Edição 514 | 30 Outubro 2017

O luteranismo e a moderna religiosidade secular

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

João Vitor Santos | Tradução: Henrique Denis Lucas

Teófanes Egido López analisa as mudanças que a Reforma imprime ao cristianismo

O professor espanhol Teófanes Egido López é direto ao definir Martinho Lutero: “como pensador, não há dúvida: foi um reformador da teologia comprometida com o que poderíamos chamar de modernidade”. Ou seja, para ele, o monge agostiniano trazia uma visão de mundo arraigada no medievalismo, mas vai questionando certas perspectivas e se afasta do pensamento típico do medievo. Entretanto, ressalta López, é preciso compreender que Lutero é um homem no seu tempo, o que o faz ora medieval, ora moderno. “Não se pode esquecer que, social e politicamente, Lutero tinha mentalidade e convicções feudais, ‘de ordem’”, exemplifica, ao explicar a relação com os conflitos camponeses.

López analisa, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, que esses flertes que Lutero tem com a Modernidade imprimem mudanças na forma de ser cristão. Valorizando a tradução da Bíblia para o alemão falado nas ruas, que o professor considera como grande feito que quebra o monopólio trentino sobre as escrituras, compreende que é preciso ir além para refletir sobre essa forma de religiosidade que emerge. “O luteranismo oferecia uma religiosidade secular, não-clerical, mais simples, sem hierarquias”, completa. Ou seja, ele não se volta apenas para os textos canônicos, mas os aproxima das pessoas, retira o poder da igreja monacal, com menos clérigos e mais pastores. “Também mudavam os sistemas sacramentais, as formas de piedade, as devoções, o olhar aos santos que já não podiam mais ser intercessores, mediadores, nem vistos e venerados. A Virgem Maria tampouco poderia ser uma concorrente de seu Filho”, completa.

Teófanes Egido López é licenciado em Filosofia e Letras pela Universidade de Valladolid, na Espanha, onde ocupa a cátedra de História Moderna. Especialista no século XVIII, também trabalha com temas como a opinião pública e oposição ao poder, Lutero e Reformas Protestantes, Santa Teresa e São João da Cruz e Igreja – Estado. Entre suas publicações, destacamos Las reformas protestantes (Madri, Espanha: Editorial Síntesis, 1992), Martín Lutero: Una mirada desde la historia, un paseo por sus escritos (Salamanca, Espanha: Ediciones Sígueme, 2017) e Tolerancia en la Historia (Valladolid, Espanha: Universidad de Valladolid, 2004).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como podemos compreender a mística de Martinho Lutero? E que aproximações podemos fazer entre sua experiência com a de outros místicos, como João da Cruz , Teresa de Ávila e o próprio Inácio de Loyola ?
Teófanes Egido López – Já foi dito, escrito, e ainda se diz e se escreve, que Lutero não foi um místico. A afirmação se deve, certamente, ao que que se entende por mística que é, antes de tudo, a experiência pessoal, íntima, de Deus; algo que, à primeira vista, pode destoar do caminho de Lutero para chegar à fé, para vivê-la, que é a “Sola Scriptura”.

Os quatro, Lutero, Inácio de Loyola, Teresa de Jesus, João da Cruz, foram místicos através da experiência, com a vivência de Deus. Mas, cada um com a sua personalidade, com seu estilo, com sua linguagem na hora de manifestar e de comunicar esta experiência. Porque não convém esquecer que a mística não é somente a experiência de Deus. É também beleza na linguagem que a comunica com alegria. E beleza é o que há nas canções de São João da Cruz, nas Moradas de Santa Teresa, em tantos escritos e sermões de Lutero, e, à sua maneira, também, na peculiar expressão inaciana do caminho até Deus.

Fico com a tese de Pannenberg , que gosto de repetir: sua fé (a de Lutero) em Cristo torna-se experiência mística; a sua é uma realidade de fé “como ato estático de união com Cristo”, e a contemplação e riqueza do dom da justificação inspiram-lhe as palavras para expressar o feliz intercâmbio, o intercâmbio desigual, entre o esposo e a alma, da mística nupcial, a de Teresa de Jesus e de João da Cruz.

A respeito disso, não posso reprimir meu desejo de recordar uma passagem do livro certamente mais lindo que escreveu, A Liberdade de um Cristão , no qual canta este matrimônio: “veja que troca e que duelo tão maravilhosos: Cristo é Deus e homem; por conta do anel nupcial, isto é, pela fé, aceita como seus os pecados da alma crente e atua como se ele mesmo fosse quem os houvesse cometido. Pelos sinais, ou seja, pela fé, libera-se a alma de todos os seus pecados e recebe o dote da justiça eterna de seu esposo, Cristo. Não é estupendo este enxoval pelo qual o rico, nobre e tão bom esposo Cristo aceita no matrimônio a esta pobre, depreciável, ímpia prostituta, despojando-a de toda sua malícia e enfeitando-a com toda a classe de bens? Não é possível que os pecados a condenem, posto que Cristo os carregou e os devorou”. Conta, portanto, com a justiça, tão rica, de seu esposo, que muito bem pode enfrentar todos os pecados. Desta realidade, São Paulo fala: “Graças sejam dadas a Deus que nos concedeu a vitória por Jesus Cristo; nela a morte e o pecado foram devorados”.

Oração

Tampouco me privo de apontar coincidências na maneira de orar. Lutero escreve, por volta de 1530, um pequeno tratado para seu amigo barbeiro (e também cirurgião), Pedro. Baseia-se no Pai Nosso. Pois bem, Santa Teresa, também comentadora da oração dominical, comenta o Pai Nosso com ternura. E como defende a oração vocal do Senhor, tem momentos de entusiasmo, exatamente por esta se tornar a oração vocal na contemplação. O que diz Lutero ao amigo ao comunicar-lhe sua experiência de oração: “o que me acontece com frequência é que uma frase ou petição me suscitam tantas meditações, que prescindo de todas as demais. E quando fluem estes pensamentos abundantes e bons, é preciso deixar de lado as petições restantes, deter-se naqueles, escutá-los em silêncio, não lhes pôr obstáculos por nada do mundo, porque então, quando se prega o Espírito Santo, uma palavra de sua pregação é muito mais valiosa que mil de nossas orações”.

Não sigo, porque quase nunca acabariam estas aproximações (o que não quer dizer influências, nem dependências) entre os místicos autênticos.

IHU On-Line – Costuma-se inscrever a experiência de Inácio de Loyola como um dos movimentos da contrarreforma e combate ao luteranismo. Mas como podemos avançar na reflexão e analisar a experiência do fundador da Companhia de Jesus em perspectiva ao luteranismo?
Teófanes Egido López – Dá a sensação de que, ao contemplar aqueles tempos e ao pensar naquelas pessoas que incentivaram a vida da Igreja (que se identificavam com a sociedade) desde suas respectivas ilusões, há de se partir do confronto. Houve, certamente, um confronto, mas a explicação de tantos entusiasmos e propostas é preciso buscá-la precisamente naquele ambiente sacralizado (pois não havia outro) e naquelas sensibilidades. Por isso, quando se enxerga a Lutero e a sua chamada Reforma (que foi mais do que isso), e se pensa em Inácio de Loyola e sua Companhia, primeiro como Contrarreformas, ao menos às vezes, está sendo incorrida em simplificações que são explicáveis, mas que não se correspondem com a realidade histórica. Ambas as experiências, ambos os projetos, submetidos às circunstâncias em sua evolução, germinaram e frutificaram, precisamente porque encontraram um solo bem preparado. Lucien Febvre , o historiador pioneiro das mentalidades, autor do precioso livro (além de rigorosamente histórico) lá pelos anos 30 do século XX, Martín Lutero, un destino , insistia em que para compreender aquelas iniciativas, e aqueles protagonistas, havia que compreender, antes de tudo, que o imenso apetite do divino viveria por todos.

Uma coisa foram os fundadores, os reformadores, e outra seus seguidores de depois, os dos tempos que começaram a ser chamados “confessionais” e contrarreformistas. Gosto de reproduzir o que Lutero dizia e podia ser colhido: “é preciso distinguir muito bem entre a doutrina e a vida. Nós vivemos mal, como mal vivem os papistas. Não lutamos contra os papistas por conta da vida, mas pela doutrina. Huss e Wycliffe não se deram conta disto, e apenas atacaram a conduta dos papistas. Pessoalmente não digo nada particular sobre sua forma de viver, mas sobre a doutrina. Meu modo de ação, meu combate, centra-se em saber se os oponentes transmitem a doutrina verdadeira. Os demais criticaram apenas a conduta, mas quando se ataca a doutrina é quando se agarra o ganso pelo pescoço… Tudo está radicado na palavra; nessa palavra que o papa nos roubou, falsificou e manchou para transmiti-la desfigurada para a Igreja”.

IHU On-Line – De que forma as tentativas de reforma da Igreja ao longo de toda a Baixa Idade Média influenciam Lutero? E por que somente a luterana leva à cisão e também a outras perspectivas acerca do cristianismo?
Teófanes Egido López – Pode haver dependências, similitudes e influências entre os projetos medievais de reforma e o de Lutero. As atitudes reformadoras (“as heresias” que diriam os combatentes em nome das “ortodoxias”) da Idade Média estavam presentes na mente de Lutero, não cabe dúvida. Conhecia e recordava Wicliffe. Na disputa sonora de Leipzig teve de reconhecer, encurralado pelo formidável dialético João Maier , que, ao menos em certo sentido, sua postura era parecida com a de Huss (com tudo o que a menção de Huss agitava naquela universidade de Leipzig, alentada pelos fluidos da perseguição bohema, hussista). Ali, e então, em 1519, já ficou muito clara a ruptura com Roma, com as normas conciliares, com a cúria e com o quanto representava.

Mas mediava um abismo entre Lutero e os protestos hussita e wiclefita por circunstâncias geográficas, pela história pessoal, e inclusive do inglês e do bohemo e, em maior medida, por motivos políticos. Ao contrário do que acontecia com Lutero, não contaram com o respaldo incondicional dos poderes seculares. Inclusive, sucedeu o contrário. Na verdade, e ainda que sempre tenha havido retornos, Wycliffe tornou-se nada mais do que recordação na Inglaterra, e Huss reviveria, mas por motivos minoritários nacionalistas.

IHU On-Line – Como podemos compreender a mística da cruz vazia dos luteranos? Qual é a razão de ser dessa ruptura com a tradição católica?
Teófanes Egido López – Já desde o começo de seu protesto, todavia “ortodoxo”, isto é, nas simbólicas e centenárias teses “contra” as indulgências que celebramos nos últimos dias, o frei Martinho Lutero formulava o princípio, ou, melhor dito, o motivo de sua teologia, de sua espiritualidade, de sua piedade: não são as indulgências, aquelas cartas que são pregadas por aí com tanto aparato e com tantos abusos, mas o arrependimento, a cruz, os que conferem perdão, a salvação. Dizia: “todo cristão verdadeiramente arrependido tem a devida remissão plenária da pena e da culpa, ainda sem a aquisição das cartas de indulgência ” (tese 36). Por isto, “bem-vindos todos os profetas que pregam ao povo de Cristo “cruz, cruz” posto que já não é tal cruz!” (tese 93).

Pouco depois, no capítulo provincial dos agostinhos, em Heidelberg, formulava de novo, e de forma mais sistemática, sua convicção: “o teólogo da glória chama ao mal, bem, e ao bem, mal; o teólogo da cruz chama as coisas como são em realidade”. De fato, sua teologia da cruz é a alegria de sua teologia, de sua espiritualidade, de sua fé, e um dos capítulos clássicos, dos mais clássicos, entre seus tratadistas.

IHU On-Line – Lutero foi um reformador medieval ou um alguém que inaugura o pensamento moderno?
Teófanes Egido López – Como pensador, não há dúvida: foi um reformador da teologia comprometida com o que poderíamos chamar de modernidade. Porque, isso sim: o frei Martinho Lutero (ou Ludher, já que usou vários nomes até que assumiu o nome de humanista da luz, Lutero) foi, antes de ser da Igreja, reformador da teologia. E como reformador da teologia ele enfrentou com vigor a escolástica, que bebia em Aristóteles e era expressa com Escoto , com Ockham , com o nominalismo (que em partes prestou-lhe bons serviços), com o silogismo.

E se não o inaugurou, não se pode negar que se apoiou no pensamento moderno que ele contribuiu para fortalecer a partir de sua influência. Tudo na dimensão religiosa é claro. E o modernismo era o retorno às fontes da fé e da espiritualidade, ou seja, a Escritura. Lutero, além disso, estava bebendo em São Paulo , interpretado e vivido com a mentalidade agostiniana, pois ele sempre foi muito agostiniano, com certo maniqueísmo antipelagiano no fundo. Coincidia com o humanismo em alguns aspectos, como na crítica a tantas formas de religiosidade não isentas de superstição de acordo com o que diziam seus críticos, ou em sua reivindicação da Bíblia não apenas para as elites culturais, mas também para o povo crente e fiel.

Por seu agostinismo cordial, por seu conceito de Deus, ele não foi capaz, no entanto, de conectar-se com a liberdade moderna, personificada por Erasmo . E esta liberdade impossível esteve na raiz da ruptura clamorosa (e de certa forma, trágica) de 1525, na batalha por arbítrio entre as pessoas livres e os escravos. O que, na verdade, era o cerne de tudo, como Lutero confessava em sua resposta ao reconhecer que havia sido o único a atacar a essência do luteranismo: "nisto eu te elogio e te propago com veemência, pois eras o único que, entre tantos, atacaram a essência desta causa, e não me importunaste com questões alheias ao debate acerca do papado, o purgatório, as indulgências e outras bobagens nas quais quase todos queriam caçar até agora em vão. Fostes o único que chegou ao cerne do problema, que pegou o touro pelos chifres, e por isso estou sinceramente te agradecendo".

Pode haver muita retórica nessas concessões. Tudo isto manifesta o abismo entre Erasmo, salvador da liberdade humana e a presença da graça, com a postura, radical como em tudo, de Lutero, que sintetizada no parágrafo ardente de seu livro De servo arbítrio: "a vontade humana, colocada entre Deus e Satanás, assemelha-se a um jumento. Quando é Deus quem está montando, Deus vai lá onde quiser ir, conforme o Salmo 73, 22, Ante ti sou como uma besta, mas sempre estarei contigo. Quando é Satanás quem cavalga, vai onde quiser ir. Não depende de seu arbítrio escolher um ou outro dos dois cavaleiros; são os cavaleiros os que disputam para obtê-lo e possuí-lo".

IHU On-Line – Que cristianismo emerge a partir de Lutero?
Teófanes Egido López – Não é fácil responder em poucas palavras a uma pergunta tão sensata por referir-se ao que às vezes não se acentua ao pensar em Lutero e que, no entanto, foi o mais transcendente, e inclusive visível, de seu empenho. Propriamente, foi a grande diferença entre o cristianismo medieval e o moderno, a passagem da Cristandade para as Igrejas, para as confissões. Da unidade à variedade (ou divisão?).

O cristianismo "luterano" seria, antes de tudo, bíblico, profundamente bíblico, evangélico. Seria caricaturesca a mera tentativa de esclarecer o que a Bíblia significou para Lutero e o que ele significou para leitura da Bíblia. Não é que não se recorresse a ela antes dele (como deixava transparecer às vezes) posto que até mesmo as "Bíblias para os pobres" (em imagens) estavam em todos os lugares. Existiam várias traduções, incluindo aquelas feitas por judeus na Espanha. Mas eram traduções da vulgata e, portanto, refere-se a espaços de Lutero, eram traduções para o alemão dialetal, regional. Por isto, é preciso valorizar, e nunca será o suficiente de maneira justa, o presente da Bíblia de Lutero em alemão, mas em alemão moderno, não apenas o que era escrito em chancelarias, mas também o falado. Não se pode esquecer o que dizia, orgulhoso daquela obra feita em equipe (o que lhe convinha para, de passada, atacar os papistas): "não se pode demandar dessas letras latinas de que forma se fala o alemão, que é o que esses idiotas (papistas) fazem; quem precisa fazê-lo é a mãe que está em casa, as crianças nas ruas, o homem comum no mercado, que deduzem sua forma de falar observando sua boca. Depois disso feito é quando se pode traduzir: será a única maneira de que eles percebam que estão falando com eles em alemão".

Realmente, o panorama do cristianismo estabeleceu-se em Trento , com o monopólio da Bíblia em sua versão vulgata ou com o imposto sobre a monarquia espanhola com as proibições inquisitoriais e os medos com a Sagrada Escritura, contrastando com o espetáculo do luteranismo com a sua Bíblia, com sua liturgia, seus salmos, com suas canções. O luteranismo, além disso, oferecia uma religiosidade secular, não-clerical, mais simples, sem hierarquias (para a primeira Reforma, a de Lutero, porque na segunda, a confessional, as hierarquias e a escolástica reapareceriam em certo modo). Mas é preciso valorizar a mudança radical, inclusive no aspecto urbano das cidades sem clero especial (todos eram sacerdotes graças a Cristo), com pastores, sem frades nem freiras posto que os monastérios a partir da época inicial eram esvaziados nos espaços germânicos, e fora da Alemanha, onde o Evangelho se impunha.

Outras mudanças no ser cristão

Também mudavam os sistemas sacramentais, as formas de piedade, as devoções, o olhar aos santos que já não podiam mais ser intercessores, mediadores, nem vistos e venerados, em procissões. A Virgem Maria, cantada por Lutero no comentário sobre o Magnificat e em sermões até praticamente à véspera de sua morte, tampouco poderia ser uma concorrente de seu Filho, nem proposta como "Rainha do Céu", nem mediadora, mas como um modelo de humildade diante do olhar amoroso do Senhor. E, no entanto, na vida espiritual de Lutero abundam anjos e os demônios (há trabalhos que traçam simetrias e diferenças, é claro, entre os demônios de Lutero e, por exemplo, os de Santa Teresa).

Poderia seguir, talvez devesse seguir, com as alterações na religiosidade que afetaram, obviamente, as próprias mentalidades coletivas. Mas seria uma coisa que nunca acabaria. E em qualquer caso, não deve ser visto como motivo de divisão, mas como um sinal de variedade, de riqueza religiosa.

IHU On-Line – Quais as principais diferenças entre o cristianismo medieval e o moderno? E como essas diferenças impactam na relação com o poder?
Teófanes Egido López – Existe uma relação direta entre Reforma e poder político. Não posso fazer mais do que enunciá-la, posto que se trata de algo, como quase tudo, muito complexo e muito simples ao mesmo tempo. A modernidade, os tempos de Lutero, especificam-se por aquilo que tem sido chamado de o nascimento do Estado moderno. O oposto ao fragmentado medieval, feudal, e muito mais nos espaços do Império, na Alemanha que não existia como entidade política. Pois bem, as monarquias modernas eram assim porque, ao mesmo tempo que tinham o poder político, tinham o poder religioso, ou seja, o controle de suas igrejas "nacionais". Era o que estava acontecendo na França com o galicanismo , a monarquia espanhola com o regalismo , em Portugal, em Cleves (de forma que diziam que o rei, o príncipe, o duque, era o papa em seus domínios).

Mas o papa tinha suas atribuições, ainda que só tenham sido (por mais que não tenham sido só elas) as espirituais. Neste caso, onde a Reforma se implantava, como o papa não existia, nem a hierarquia eclesiástica era operativa, todo o poder das primeiras Igrejas (o regulador e o inquisidor) era transferido para os príncipes ou para as cidades. E não há dúvida: isso foi um incentivo para que os poderes civis e políticos estimulassem a implementação da reforma em seus domínios.

IHU On-Line – Como compreender a gênese da ética protestante a partir da figura de Lutero? Por que é considerada como uma das inspirações para o liberalismo?
Teófanes Egido López – Procuro responder a sua pergunta com simplificações forçadas. Penso, e não sou o único a fazê-lo, que a relação de Lutero, por causa de sua ética, com o liberalismo, com o capitalismo inclusive, não acaba de responder ao rigor histórico. Lutero estava cheio de contradições, e quem não estaria. O liberalismo é a liberdade, mas em relação ao pensamento, especialmente em relação aos absolutismos anteriores. Já vimos como que, para ele, era necessário libertar-se das imposições romanas, papistas, mas, no entanto, não havia liberdade ante a palavra de Deus, da qual havíamos de ser escravos.

Quanto ao outro elemento do liberalismo, o econômico, baseado no capitalismo, Max Weber é criticado por associar o nascimento das novas formas econômicas que levam ao capitalismo com o espírito protestante, bastante calvinista, com seu senso de poupança e outros. Mas é mais do que provado que nem Calvino , nem mesmo Teodoro de Beza , eram amigos de certas operações, do banco daquele tempo, isto é, do empréstimo com interesse. Bem pelo contrário. E quanto a Lutero, basta rever seus escritos sobre usura, comércio, para deduzir facilmente seu espírito anticapitalista.

E socialmente, não é preciso nem recordar as convicções feudais de Lutero, a defesa da ordem estabelecida, dos poderes (aqui não havia diferença confessional) quando se tratava de reprimir desordens como as dos cavaleiros (alguns que eram muito amigos seus) ou, menos ainda, dos camponeses liderados no final por Thomas Müntzer .

IHU On-Line – Qual o papel da escrita, e depois da imprensa, na elaboração, fixação e, mais tarde, na circulação do pensamento luterano?
Teófanes Egido López – A imprensa, ou seja, os livros, foi o instrumento mais eficaz e predileto da mensagem, das mensagens, de Lutero, de sua Reforma e de seu Evangelho. Ele teve a sorte de contar com um veículo tão poderoso de expansão e penetração, como foi o da imprensa, "arte divina", como chamavam os humanistas. Possivelmente na imprensa, no livro, seja importante descobrir a diferença substancial entre as "heresias" anteriores, como as medievais de Wicliffe e Huss, comunicadas pela palavra, pelo manuscrito, sempre limitados. A Reforma de Lutero, com suas características modernas e com as possibilidades da nova tecnologia a seu serviço, supera isso.

Não é estranho que o reformador relacionasse ladainhas de elogios à imprensa, o poderoso meio de comunicação de massa que ele conhecia tão bem e soube aproveitar em quase todas as suas possibilidades e em suas formas, a partir do livro volumoso até o panfleto e as folhas volantes. E isso a partir das 95 teses centenárias de 1517 até os últimos panfletos contra o papado, pouco antes de sua morte.

IHU On-Line – O que os escritos de Lutero revelam sobre o monge agostiniano?
Teófanes Egido López – O melhor lugar para descobrir algo sobre Lutero, os Luteros, está em seus escritos, desde os primeiros sobre a mística alemã até o passado, com suas fobias e tudo. Sua personalidade rica, atraente e mutável fica visível em diversas fases de sua produção. A escrita e os seus sermões falados. E no outro, as das cartas, tantas cartas quanto foram possíveis publicar a partir da clássica edição de Weimar e as que vão sendo descobertas. E não se esqueça: Conversas à mesa revela muito, muitíssimo, sobre sua personalidade, recolhidas por convidados, nas quais a cada momento se sobressai um Lutero mais espontâneo, e também mais próximo.

IHU On-Line – Como compreender a relação que teve com burgueses, príncipes e camponeses?
Teófanes Egido López – Realmente, a relação era muito diferente no que tange aos setores sociais dos quais se tratava. Algo que eu insinuei anteriormente. Não se pode esquecer que, social e politicamente, Lutero tinha mentalidade e convicções feudais, "de ordem", diríamos hoje, e de uma ordem que deveria ser mantida. Por isso é possível entender melhor suas reações diante daqueles que "atentavam" contra a autoridade legítima, isto é, contra os senhores, contra os príncipes ou contra o outro senhorio, os burgueses das cidades. Suas primeiras atitudes contra as desordens de Wittenberg que lhe fizeram abandonar seu "exílio" em Wartburg, ou suas posições adversas que atentavam contra os senhores, os escritos duríssimos contra os camponeses, as convocações contra qualquer germe da anabatismo ou de antitrinitarismo, que tudo estava misturado, respondem a suas convicções arraigadas, a sua mentalidade.■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição