Edição 516 | 04 Dezembro 2017

O eterno desafio brasileiro da valorização docente

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João Vitor Santos | Tradução: Vanise Dresch

Para o canadense Maurice Tardif, o problema do Brasil não é a formação de professores. A grande questão continua sendo as condições de trabalho dos educadores

Em meio a toda a discussão sobre a Base Nacional Comum Curricular - BNCC, o professor canadense Maurice Tardif reascende um debate muito antigo: “creio que o principal problema dos professores no Brasil não está na formação, mas em suas condições de trabalho”. A Base deve trazer mudanças na formação de professores, mas, seguindo com Tardif, tais mudanças só poderão dar resultado se o país superar esse antigo problema. “Os professores brasileiros ainda não são considerados e tratados como verdadeiros profissionais”, destaca, ao lembrar de baixos salários e das dificuldades estruturais do ambiente de trabalho dos educadores. Para o professor, um país só será capaz de se desenvolver se, primeiro, desenvolver o sistema educacional. “Valorizar o ensino é valorizar o desenvolvimento do Brasil; apoiar os professores brasileiros é apoiar o avanço do Brasil”, pontua.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor ainda traz a experiência canadense como inspiração nesse momento em que se fala em reforma da educação. “Hoje, o mais importante é a formação continuada e o desenvolvimento profissional dos professores”, aponta. Desenvolvimento profissional que, para ele, significa: atualização e aprimoramento constante e formação alicerçada na prática. “O conhecimento teórico é sempre um conhecimento geral e abstrato. Mas a ação docente é concreta e situada”, avalia.

Maurice Tardif é professor titular de História e Sociologia da Educação na Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de Montreal, no Canadá, onde leciona História do Pensamento Educativo Ocidental. Também é membro da Comissão canadense da Unesco, da Sociedade Real do Canadá e da Academia de Ciências do Canadá. Publicou 32 obras e mais de 250 textos, dos quais destacamos El problema de las identidades docentes (Espagna: Narcea, 2017) e L’organisation du travail des acteurs scolaires. Points de repères sur les évolutions au début du XXIe siècle. (Québec: Presses de l’Université Laval, 2017).

Tardif será o conferencista do II Encontro das Licenciaturas da Região Sul – II EncliSul, II Encontro do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência da Região Sul – II Pibid Sul, II Seminário Institucional Pibid/Unisinos, a ser realizado entre os dias 13 e 15 de dezembro, no Campus São Leopoldo da Unisinos, cujo tema é Práticas de Iniciação à Docência na Região Sul: enfoques, avaliação e perspectivas. O evento é promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos. Saiba mais.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em suas pesquisas, o senhor argumenta que o saber docente transforma-se de acordo com a história de uma sociedade, com as culturas. Assim, o que constitui o saber docente na sociedade do nosso tempo?
Maurice Tardif – Tradicionalmente, antes da década de 1960, o saber docente limitava-se ao conhecimento do conteúdo a ensinar (Português, História, aritmética, Geografia etc.) e às técnicas de coordenação dos grupos de alunos: controle dos alunos, manutenção de uma boa disciplina em sala de aula, eliminação de situações de conflitos etc. Ora, atualmente, o que se exige dos professores é muito mais do que isso: eles têm de conhecer o desenvolvimento intelectual de seus alunos, precisam adaptar o ensino às características e às diferenças individuais destes, devem dominar as novas tecnologias da informação, dar suporte aos alunos com dificuldades de aprendizagem e promover o êxito escolar de todos, respeitando, ao mesmo tempo, as culturas dos alunos e de suas famílias – que, às vezes, são muito diferentes – etc.

Por exemplo, em certas cidades como Montreal, os professores trabalham com turmas compostas majoritariamente por alunos de imigração recente, cujos pais não falam francês nem inglês. Em certas escolas canadenses situadas em região urbana, 90% das crianças provêm de outros países e de outras culturas. Tudo isso mostra que o saber docente tem se tornado mais complexo. Um professor não pode mais ser considerado um técnico ou um executor. Ele tem de agir como um profissional e manter uma relação reflexiva com o seu próprio saber, seus conhecimentos e suas competências.

Hoje, o mais importante é a formação continuada e o desenvolvimento profissional dos professores. Os docentes de hoje precisam aprender ao longo de toda a vida, devem transformar e ajustar seus conhecimentos e competências em função da evolução da sociedade e dos públicos escolares. O saber docente não pode mais ser um saber estático, fixo, adquirido de uma vez por todas ao término da formação inicial. Aprender a ensinar é um processo que se estende por toda a carreira docente, não se limitando, portanto, apenas à formação inicial. Precisamos, nos dias de hoje, de professores que saibam que o dever deles é o aperfeiçoamento contínuo.

IHU On-Line – A partir dos seus trabalhos, podemos dizer que a experiência é um saber central para a prática docente. Mas de que ordem é essa experiência?
Maurice Tardif – Como nas outras profissões (medicina, direito, trabalho social, engenharia etc.), o aprendizado da docência não pode se limitar a conhecimentos teóricos: um profissional é aquele que possui saberes práticos capazes de agir sobre a realidade e transformá-la. Sabe-se hoje que esses saberes práticos são adquiridos principalmente na ação e pela experiência adquirida com o trabalho profissional. Por isso, a formação prática (estágios) está sempre no cerne de toda formação profissional de qualidade. De fato, é no confronto com as realidades do trabalho que se pode aprender a desenvolver estratégias concretas para a resolução de situações cotidianas. Isso não é diferente em relação à docência.

Por exemplo, um professor que enfrenta, em sala de aula, problemas de comportamento de certos alunos não pode simplesmente lançar mão dos conhecimentos teóricos extraídos da psicologia comportamental, tendo de adaptar obrigatoriamente esses conhecimentos teóricos ao caso específico de sua classe e de seus alunos. O conhecimento teórico é sempre um conhecimento geral e abstrato. Mas a ação docente é concreta e situada. São a experiência e a prática que permitem que os professores traduzam e adaptem os conhecimentos teóricos às realidades concretas de suas classes e de seus alunos.

IHU On-Line – No Brasil, ainda há grandes desafios a serem enfrentados no campo educacional, principalmente relacionados com a formação de professores. Como o senhor vem acompanhando a realidade brasileira?
Maurice Tardif – Não sou um especialista do Brasil. Dito isso, creio que o principal problema dos professores no Brasil não está na formação, mas em suas condições de trabalho. Os professores brasileiros ainda não são considerados e tratados como verdadeiros profissionais: são mal pagos, trabalham em condições difíceis muitas vezes, trabalham em duas ou três escolas para terem um salário decente, são pouco respeitados pelos dirigentes políticos. Penso que o Brasil deveria apoiar e valorizar mais seus professores, pois, sem eles, a escola não existiria, nem a democracia.

Vivemos cada vez mais numa sociedade do conhecimento. Uma sociedade desse tipo baseia-se na qualidade da educação e no valor da escola. São os professores, dentro de suas salas de aula com seus alunos, que garantem justamente a qualidade da educação. Sem esse trabalho diário dos professores com os alunos, a escola não passaria de uma imensa concha vazia. Valorizar o ensino é valorizar o desenvolvimento do Brasil; apoiar os professores brasileiros é apoiar o avanço do Brasil.

IHU On-Line – Como o processo de formação de futuros quadros docentes tem sido desenvolvido no Canadá? E de que forma podem inspirar a realidade brasileira?
Maurice Tardif – No Canadá de língua inglesa, a formação dos professores é feita na universidade e dura cinco anos: três anos de licenciatura e dois anos de “mestrado”. É o mesmo modelo dos Estados Unidos. Em Quebec, a formação universitária é de quatro anos. No entanto, em ambos os casos, a duração global da formação é a mesma, ou seja, 17 anos de escolaridade. A formação prática é o elemento mais original e mais forte dos currículos quebequenses em relação ao resto do Canadá.

Durante as décadas de 1970 e 1980, a duração dos estágios girava em torno de 200 a 300 horas, dependendo da universidade. Mas o Ministério da Educação determina, desde 1994, um mínimo obrigatório de 700 horas de estágio durante os quatro anos de duração da formação, o que representa facilmente o dobro do que se pratica no resto do Canadá. Na verdade, as universidades dedicam ainda mais tempo à formação prática (em média, cerca de 1.000 horas), pois consideram que esta dá aos futuros professores a oportunidade de adquirirem as competências essenciais à sua profissão. Essa formação é feita nas escolas sob a orientação de professores experientes.

Além disso, em complementação aos estágios, existem vários dispositivos de formação: análise de práticas pedagógicas, estudos de casos, simulações etc. Em resumo, ao longo dos anos, a formação docente esforça-se para aproximar-se de um modelo “clínico”, aliando o máximo possível a teoria à prática, como se vê nas formações profissionais universitárias de maior reputação.■

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