunay, ou de aproximação mais recente, como Nabuco, mais jovem e membro de uma família de longa tradição parlamentar.

Taunay considerava que a abolição não poderia ser alimentada pelo sentimentalismo, pois isso levaria o Brasil à ruína. Considerava, pois, ser necessário estimular o movimento de imigração, a fim de que fosse substituída, progressivamente, a mão de obra escrava. Nabuco, diferentemente, lutava pela imediata liberalização dos escravos, deixando ao tempo a cura dos grandes malefícios que a escravidão nos trouxera. Rebouças compartilhava com Taunay o diagnóstico de que a imigração poderia ser elemento de regeneração da vida brasileira, mas, assim como Nabuco, acreditava que o momento da libertação dos escravos havia chegado; era agora.

A especificidade de Rebouças, contudo, residia na grande ênfase que emprestava ao tema da liberação do acesso à terra por parte dos libertos. Sem isso, os trabalhadores rurais negros, uma vez libertados da escravidão, continuariam dependentes dos grandes senhores. Defendia a organização de cooperativas de pequenos produtores, a exemplo do que ocorria na América, e considerava que a abolição não poderia prescindir da reforma do regime de utilização das terras.

IHU On-Line – Como a ignorância sobre a produção intelectual de personagens como Rebouças se reflete, ainda hoje, na dificuldade de compreender e superar problemas estruturais presentes no Brasil?
Maria Alice Rezende de Carvalho – André Rebouças passou à história como um engenheiro do Império, responsável por obras de relevo, comparável tecnicamente aos melhores engenheiros europeus. Pouco se sabe, porém, sobre a sua atividade reflexiva, sobre seus textos, muitos deles manuscritos ainda inéditos. O fato é que Rebouças escreveu um livro, intitulado “Agricultura Nacional: estudos econômicos, propaganda abolicionista e democrática”, que veio à luz em 1883, no mesmo ano de publicação de O Abolicionismo , de Joaquim Nabuco, cujo sucesso nublou todas as demais obras de problemática similar. De qualquer modo, Rebouças não era conhecido como intelectual e reformador social até aquele momento, e sim como homem de negócios bem-sucedido, como empresário de obras que se tornara rico com a sua atividade.

Contudo, o que deve ter contribuído, realmente, para esse apagamento da memória de Rebouças e do seu livro foi o fato de ele proclamar a reforma agrária como requisito indissociável da liberdade do homem do campo. Assim, “Agricultura Nacional...”, obra de divulgação dos principais argumentos de Rebouças em prol de uma “democratização rural no Brasil”, não foi assimilada como propaganda abolicionista e não contou com o entusiasmo da opinião urbana dedicada àquela causa. O movimento abolicionista, portanto, que integra nossas melhores avaliações sobre nós mesmos, brasileiros, se viu privado da ideia de reforma agrária.

IHU On-Line – Como André Rebouças se converteu em um dos demiurgos do nosso país e como ele ajuda a refletir sobre o pensamento brasileiro na segunda metade do século XIX?
Maria Alice Rezende de Carvalho – André Rebouças ainda não é suficientemente conhecido pelo conjunto da sociedade brasileira, ainda não integra o nosso panteão de heróis nacionais. Mas o conhecimento da sua obra como engenheiro tem crescido e é provável que, nesse caminho, sua atividade como intelectual reformador seja recuperada.

É possível que sua singularidade no campo liberal tenha retardado sua assimilação pela historiografia. Em primeiro lugar porque, ao contrário da vertente dominante do liberalismo oitocentista, Rebouças se tornou progressivamente favorável à centralização monárquica, vendo nisso um antídoto ao despotismo local exercido pelos grandes proprietários de terra. Costumava dizer que, comparado às nossas classes senhoriais, D. Pedro II era “superiormente democrático”. Além disso, não defendia prioritariamente, como os liberais, a reforma política e sim a social, defendendo um programa forte, que combinava abolição da escravatura e democratização da propriedade da terra. Nabuco, por exemplo, em relação a isso, distinguia a instituição da escravidão de suas “instituições auxiliares”, como o latifúndio, defendendo que elas tinham tempos distintos para a sua solução.

Creio que André Rebouças vem ganhando espaço no mundo acadêmico, e essa entrevista é prova disso.

IHU On-Line – Quais foram as circunstâncias que levaram Rebouças ao suicídio?
Maria Alice Rezende de Carvalho – André Rebouças se convenceu de que a República havia sido proclamada apenas na tarde de 15 de novembro, quando encontrou sua sala de aula ocupada por Silva Jardim e uma multidão de jovens exaltados. Mas não acreditou que aquela república duraria para sempre. Por isso acompanhou o deslocamento da Corte para Portugal, e nos dois anos seguintes permaneceu em Lisboa, criticando a república militar e escravocrata do Brasil e tentando articular a reação monárquica.

Porém, como se sabe, a restauração não ocorreu; a Constituição de 1891 era prova de que a República viera para ficar; e, por fim, a morte de D. Pedro II, sem deixar herdeiro à altura dos desafios entrevistos foram aspectos que sepultaram a crença de Rebouças em uma regeneração do Brasil. Ele ainda permaneceu algum tempo na Europa após o funeral do Imperador, seguindo para Luanda, com a ajuda de amigos portugueses, a fim de voltar a trabalhar como engenheiro, em um momento em que seu salário como professor no Brasil havia sido suspenso pelo governo republicano. Lá viveu até 1893, deslocando-se em seguida para a Ilha da Madeira, onde se suicidou em 1898, atirando-se de um penhasco.

Rebouças estava doente, pobre e em uma terra que não era a sua. Mas talvez o principal motivo para o suicídio tenha sido a descrença em relação ao futuro do Brasil. Nos seus últimos anos de vida costumava dizer que o Brasil, como civilização, apodrecera, sem conhecer a plenitude. Porque, diante da possibilidade de se reinventar, de extrair o travo colonial do latifúndio, se recusara a fazê-lo.

IHU On-Line – Qual a atualidade do pensamento de Rebouças no século XXI?
Maria Alice Rezende de Carvalho – André Rebouças e sua obra servem – e sempre servirão – aos propósitos de uma sociedade que tem a liberdade como principal anseio. A ideia do pequeno produtor organizado em cooperativas não visava solucionar questões econômicas, e sim deslocar a centralidade material e moral das grandes fazendas, em prol da organização de comunidades livres, assentadas sobre a noção de “bem comum”. Essa dimensão da autonomia e da solidariedade, em um mundo cada vez mais individualista e subalternizado é uma lição que não podemos desconhecer.

IHU On-Line – Certos setores da sociedade brasileira consideram a luta pela igualdade étnica e racial como “vitimismo”. De que maneira a produção intelectual de André Rebouças nos ajuda a superar essa retórica reducionista e construir caminhos mais progressistas?
Maria Alice Rezende de Carvalho – A produção intelectual de André Rebouças possui tal potência que é impossível desconhecer que ela está voltada para a libertação dos brasileiros de todas as cores e etnias. Nós não somos livres, não seremos livres enquanto houver escravos entre nós. Trata-se de uma perspectiva, de uma visão de mundo, que pode ser abraçada por brasileiros de qualquer etnia. Rebouças tem poucas considerações sobre a sua condição de negro, pois sua obra é revolucionária, dirige-se a todos que se sentem tolhidos em sua liberdade. Mas ele conhecia a sua posição, pensou sobre ela, mencionou os momentos em que se sentiu discriminado nos hotéis norte-americanos ou em uma festa da Corte, sendo levado a dançar com a Princesa Isabel . Ele conhecia, portanto, a problemática racial, mas não fez dela a sua prioridade. Seu tempo não era esse.

Porém, é louvável que, hoje, a luta por igualdade étnica reivindique a figura pública de André Rebouças. E não há nada de vitimismo nisso, como não houve vitimismo da parte de Rebouças, quando enfrentou suas derrotas particulares como engenheiro. Trazer Rebouças como símbolo de uma civilização igualitária e livre é o que poderia haver de mais promissor nas lutas sociais de nosso tempo.■

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