Edição 517 | 18 Dezembro 2017

A transformação do negro em ser errante

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Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos

Kabengele Munanga analisa como a história mais conservadora nega a esse povo o direito a um passado, um presente e um futuro

Os dicionários de Língua Portuguesa definem errante como aquele ser que vaga, um nômade sem destino e, ainda, que se desvia do caminho da sensatez, do bom senso. Para o antropólogo Kabengele Munanga, é justamente nisso que a historiografia tradicional quer transformar o negro no Brasil. “Um povo sem história, isto é, sem passado, presente e futuro, é como um errante”, resume. “O negro só pode ser protagonista da História do Brasil ao mostrar que ele faz parte dessa história não apenas como força muscular humana, mas como cérebro, resistente apesar do rolo compressor da escravidão, que deu sangue, deu cultura ao Brasil e, portanto, sem ele a história do Brasil não teria a configuração atual”, defende.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele reconhece que a historiografia contemporânea deu passos importantes, trouxe muitos avanços no reconhecimento do passado do negro, mas ainda se tem muito a superar da velha tradição. “Avançar muito não quer dizer que acabou o racismo no país ou que as desigualdades raciais diminuíram. Pelo contrário, a sub-representação do negro em vários setores da vida nacional é ainda chocante”, destaca. Para Munanga, o racismo de hoje é muito mais sutil e, por vezes, mais perverso. Ele mesmo, ao chegar ao Brasil da imagem do Carnaval e do futebol, pensava estar num lugar de comunhão racial. “Não demorei para perceber, através do cotidiano, que o Brasil era um país racista não assumido, como os Estados Unidos e a África do Sul durante o regime do apartheid. O fato de nós africanos sermos os únicos a fazer os cursos de pós-graduação na USP já era bastante revelador desse racismo”, analisa.

Kabengele Munanga nasceu na República Democrática do Congo, onde se graduou em Antropologia Cultural pela Universidade Oficial do Congo, na cidade de Lubumbashi, instituição em que trabalhou como professor e pesquisador. Naturalizado brasileiro desde 1985, é doutor em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo - USP. Atualmente é professor pesquisador sênior da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB e da USP. Atua na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia das Populações Afro-Brasileiras. Entre suas publicações, destacamos Origens africanas do Brasil contemporâneo: Histórias, línguas, culturas e civilizações (São Paulo: Global, 2009), Negritude - Usos e sentidos (Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009) e Superando o racismo na escola (Brasília: Ministério da Educação, 2005).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De onde vem a noção de que a história dos negros só existe a partir da escravidão? Que tipo de imaginário é construído a partir dessa perspectiva?
Kabengele Munanga – Quando a gente percorre a historiografia brasileira antes da Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da história e das culturas africanas e do Negro brasileiro, percebe-se que não se ensinava na escola brasileira a História da África antiga e ainda menos da África Pós-Independência. Na mesma historiografia a história do Negro no Brasil se limitava ao tráfico, à escravidão e à abolição. O que vinha antes do tráfico era desconhecido e o que vinha depois da abolição também era desconhecido.

No imaginário coletivo de jovens brasileiros de qualquer escola, o continente africano era reduzido à imagem de um único país, à fauna e à flora. Da África se exibiam mais os animais do que os seres humanos e suas culturas. A civilização egípcia, uma das mais antigas, foi apresentada como pertencendo ao Oriente Médio e não ao continente africano justamente para não atribuir ao negro africano a paternidade dessa civilização. Apesar da paleontologia ter demonstrado que a África é o berço da humanidade por onde começou a própria história da humanidade, as especulações do filósofo Hegel , que rechaçou a África subsaariana da História da Humanidade, se mantêm ainda no imaginário coletivo de muitos cidadãos contemporâneos.

O que está por trás disso quando se fala da diáspora africana no Brasil, ou em todas as Américas beneficiadas pelo tráfico negreiro, é a ideia de que os negros da diáspora são oriundos de um continente sem história antes do tráfico e da Conferência de Berlim. Ou seja, sua história começa com o tráfico, a escravidão e a colonização. No entanto, a história da África tem passado, presente e continuidade. No Brasil pós-abolição, ignorou-se totalmente o que estava se passando com a história do negro marcada, entre outros, pelo racismo sui generis brasileiro e pelas desigualdades raciais encobertas pelo mito de democracia racial.

IHU On-Line – Qual a importância de resgatar a memória dos negros como protagonistas da História do Brasil?
Kabengele Munanga – Um povo sem história, isto é, sem passado, presente e futuro, é como um errante. É um povo sem memória a partir da qual deve construir sua identidade, isto é, sua existência ontológica e suas contribuições ou aportes na própria história do Brasil, na construção de sua economia com a mão de obra escravizada e de sua cultura plural como resultante da diversidade com suas diferenças.

Em outros termos, o negro só pode ser protagonista da História do Brasil ao mostrar que ele faz parte dessa história não apenas como força muscular humana, mas como cérebro, resistente apesar do rolo compressor da escravidão, que deu sangue, deu cultura ao Brasil e, portanto, sem ele a história do Brasil não teria a configuração atual. Os negros são sujeitos dessa história, apesar de serem vítimas das práticas racistas que explicam sua situação de subalternidade no Brasil contemporâneo.

IHU On-Line – O senhor nasceu, cresceu e realizou parte de sua formação no Congo. Qual foi sua impressão do Brasil ao desembarcar aqui em plena ditadura civil-militar, no meio da década de 1970?
Kabengele Munanga – Desembarquei no Brasil, justamente na cidade de São Paulo, em julho de 1975, para fazer meu doutorado na Universidade de São Paulo - USP, que concluí dois anos depois, em outubro de 1977. A imagem que tinha do Brasil era do Carnaval do Rio de Janeiro e de futebol simbolizado pelo Rei Pelé . As duas imagens, tanto do Carnaval como do futebol, mostravam povos misturados (negros, brancos e mestiços juntos). Os povos indígenas chamados índios não se viam nessas imagens. Essas imagens passavam a ideia de um país sem discriminação racial, onde brancos e negros brincavam juntos no Carnaval e jogavam juntos o futebol, sem segregação racial e, portanto, sem racismo.

Através do lúdico, o mito de democracia racial atravessou com facilidade as fronteiras nacionais brasileiras. As pessoas, mesmo estudantes da USP, tinham uma grande ignorância da África, que muitos consideravam como um país. Me perguntavam se já havia caçado ou matado um leão; se havia visto um carro antes de vir ao Brasil; se tinha televisão na África. Me perguntavam que instrumento musical eu tocava e quando dizia que não tocava nenhum era um grande escândalo. Onde já se viu um negro que não toca nenhum instrumento musical, ele que tem musicalidade no sangue(!).

Sem negros na USP

Não demorei para perceber, através do cotidiano, que o Brasil era um país racista não assumido, como os Estados Unidos e como a África do Sul durante o regime do apartheid . O fato de nós africanos sermos os únicos a fazer os cursos de pós-graduação na USP, e eu o primeiro negro a fazer Doutorado em Antropologia na USP daquela época, já era bastante revelador desse racismo. Por onde andavam os negros da terra? A culpa de sua ausência na USP era atribuída a eles mesmos, pois não se esforçavam para estar onde eu estava, diziam.

Entendi onde estava o problema: não no negro, mas na sociedade brasileira, que não assumia seu racismo. Aprendi mais tarde na leitura da obra do grande mestre e intelectual Florestan Fernandes que o "Brasil tem o preconceito de ter preconceito racial". Cheguei durante o regime militar, no governo de Ernesto Geisel , e vi o fim do regime militar com o fim do governo do General Figueiredo . Escutei quando ele declarou, depois de uma viagem à Bahia, que preferia o cheiro do seu cavalo do que o dos baianos.

Enfim, vi o Brasil se construir democraticamente e já naturalizado, em 1985, votei em várias eleições. De repente tudo que foi construído democraticamente durante meus 42 anos do Brasil me parece desmoronar da noite para o dia.

IHU On-Line – Quais foram os principais personagens negros do Brasil marginalizados pelas narrativas historiográficas?
Kabengele Munanga – Acho que muitos personagens negros da história social do Brasil são marginalizados pelas narrativas historiográficas. Diria quase todos. Se perguntar para um jovem ou uma jovem brasileiro(a) se ele(a) conhece algum intelectual negro (p.ex. Milton Santos , Clóvis Moura , Lélia Gonzales , Beatriz de Nascimento ), dificilmente encontrará um que os conheça. Mas se perguntar o nome de um negro jogador de futebol, terá uma resposta facilmente. Os habitantes de São Paulo sabem que André Rebouças e Theodoro Sampaio eram personagens negros? Duvido.

Os grandes poetas e escritores negros como Lima Barreto , Cruz e Sousa , entre outros mortos, ou Osvaldo Camargo , entre outros vivos, são conhecidos como negros? Duvido. Machado de Assis , idealizador e fundador da Academia Brasileira de Letras, é na cabeça de muitos um "heleno", quando na realidade é um mestiço claro embranquecido, ou seja um afrodescendente.

Os personagens negros famosos são ora embranquecidos, ora silenciados ou ignorados. Faz parte da estratégia política para apagar as contribuições negras na sociedade brasileira. Zumbi dos Palmares tornou-se reconhecido como herói nacional pela grande população, suponho eu, a partir das campanhas de conscientização intensivas promovidas em 20 de novembro, data oficial de sua morte. Cerca de 20 anos atrás, as pessoas comuns no Brasil não sabiam quem era Zumbi dos Palmares.

IHU On-Line – Sua formação é prioritariamente na área de Antropologia. Como o senhor percebe as transformações no campo no que diz respeito a questões étnico-raciais ao longo das últimas décadas?
Kabengele Munanga – A Antropologia e as Ciências Sociais em Geral foram áreas do conhecimento que pesquisaram com certa persistência as questões da sociedade brasileira no que diz respeito à situação do negro no Brasil. Os estudos pioneiros de Nina Rodrigues , médico psiquiatra da Faculdade de Medicina da Bahia, e seu discípulo Arthur Ramos foram os primeiros a tocar nas resistências culturais do negro na sociedade brasileira apesar do conteúdo racialista neles contido. A partir deles houve uma avalanche de estudos sobre as religiões de matriz africana, como Candomblé, liderados por Roger Bastide e seus discípulos brasileiros.

Mas um salto positivo veio depois da segunda guerra mundial, nos anos 50/60, através de um projeto de pesquisa patrocinado pela Unesco para averiguar a veracidade da chamada democracia brasileira, que poderia servir de exemplo para uma humanidade abalada pelo holocausto depois da segunda guerra mundial. Foi a partir desse projeto que se criou na universidade brasileira uma área de pesquisa denominada "Relações Raciais e Interétnicas" que muito dinamizou o estudo do racismo à brasileira. Foi a partir dos trabalhos desenvolvidos nessa área pelos sociólogos e antropólogos que a academia brasileira chegou a desmitificar a ideia de democracia racial brasileira, embora essa desmitificação fosse feita bem antes pela Frente Negra Brasileira , nos anos 1930.

Infelizmente, nos debates nacionais sobre políticas afirmativas ou cotas que se desencadearam no Brasil a partir de 2001, após a 3ª Conferência Mundial sobre o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, organizada pela Organização das Nações Unidas - ONU em Durban, África do Sul, alguns nomes significativos dos intelectuais e pesquisadores da questão racial no Brasil que sempre denunciaram o mito de democracia racial e acusaram as desigualdades raciais no Brasil se posicionaram contra essas políticas que beneficiariam negros e indígenas para ter acesso à universidade pública através de reservas de vagas. Foram derrotados, mas, mesmo assim, prestaram um péssimo serviço para as populações que foram sujeitos de suas pesquisas durante dezenas de anos. Tratou-se de um debate de ideias num terreno democrático que até ajudou a quem de direito, isto é, os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo a tomar decisão esclarecida.

IHU On-Line – Atualmente, como o senhor avalia o ativismo negro no Brasil?
Kabengele Munanga – O ativismo negro no Brasil fez avançar muito a luta contra o racismo e as desigualdades raciais no país. Avançar muito não quer dizer que acabou o racismo no país ou que as desigualdades raciais diminuíram. Pelo contrário, a sub-representação do negro em vários setores da vida nacional é ainda chocante.

No entanto, deu alguns resultados palpáveis, como as cotas nas universidades públicas federais e estaduais, a Lei 10.639/03, a criação da Fundação Cultural Palmares, a Secretaria de Promoção das Políticas de Igualdade Racial - Seppir, Estatuto da Igualdade Racial, entre outros. Nos últimos anos, no contexto político que o Brasil vive depois do "Golpe", a sensação que tenho é a de uma certa apatia dos movimentos sociais, inclusive o Movimento Negro, que é dividido entre ideologias ou partidos políticos em ação.

IHU On-Line – De que forma a atual conjuntura, que cada dia mais flerta com posturas conservadoras, impõe novos desafios à comunidade negra no Brasil?
Kabengele Munanga – A atual conjuntura cria novos desafios não apenas para negros, mas para todos os brasileiros e todas as brasileiras independentemente da cor da pele. É claro que numa situação de retrocessos e das perdas das conquistas de anos de lutas sociais, os mais fragilizados são os que perdem muito. Os negros são os mais fragilizados porque não têm empresários corruptores, nem políticos que dirigem os grandes partidos envolvidos no esquema do Mensalão e da Lava Jato. Nem sequer têm acesso aos corredores políticos e empresariais onde acontecem essas sujeiras.

Não quero dizer que os negros devem roubar, corromper ou se deixar corromper, pois são cidadãos brasileiros como os brancos, com defeitos e qualidades como todos os seres humanos. Mas, francamente, não é por virtude que não estão na lama; simplesmente porque não têm acesso aos corredores da corrupção e do roubo. Quer dizer que ele é discriminado até para roubar. A ministra Matilde Ribeiro , da Seppir, foi exonerada do cargo por ter utilizado o cartão de crédito corporativo para uma despesa de cerca de R$ 400,00 no Free Shopp quando voltava de uma viagem do exterior. A ministra Benedita da Silva foi exonerada do cargo por ter pago com o dinheiro público a viagem de sua secretária que a acompanhou na Argentina. O ministro Orlando Silva quase perdeu o posto por ter comprado uma tapioca de R$ 12,00 com cartão corporativo. Erraram, sim, mas os que roubaram milhões são soltos e nem perderam os cargos no governo atual.

IHU On-Line – Certos setores da sociedade brasileira consideram a luta pela igualdade étnica e racial como “vitimismo”. De que maneira os protagonistas negros da história do Brasil e suas produções nos ajudam a superar essa retórica reducionista e a construir caminhos mais progressistas?
Kabengele Munanga – Muitas vezes o discurso de autodefesa dos negros é chamado de discurso de vítima ou de vitimização. O que é uma desqualificação recheada de preconceito. Logicamente é um discurso de vítima e não de vitimador. A questão importante a ser feita é qual é o conteúdo desses discursos das vítimas? Só tem lágrimas, acusações e lamentações ou tem outras coisas, como a exigência da justiça, da igualdade de oportunidade e de tratamento, exigência das políticas públicas de inclusão, denúncia da violência policial contra a juventude negra, entre outros?

Qualificar esse discurso de "vitimismo", como se os negros estivessem só chorando, não fazendo nada para mudar sua situação no Brasil, é simplesmente um cinismo. O movimento negro vem lutando desde a rebelião das senzalas até hoje contra um racismo muito sofisticado, sutil e difícil de derrotar.

IHU On-Line – O negro no Brasil continua sem passado, presente e futuro? Por quê?
Kabengele Munanga – O negro no Brasil tem passado que começa na África, de onde foi deportado e escravizado no Brasil. No Brasil, ele tem passado de luta para sua libertação, luta para resistência cultural, tem participado e contribuído na construção da economia colonial do país com suor e sangue, tem participado no povoamento demográfico do Brasil e deu culturas ao Brasil, inclusive as religiões. Tudo isso é o passado que lhe foi negado e que ele tenta recuperar no processo de construção de sua identidade negada.

O negro no Brasil tem um presente marcado pelas desigualdades raciais contra as quais ele luta através do seu movimento social. O ser negro é homem e mulher ambos vítimas do racismo, sendo a mulher negra duplamente vítima do racismo e do machismo.

Ela/ele têm futuro que resultará de suas lutas, contando com a solidariedade de todos os brasileiros e todas as brasileiras brancos(as) conscientes e pensantes. No entanto, não sou futurologista para dizer qual vai ser exatamente esse futuro que depende de sua luta e da solidariedade de todos(as) os(as) brasileiros(as).

IHU On-Line – Diante do atual cenário, como o senhor vê o futuro do ativismo negro no Brasil?
Kabengele Munanga – Não faço futurologia e não sou mágico para prever o que vai ser o ativismo negro no Brasil diante do atual cenário. Mas creio que, em contexto de crise, a criatividade é às vezes mais forte e, sendo o negro um microcosmo da sociedade brasileira, ele vai certamente reagir como todas as vítimas deste contexto.■

Leia mais

- A preponderante geografia dos corpos. Entrevista com Kabengele Munanga, publicada na revista IHU On-Line número 477, de 16-11-2015.

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