Edição 210 | 05 Março 2007

Uma balançada na estrutura social

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IHU Online

“Não se pode negar que as mudanças no papel do feminino e, conseqüentemente, do masculino balançaram as estruturas sociais”, afirma Adriana de Souza, membro do Grupo de Pesquisa de Gênero e Religião Mandrágora/NETMAL, da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), em entrevista concedida por e-mail para a revista IHU On-Line.

Adriana possui graduação em Teologia pela UMESP e mestrado em Ciências da Religião pela mesma universidade, na área de concentração Ciências Sociais e Religião, com especificidade em Relações de Gênero e Religião. Tem experiência na área de ciências sociais, com ênfase em sociologia e antropologia, atuando principalmente no tema da sociologia da religião, gênero e religião, poder, gênero e instituições. Confira a íntegra da entrevista:

IHU On-Line - Ainda podemos dizer que a sociedade contemporânea se caracteriza pela dominação do masculino? Como se deu a construção e a evolução social da masculinidade e da feminilidade? O que mais mudou no homem e na mulher, comparando a modernidade com a contemporaneidade?
Adriana de Souza
- Depende de que sociedade se fala. Ainda assim acredito que não devemos usar absolutos. Mesmo em momentos obscuros da história, houve rupturas da ordem. Falemos de Brasil. Acredito que a sociedade brasileira ainda é muito machista – falo de homens e de mulheres – o que sem dúvida ainda sustenta a suposta superioridade nata masculina, assim se pode falar de uma “dominação masculina”. Não presenciamos, em nenhum outro tempo, uma feminização da sociedade como na atualidade, as mulheres cada vez mais conquistam novos espaços, então se ainda há uma masculinização da sociedade, ela tem sido truncada fortemente por uma feminização deste mesmo espaço social. De qualquer modo, é necessário haver aquela revolução simbólica da qual fala Bourdieu , é preciso haver mudança do habitus para que não apenas alcancemos ambientes antes circunscritos aos homens, mas para que a nossa mente capture a dimensão destas modificações e tenha sua concepção de mundo abalada. Um exemplo que pode ser mencionado é a chamada dupla (eu diria múltipla) jornada que enfrentam as mulheres. A análise mostra que, embora, participem ativamente do mercado de trabalho, acumulam funções e papéis sociais, porque existem aquelas tarefas tidas como “femininas” que devem ser, por conseguinte, desempenhadas pelas mulheres, como o trabalho doméstico, o cuidado com as crianças, entre outras. O mais chocante em tudo isso é que há anuência por parte das próprias mulheres que reproduzem sua suposta função social sem questionamentos. Portanto, não está havendo compasso entre as mudanças sociais e as transformações nos campos do símbolo, das representações sociais, do habitus. É urgente haver sintonia.

IHU On-Line - Como as idéias de Bourdieu contribuem para a compreensão do fenômeno da dominação masculina na sociedade?
Adriana de Souza
- Bourdieu coloca como centro de sua economia das trocas simbólicas a dominação masculina, afirmando que esta se expressa na nossa corporeidade, na nossa humanidade, naquilo que temos de concreto. Portanto, o nosso corpo é o palco das disputas pelo poder e vitima mulheres e homens, pois as construções de gênero, ao mesmo tempo que fazem da mulher um ser socialmente inferior, põem sobre o homem uma carga enorme de construções que abreviam o seu ser a normas severas. O corpo é, portanto, o lócus do exercício do poder por excelência. Desde que nascemos, nossos corpos sexuados definem qual será o nosso lugar nesta economia, se seremos dominados ou dominadores. É no corpo que o nosso capital cultural está inscrito. O corpo é a materialização da dominação. O seu conceito de habitus – uma rejeição ao objetivismo e à fenomenologia – consegue capturar a complexidade da realidade social.

IHU On-Line - Em que sentido a masculinidade influencia o campo religioso?
Adriana de Souza
- O que mais me fascina no campo religioso é sua ambigüidade que faz das mulheres, ao mesmo tempo, desprivilegiadas e privilegiadas. Se por um lado, elas participam muito pouco dos espaços de poder e decisão, por outro, elas formam a grande maioria dos fiéis e vivenciam mais de perto a religião. É Linda Woodhead  que chama atenção para a complexidade desta relação. Ela sugere que é preciso elaborar uma grande teoria de gênero e religião para tentar compreender esta misteriosa relação entre a igreja e a mulher, em que, à primeira vista, pode parecer que dominados vivem em cumplicidade com seus próprios dominadores. Ela tem razão quando insiste nisso, pois a sociologia da religião, não obstante ser formada por grandes teorias, estas não incluem o gênero em suas análises da religião, ou, se o fazem, é de forma muito reduzida, ignorando a complexidade dos sujeitos estudados; e o pior, os estudos de religião insistem num sujeito universal abstrato, que é o homem. Negligenciar a construção social do gênero é ignorar uma gama enorme de informações que, sem dúvida alguma, interfere muito nos resultados de qualquer análise sociológica na modernidade.  

IHU On-Line - A mulher ainda continua em posição subalterna nos domínios da Igreja
Adriana de Souza
- Apesar de, em termos gerais, vislumbrarmos alguns avanços nas normas de algumas organizações religiosas, se pode verdadeiramente afirmar que a mulher ainda continua em posição subalterna nos domínios da Igreja, ou seja, o seu trabalho, ordenado ou não, enfrenta dificuldades de aceitação, não sendo reconhecido como legítimo por uma série de motivos. Não se pode negar que as construções de gênero configuram a atuação de mulheres e homens no interior das Igrejas e aqui elas se enrijecem porque são sacralizadas, adquirem caráter histórico e inquestionável. A Igreja, ainda que perdendo sua importância, tem papel fundamental na manutenção da ordem social, pois ela reforça esta ordem. Desse modo, é como um sustentáculo para a relação hierarquizada entre os sexos. Não obstante a dinâmica constante do campo religioso, a resistência das mulheres, a multiplicidade dos sujeitos, a complexidade destas relações e os poderes que envolvem esta luta, perfazendo uma grande trama de fugas e rupturas, na Igreja o homem ainda é a norma.
 
IHU On-Line - A autonomia da mulher contemporânea incomoda o homem? Como ficam as relações de gênero e as relações sociais em geral se considerarmos uma mulher mais autônoma e mais auto-suficiente em relação ao homem?
Adriana de Souza
- Acredito que as mudanças sociais nos compelem a vivermos tempos novos, a reavaliarmos nossos valores e preceitos. Como já disse anteriormente, falta ainda a revolução simbólica, a desconstrução/reconstrução do habitus, das representações, daquilo que antecede a nosso modo de penar e as nossas atitudes. Mas não se pode negar que as mudanças no papel do feminino e, conseqüentemente, do masculino balançaram as estruturas sociais, especialmente na segundo metade do século passado. Desde então, vários espaços e direitos historicamente negados foram adquiridos, por causa da persistente força das mulheres em manifestar seu repúdio a essas discriminações e exigir seus direitos de cidadãs e de sujeitos de direitos tais quais os homens. Devo ressaltar que este é ainda um processo inacabado. A qualidade destas transformações tem sido questionada por várias pesquisas, mas ainda assim, acho que temos mais a comemorar que a lamentar. Assim sendo, estas mudanças incomodam a homens, a instituições - como a Igreja, tradicional por excelência -, e, por que não dizer, a mulheres também. Todos estes agentes sociais precisam se reencontrar após este “abalo sísmico” pelo qual passaram, e passam as estruturas sociais.

IHU On-Line - Como a senhora avalia o impacto das teorias feministas e das reivindicações das mulheres no mundo acadêmico?
Adriana de Souza
- Quando falo em transformações causadas pelo movimento feminista, a idéia de uma trajetória em movimento me parece a melhor e o gerúndio se firma como a forma verbal que desenha esta realidade, porque há um antes, mas não há um depois definitivo.

A categoria gênero, que se desenvolveu a partir da década de 1960 é vista como marco histórico para este avanço das mulheres no mundo acadêmico. Efetivamente esta categoria de análise surge a partir dos anos 1980, com o objetivo de denunciar a exclusão do feminino e de outros grupos periféricos do conhecimento científico. De lá para cá, apesar de ser um conceito em construção, vem sendo utilizado extensamente por muitas estudiosas e estudiosos. O advento da categoria gênero relativiza dimensões antes fixas, como, por exemplo, a noção de história linear e progressiva que foi substituída pela idéia de “nuances, tendências e movimentos”, ou seja, deu-se atenção às “interrupções” da história, incluindo-as na análise, apontou-se a necessidade de se libertar de conceitos abstratos e universais, como a idéia do homem como sujeito da história por excelência. Além disso, os conceitos e categorias são historicizados e assim desmistificados.

O discurso da diferença

As teóricas feministas, no viés, seja marxista, seja liberal, têm se utilizado destas teorias para a compreensão das formas como o discurso da diferença dos sexos ou classe é determinante para o lugar diferenciado de mulheres e homens na sociedade. As conseqüências destas teorias são vistas, especialmente, na definição da nova face que adquiriu o mundo científico. As mulheres fazem ciência e são parte dela, teorizam sobre gênero e sobre a sociedade de um modo geral. Reivindicam e retomam o discurso sobre si, agora não é mais um discurso sobre elas feito por homens, mas sim um discurso feito por elas. Sua presença não é mais negada, nem escondida atrás de um sujeito universal abstrato, o homem.

Um mundo liderado por mulheres

Prognósticos têm sido feitos de que um mundo liderado por mulheres será mais justo e fraterno, além de mais completo, no sentido de que as mulheres possuem esta sensibilidade globalizante (porque foram socializadas para) que possibilita vislumbrar várias nuances de uma mesma realidade. Eu compartilho destas idéias, acredito que, em qualquer âmbito da sociedade onde haja a participação ativa das mulheres, a tendência é a melhora. Pesquisas evidenciam que estão se qualificando mais que os homens. Nos cursos de pós-graduação são elas a maioria e nos outros níveis educacionais também, além de serem melhores alunas. Todavia, em boa parte dos espaços sociais de atuação, na política, na religião, na tecnologia, entre outros, enfrentam os chamados “tetos de vidro” que, embora não se vejam, estão aí para impedir sua ascensão aos lugares de poder. No entanto, creio que a entrada das mulheres em qualquer campo traz embutido um grande potencial de transformação.

 

 

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