Edição 515 | 13 Novembro 2017

Filosofia: ferramenta para iluminar a crítica sobre a realidade

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João Vitor Santos

Carolina Molina vai a Pierre Hadot para compreender a perspectiva da filosofia como forma de vida

Quando se fala em Filosofia, logo vem a imagem daquele pensador num gabinete em meio a muitos livros, citando Aristóteles, Platão e outros, muito erudito, mas pouco conectado ao mundo concreto. Para a jovem Carolina Molina, graduada em Filosofia pela Unisinos, essa é uma visão equivocada. Talvez, tão equivocada quanto pensar noutra filosofia mais conectada como os dilemas da atualidade. “Parece-me que voltar à filosofia antiga não é meramente a opção por um conhecimento acabado de expertos sobre o tema. Trata-se de buscar nela elementos filosóficos que auxiliem e iluminem a reflexão crítica sobre a nossa realidade, desconstruindo os modos de subjetivação que nos determinam”, defende.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Carolina reflete sobre o conceito de filosofia como forma de vida. “Pierre Hadot contribui para a iluminação do debate sobre o fazer filosófico contemporâneo, especificamente sobre a relação que existe entre filosofia e forma de vida, isto é, sobre o papel que desempenha na construção da vida do próprio sujeito, como um caminho de subjetivação”, destaca. Ela ainda explica que, “por um lado, o campo da ação filosófica ficou reduzido ao discurso e, por outro, a filosofia se distanciou daquilo que foi seu sentido e essência originais: ser uma forma de vida”. Por isso, defende o regate do fazer filosófico existencial. “A filosofia pode contribuir muito, numa perspectiva do cuidado de si (epimeleiaheauton), para o enfrentamento dos atuais desafios e exigências de um mundo sempre mais conturbado”, pontua.

Carolina Alejandra Reyes Molina é chilena, possui graduação em Ciências Religiosas pela Pontificia Universidad Católica de Valparaiso, no Chile, e em Filosofia pela Unisinos. Ela também integra a Comunidade Missionária de Cristo Ressuscitado.

Ela ministrou a palestra A filosofia como forma de vida no dia 9/11, dentro da programação do IHU ideias. Assista a íntegra da conferência.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que consiste a ideia de filosofia como modo de vida, desenvolvida por Pierre Hadot ?
Carolina Molina – Para Hadot, a filosofia antiga era uma prática existencial, uma escolha, uma opção fundamental por uma determinada vida filosófica que desejava alcançar a sabedoria. Para atingir esse ideal, era necessário não apenas o conhecimento discursivo filosófico da lógica, da ética e da física, mas era imprescindível viver a lógica, a ética e a física. Isto é, havia uma distinção entre discurso filosófico e vida filosófica.

Desse modo, cada escola filosófica – seja o platonismo, o aristotelismo, o epicurismo ou o estoicismo e os movimentos cínico e cético, cada um segundo sua proposta e opção de vida – esforçava-se por viver uma vida filosófica sustentada pelo discurso. Uma parte central dessa prática filosófica se realizava através dos assim denominados exercícios espirituais. Tratava-se de práticas que podiam ser da ordem física, discursiva ou intuitiva, destinadas a produzir, em quem as praticava, a transformação necessária que levaria o exercitante a alcançar a sabedoria. Sócrates era o ícone dessa concepção de filosofia, pois filósofo não é aquele que constrói um grande sistema de pensamento, mas aquele que vive uma vida filosófica.

Essa concepção da filosofia como forma de vida foi, segundo a visão de Hadot, predominante até os séculos III e IV da nossa era, quando foi assimilada pelo cristianismo, reduzindo a filosofia a um mero aparato conceitual como discurso teórico argumentativo da teologia.

IHU On-Line – Como você compreende o fazer filosófico a partir da ideia da filosofia como um modo de vida?
Carolina Molina – Na perspectiva sugerida por Hadot, acredito que o fazer filosófico deveria, como foi nas suas origens, [pre]ocupar-se tanto com a dimensão especulativa teórica como com o caráter prático existencial do sujeito. Na perspectiva da filosofia como modo de vida, Pierre Hadot contribui para a iluminação do debate sobre o fazer filosófico contemporâneo, especificamente sobre a relação que existe entre filosofia e forma de vida, isto é, sobre o papel que desempenha na construção da vida do próprio sujeito, como um caminho de subjetivação.

Devemos lembrar que a tradição filosófica ocidental enfatizou uma visão filosófica de caráter predominantemente científico-epistemológico, focada principalmente na produção de um discurso filosófico, técnico, especializado, reservado para alguns e separado da prática de vida, em prejuízo de uma filosofia de caráter mais existencial que implique ir além da teoria. Dessa maneira, por um lado o campo da ação filosófica ficou reduzido ao discurso e, por outro, a filosofia se distanciou daquilo que foi seu sentido e essência originais: ser uma forma de vida. Parece-me pertinente e necessário resgatar o fazer filosófico nesse campo existencial. A filosofia pode contribuir muito, numa perspectiva do cuidado de si (epimeleiaheauton), para o enfrentamento dos atuais desafios e exigências de um mundo sempre mais conturbado.

IHU On-Line – Em que medida o estudo da Filosofia Antiga pode nos inspirar a pensar saídas para os problemas de nosso tempo?
Carolina Molina – O nosso tempo caracteriza-se, entre outras coisas, pelo uso de técnicas e meios de administração/gerenciamento/e controle da vida. Cada vez mais, a vontade e a liberdade dos indivíduos ficam submetidas às técnicas de controle e manipulação que determinam os estilos e os modos de vida.

Nesse sentido, e na perspectiva do que assinalei anteriormente, parece-me que voltar à filosofia antiga não é meramente a opção por um conhecimento acabado de expertos sobre o tema. Trata-se de buscar nela elementos filosóficos que auxiliem e iluminem a reflexão crítica sobre a nossa realidade, desconstruindo os modos de subjetivação que nos determinam. Com essa intenção e continuando a perspectiva da filosofia como forma de vida, é que Michel Foucault , nos últimos anos da sua vida acadêmica, faz uma releitura da filosofia antiga, focando suas pesquisas no cuidado de si (epimeleiaheautou) com respeito às práticas, técnicas e procedimentos com os quais o sujeito se constitui a si mesmo. Desde essa perspectiva, ele não apenas critica os modos modernos de subjetivação, mas busca repensar a própria política, entendida como biopolítica.

Seguindo essa reflexão sobre a forma de vida, podemos também trazer a contribuição de Giorgio Agamben , que dedicou algumas de suas obras à problematização da relação entre regra de vida e forma-de-vida, em que esta última dá origem à primeira, não o contrário.

IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre os “exercícios espirituais” de Inácio de Loyola e os “exercícios espirituais” da Filosofia Antiga de Pierre Hadot?
Carolina Molina – A noção de exercícios espirituais é nuclear para o pensamento de Hadot. Podemos dizer que se constitui como o fio condutor de sua obra. Por isso é necessário atender bem à definição dessa noção, explicitada pelo próprio Hadot na obra A filosofia como maneira de viver . Nela, Hadot diz que define exercícios espirituais como uma “prática voluntária, pessoal, destinada a operar uma transformação do indivíduo, uma transformação de si”. No seu livro Exercícios espirituais e filosofia antiga , ele detalha o conceito de exercício: “diz-se de uma prática, uma atividade, um trabalho consigo mesmo. É uma ascese de si, entendida não no sentido moderno de ascetismo, abstinência ou restrição, mas na sua etimologia grega, áskesis, como exercício, esforço para renunciar aos prazeres sensíveis tendo em vista o aperfeiçoamento moral ou espiritual, ou ainda a realização de uma obra que exija o domínio da vontade”. Por outra parte explicita o sentido de espiritual: “diz-se da totalidade psíquica do indivíduo: imaginação, entendimento, sensibilidade, vontade”. Compromete a totalidade do espírito. Poderia também ser chamado de existencial, pois afeta a maneira de viver, de compreender o mundo, exigindo uma transformação do eu.

A noção de exercícios espirituais não surge como a primeira alternativa que Hadot decide empregar. Ele resistiu e tentou outras alternativas como: exercícios morais, exercícios éticos, exercícios intelectuais psíquicos, exercícios da alma, entre outras, mas essas expressões não expressavam o que de fato ele percebia nas escolas filosóficas. Essas denominações eram restritivas a alguns aspectos, moral, ético ou intelectual, enquanto os exercícios espirituais das escolas filosóficas certamente implicavam não só uma dimensão intelectual (definição, divisão, raciocínio, leitura pesquisa, amplificação retórica), mas também uma dimensão ética, pois contribuíam fortemente na terapêutica das paixões e estavam relacionados às condutas. Neles também intervêm de forma considerável a imaginação, a sensibilidade, o corpo, isto é, eles se referem à totalidade do ser.

É claro que, num primeiro momento, ela pode fazer lembrar as práticas espirituais do cristianismo, particularmente as propostas de Inácio de Loyola, mas, segundo o próprio Hadot, estas práticas são apenas uma versão cristã das práticas greco-romanas. De fato, apenas no século II, quando o cristianismo se apresenta como filosofia, assumindo como base a filosofia grega, é que se pode falar da existência de exercícios espirituais religiosos e não religiosos.

IHU On-Line – De que forma podemos compreender a perspectiva espiritual na Filosofia Antiga? E como essa perspectiva aparece na Filosofia moderna e na contemporânea?
Carolina Molina – Como indicado anteriormente, a dimensão espiritual na antiguidade refere-se à totalidade da dimensão psíquica do indivíduo, do espírito. Talvez seja esclarecedor considerar que, para os antigos, o homem se encontra numa tensão agonística constante. Ele vive numa angústia existencial por viver rodeado pelo mal e essa angústia provém, de modo geral, dos juízos de valores que ele atribui às coisas. Frente a essa tensão agonística, a filosofia se torna terapia das paixões, um método de progresso espiritual que exige uma conversão, uma transformação do indivíduo na sua maneira de viver, na sua existência.

Além dos dois autores contemporâneos anteriormente citados – Foucault e Agamben – que compreendem a filosofia como forma de vida, o próprio Hadot cita outros na sua obra O que é a filosofia Antiga , dizendo que seria necessária uma grande obra para descrever a recepção da visão filosófica antiga. Contudo ele se contenta em indicar alguns nomes, como Montaigne , Descartes , Kant , Rousseau , Schopenhauer , Emerson , Thoreau , Kierkegaard , Marx , Nietzsche , W. James , Bergson , Wittgenstein , Merleau-Ponty . Todos eles, e outros, compreenderam a dimensão prática da filosofia como uma maneira de transformar a vida e perceber o mundo.

IHU On-Line – Que nexos podemos estabelecer entre a filosofia como modo de vida de Hadot com o conceito de cuidado de si, de Foucault?
Carolina Molina – No cerne da representação da filosofia como modo de vida, encontra-se uma distinção muito importante entre a vida filosófica e o discurso filosófico. Isto é, existe uma diferença, mas também uma estreita união e implicância, entre o que seria a vida filosófica e o discurso filosófico. Para os antigos, existe como parte do discurso uma teoria da lógica, da física e da ética, mas, por outro lado, existe a própria filosofia, isto é, um ato filosófico único de viver a lógica, a física e a ética. Trata-se não apenas de uma teoria lógica do pensar e falar bem, mas sobretudo de viver pensando e falando bem; não apenas da teoria física, mas viver contemplando o cosmos; não só a teoria ética da ação moral, mas também o agir e viver de maneira reta e justa. Considerando essa distinção e união entre discurso e prática filosófica, compreendemos por que Hadot é enfático em assinalar que a filosofia contemporânea compreendeu, enfatizou e reduziu a filosofia ao campo meramente especulativo do conhecimento de si (gnothiseautou), esquecendo o significado, a relação e a predominância que, na antiguidade, comportava a vida filosófica, isto é, a dimensão do cuidado de si (epimeleiaheautou).

Seguindo esse resgate da dimensão prática existencial, ou seja, da filosofia como forma-de-vida, é sabido que Michel Foucault, nos últimos anos de sua vida acadêmica, direciona a sua pesquisa para a filosofia antiga, especificamente para a ética do cuidado de si (epimeleiaheautou). Foucault aborda a história da subjetividade através das práticas, técnicas de transformação do “si mesmo”, levantando uma crítica aos modos de subjetivação contemporâneos, interessando-se por abordar a partir dessa perspectiva a questão social e política, como por exemplo, o tema da governamentalidade, que implica o governo de si mesmo e dos outros.

Talvez seja interessante assinalar que, como o próprio Hadot diz, o diálogo inicial que se estava desenvolvendo entre ambos foi interrompido pela prematura morte de Foucault. No livro Exercícios espirituais e filosofia antiga, Hadot dedica um texto intitulado “Um diálogo interrompido com Michel Foucault. Convergências e divergências”. Tendo presente esse texto, seria possível dizer que as principais críticas de Hadot a Foucault dizem respeito à interpretação que ele faz dos exercícios espirituais (técnicas de si para Foucault) e da própria filosofia antiga como uma estética da existência. Hadot não está de acordo com essa compreensão.

IHU On-Line – A partir das experiências do mundo de hoje, atravessado pela tecnologia, financeirização, disputa e polarizações, como podemos compreender o conceito de “cuidado de si”?
Carolina Molina – As escolas filosóficas da antiguidade definiam-se por um modo de vida particular, uma visão de mundo, uma opção existencial. O conceito de cuidado de si, utilizado por Foucault, remete à dimensão ética que comportava a filosofia antiga (epimeleiaheautou). Essa dimensão ética de criar formas de vida está estreitamente ligada à dimensão social e política, que Foucault traz no governo de si e dos outros.

Nesse sentido, podemos dizer que o resgate dessa dimensão e responsabilidade prático-existencial da filosofia é pertinente, considerando o contexto político contemporâneo regido por uma economia política que através de diversas técnicas quase imperceptíveis administra, gerencia e controla a vida dos indivíduos e da população. Foucault denominou essa forma de governamentalidade da vida de biopolítica.Tendo presente esse contexto de governo e captura biopolítica da vida dos sujeitos, a ferramenta hermenêutica do cuidado de si, proposto por Foucault, é interessante para pensar a filosofia como um espaço em que se debate e se reflete criticamente, para pensar e criar novos conceitos, categorias, tornando possível diferentes modos de vida e de subjetivação como resistência aos modelos de subjetivação impostos pelo paradigma tecnológico caracterizado pelo controle, dominação e aniquilação da autonomia do outro.■

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