Edição 210 | 05 Março 2007

“O homem e a mulher vêm se transformando ao longo do tempo e manifestam-se diferentemente conforme o contexto em que vivem”

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IHU Online

“O que as pesquisas sobre as relações de gênero têm demonstrado é que, especialmente na contemporaneidade, não se pode mais tratar de uma masculinidade, de uma feminilidade ou de um homoerotismo únicos e padronizados”, explica o professor doutor Georges Daniel Janja Bloc Boris em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.


Boris é professor do Curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza desde 1985; mestre em educação (1992) e doutor em sociologia (2000) pela Universidade Federal do Ceará. Traduziu Ego, Fome e Agressão: Uma Revisão da Teoria e do Método de Freud, obra primeira de Frederick Perls, publicada em português em 2002 pela Summus Editorial. É psicoterapeuta fenomenológico-existencial, supervisor de estágios em psicologia clínica e formador de psicoterapeutas em Gestalt-Terapia.
Na entrevista que segue, segundo professor, “o homem e a mulher vêm se transformando ao longo do tempo e manifestam-se diferentemente conforme o contexto em que vivem”.

IHU On-Line - Quais são as configurações do masculino e feminino na contemporaneidade?
Georges Boris
- O que as pesquisas sobre as relações de gênero têm demonstrado é que, especialmente na contemporaneidade, não se pode mais tratar de uma masculinidade, de uma feminilidade ou de um homoerotismo únicos e padronizados. A concepção de gênero - mais ampla do que a de sexo (mais centrada nos aspectos anatômico, fisiológico e funcional) – refere-se, para a maioria dos pesquisadores da área, a uma "construção", ou seja, não basta que eu tenha um pênis, pêlos e outros constituintes da masculinidade, mas o gênero é, principalmente, uma representação "construída", portanto, é simbólica, relacional, histórica e sociocultural. O que se percebe é que o homem e a mulher vêm se transformando ao longo do tempo e manifestam-se diferentemente conforme o contexto em que vivem. Além disso, por ser relacional, a subjetividade do homem e da mulher sofre interferências na medida em que o outro pólo também se modifica. Assim, hoje, o que percebemos é que há uma multiplicidade de manifestações subjetivas dos modos de ser homem, mulher, "gay" etc.

IHU On-Line - O masculino está em crise? O que seria o "Mal-Estar Masculino na Contemporaneidade"?
Georges Boris
- O patriarcado é uma instituição sociocultural milenar e padronizou modos de ser, de se comportar, de se vestir etc. O padrão patriarcal de homem e de mulher era claro e rigidamente definido. Entretanto, apesar de sua clareza, gerava sofrimento. Especialmente as mulheres sofreram - e ainda sofrem bastante - por conta deste padrão sociocultural, que impunha que o homem fosse necessariamente forte, dominador, violento, provedor da mulher e dos filhos, e, portanto, voltado para o mundo público; por sua vez, a mulher era considerada frágil, dominada, passiva, necessitando da proteção e do controle masculino. É inegável a dominação masculina sobre as mulheres, mas um problema pouco discutido é que, embora usufruam da dominação masculina milenar, os homens também estão submetidos a um padrão patriarcal masculino inatingível. Os homens morrem com mais freqüência e mais cedo do que as mulheres em praticamente todos os países do Ocidente. Em outras palavras: muitos homens também rejeitam esta padronização, que impõe papéis rígidos e impede-os de viver e de usufruir de sua humanidade, o que gera um considerável e apenas recentemente reconhecido mal-estar e uma inegável crise da subjetividade masculina.

Homem na atualidade

Com o crescente abalo do patriarcado nas últimas décadas e com as conquistas e os avanços das mulheres em vários campos, os homens estão confusos. Embora ainda haja considerável resistência, muitos homens já não adotam nem se sentem à vontade com o modelo patriarcal de homem e de relação com a mulher, mas ainda não encontraram uma forma tranqüila de lidar consigo mesmos e com as conquistas do gênero feminino.

IHU On-Line - Quais as conseqüências sociais de uma mulher autônoma, independente do homem?
Georges Boris
- Por conta da dominação que sofreram e, em grande parte, ainda sofrem, as mulheres tiveram que lutar por seus direitos, por sua autonomia e por sua independência. São inegáveis as conquistas femininas, particularmente a partir da segunda metade do século XX. Estas conquistas também geram impasses com os homens por conta do avanço feminino no mercado de trabalho, por exemplo. Contudo, um dado que chamou a atenção em minhas pesquisas: a maioria dos homens sente-se à vontade e não percebe problema ao ser comandado por mulheres no trabalho. O que parece incomodar mais é a atitude autoritária do modelo patriarcal de comando - também presente no mercado de trabalho - que, muitas vezes, é adotada pelos chefes, mesmo algumas mulheres, com os que a eles ou a elas estão subordinados.

Evolução do movimento feminista

O movimento feminista teve, e tem, um papel histórico muito importante nas conquistas das mulheres. Seu papel foi aglutinar a insatisfação feminina com as imposições do patriarcado e organizar as lutas das mulheres contra a dominação masculina. Uma de suas conseqüências é a idéia bastante comum - tanto entre homens quanto entre as mulheres - que associa a mulher à vida, à sensibilidade e à subjetividade, enquanto o homem é, freqüentemente, associado à morte, à insensibilidade e à objetividade, perspectiva politicamente necessária à luta feminista contra um poder concentrado nas mãos dos homens. Entretanto, tal posição é dicotômica, mecanicista e mesmo maniqueísta, pois concebe as mulheres como seres essencialmente benevolentes, mas sem poder, vítimas dos naturalmente truculentos "machos", que as maltratam, ou como "guerreiras", também em luta contra a opressão masculina. Um dado contraditório pouco discutido pelas militantes feministas é a existência de um poder feminino, mais sutil e sábio do que o poder patriarcal: as mulheres, tradicionalmente, detêm o acesso e assumem o cuidado prioritário do lar e dos filhos e, embora muitas se queixem da omissão freqüente dos homens, algumas impedem o acesso e a necessária aprendizagem dos filhos, dos maridos e dos pais a este universo sociocultural ainda em mãos femininas. Este é um poder feminino que os homens ainda timidamente ocupam, em parte por uma resistência de muitas mulheres a compartilhar e a acreditar que os homens são capazes de também exercer o que denomino de "mínimo poder feminino", particularmente no espaço doméstico. O poder feminino é uma questão que compete ao movimento feminista encarar nos tempos atuais.

IHU On-Line - Quais os principais impactos para a autonomia da mulher, como ser social, dos avanços da ciência e da tecnologia?
Georges Boris
- As relações de gênero e, particularmente, a mulher, não estiveram isentas das transformações socioculturais ao longo do tempo. Da mesma forma, a ciência e a tecnologia avançaram bastante. Um dos principais impactos para a autonomia da mulher e dos casais, sem dúvida, foi o advento da pílula anticoncepcional, especialmente e, de modo crescente, a partir dos anos 1960. Outros impactos vêm sendo registrados, como a reprodução assistida, bem como a (re)produção "independente". Esta última comprova que a ciência e a tecnologia não são neutras, podendo ser mesmo um instrumento ideológico, pois pode libertar as pessoas ou as aprisionar mais ainda. Nos tempos atuais, as pessoas vêm sendo induzidas a adquirir objetos descartáveis, a investir em sua saúde de modo intensivo e mesmo a modelar seus corpos a partir da imposição de um interesse capitalista globalizado e para além de sua real necessidade.

IHU On-Line - O senhor tem pesquisas sobre homens e mulheres das classes populares de Fortaleza. Pode falar um pouco sobre esses estudos? Existe relação com o resto do Brasil?
Georges Boris
- Minha pesquisa inicial se centrou na construção e na crise da subjetividade masculina entre homens da classe média; atualmente, desenvolvo uma pesquisa sobre o mesmo tema com homens das classes populares; e, em breve, devo iniciar nova pesquisa sobre o poder feminino, investigando o reconhecimento do poder da mulher entre casais de Fortaleza. É cedo para poder generalizar tantos dados - até mesmo pelos motivos que expus, anteriormente, acerca do caráter das relações de gênero - mas posso adiantar algumas observações preliminares, pelo menos sobre a construção da subjetividade masculina em Fortaleza, uma cidade de cerca de 2,5 milhões de habitantes, que concentra tanto a miséria quanto os avanços tecnológicos característicos da sociedade e da cultura brasileira. Fortaleza expressa muito da realidade das relações de gênero no Brasil. Resumidamente, posso apontar o seguinte:

- poucos homens parecem de fato conformados ou adaptados ao antigo modelo de homem patriarcal, enquanto alguns ainda tentam disfarçar sua dificuldade de aceitação das novas relações sociais de gênero que vêm se desenvolvendo mais recentemente, mas terminando por reagir a elas, quando se deparam com situações inusitadas e surpreendentes em seu próprio cotidiano;

- muitos homens parecem ter a percepção de que seus comportamentos são dotados de uma pretensa e inquestionável objetividade masculina. Tal objetividade é, em grande parte, uma falácia que os homens preferem crer na tentativa vã de não serem questionados em suas posições e decisões, adotando atitudes pragmáticas e racionalizadas que evitam, na verdade, seu envolvimento emocional com as questões e os problemas que, de fato, vivenciam. Percebi também entre meus entrevistados, algumas das características da construção sociocultural da subjetividade masculina na contemporaneidade:

- um clima de trabalho profissional freqüentemente desqualificador da expressão da individualidade, da singularidade e da subjetividade dos homens;

- uma angustiante ausência paterna em seu cotidiano familiar. Podemos perceber, então, que a ausência paterna - comum na experiência de muitos filhos - costuma provocar a busca de explicações, de justificativas e de racionalizações (geralmente tardias) que têm seu principal fundamento freqüentemente nas pressões socioculturais que prioritariamente incidem sobre os homens;

- uma inclusão social através de atitudes autoritárias, competitivas, violentas ou defensivas, o que resulta comumente em resistência, evitação ou dificuldade de manifestação calorosa em situações afetivas: um homem deve estar sempre alerta, não confiar em ninguém - a não ser em si mesmo e em suas capacidades - e vencer sempre por seus próprios méritos. Esta "fabricação de machos heróis", apesar de gerar homens aparentemente fortes, inabaláveis e vencedores, escamoteia as reais necessidades psicossociais e humanas que todos têm direito a experienciar e a expressar;

- entretanto, não creio que a crise da masculinidade signifique, simplesmente, que os homens venham se sentindo "menos homens", parecendo muito mais que vivenciam as transformações inquietantes de um momento histórico cujas transições socioculturais têm levado - homens e mulheres - a buscar alternativas mais autênticas e justas de viver e de conviver com sua diversidade subjetiva;

- acredito também que a lentidão dos homens na conquista de uma tranqüila e humanizada reconciliação consigo mesmos, com as mulheres, com outros homens, com a função paterna e com seu trabalho profissional, se deve ao fato de que as mulheres, há muito mais tempo, tentam integrar com prazer estes diversos papéis socioculturais. Creio que, neste momento histórico de transição da subjetividade masculina para formas e manifestações mais flexíveis, as mulheres precisarão de boa dose de paciência e de tolerância com as vacilações e inseguranças de muitos homens confusos e ainda em dúvida quanto ao encantamento do ilusório poder viril patriarcal. 

- se ouso fazer alguma conjetura acerca do possível destino da subjetividade masculina nos tempos vindouros, creio ser seguro afirmar que os homens já não são os mesmos e que ser homem vem se transformando ao longo do tempo. Assim, acredito também que o caráter violento do "macho" humano sofre as mudanças que a sociedade e a cultura vêm absorvendo, pois nenhuma violência - mesmo simbólica - se mantém de forma duradoura e eficaz se as regras que ela sanciona instituem relações arbitrárias que favoreçam sistematicamente uma parte em prejuízo da outra. Se pudermos entender que o homem violento dos tempos atuais é, em parte, uma tentativa desesperada de reassumir um suposto poder sociocultural masculino, esta tentativa parecerá vã na medida em que busca se impor por meio de atitudes destrutivas dos elos que unem os indivíduos, podendo inibir a manifestação da diversidade dos seres humanos. Não me parece muito seguro que os homens se tornem integrados e que desenvolvam em breve sua própria condição subjetiva de gênero de forma consistente e reconhecida por si mesmos, pelo menos não tão rapidamente quanto seria desejável, pois tudo depende de uma transformação das relações sociais, da sociedade e da cultura mediante vivências mais democráticas, justas e harmoniosas, que ainda estamos longe de concretizar. Acredito que, apenas de forma democratizante, homens e mulheres se uniriam com a meta de evitar a alienação dos papéis socioculturais masculinos e femininos conforme a configuração atual, criando uma nova sociabilidade, sabedores de que pouco adianta inverter ou mesmo igualar os papéis sexuais, sociais, familiares e profissionais de acordo com os interesses do Estado e do lucro, sem levar em conta os reais interesses das pessoas. Para finalizar, relembro que, para que este ideal possa vir a acontecer, faz-se necessário o enfrentamento de alguns temas incômodos nos modelos de homem e de poder patriarcais ainda vigentes:

- muitos homens ainda necessitam constantemente demonstrar capacidade e força;

- a expressão de sentimentos pelos homens continua limitada;

- muitos permanecem dirigindo suas vidas para áreas competitivas;

- inúmeros deles ainda mantêm a função de provedores da família;

- suas ocupações ainda se voltam com freqüência apenas para "questões sérias", como o trabalho, a política e a economia;

- em conseqüência, o contato sensível com a natureza, com os amigos, com as mulheres e com os filhos tende a se perder;

- finalmente, permanece sobre os homens a proibição de não saber, de não poder, de não se equivocar e de não fracassar. Acredito que, enquanto persistirem perspectivas sexistas unilaterais que subdividam as atividades humanas e as relações sociais de gênero em atividades masculinas ou femininas, a construção da subjetividade masculina permanecerá confusa, e a eventual reação violenta dos homens diante das mudanças pessoais e socioculturais continuará sendo um inquietante elemento de desestruturação social.  

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