Edição 513 | 16 Outubro 2017

Tudo que se refere à eleição de 2018 é sintoma da gravidade da crise política

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Vitor Necchi

Moysés Pinto Neto, Rodrigo Nunes e Caio Almendra ponderam sobre a prevalência de jovens entre os eleitores que manifestam preferência por Jair Bolsonaro

Uma pesquisa divulgada recentemente pelo Instituto Datafolha revelou que cerca de 60% dos eleitores que indicam sua preferência por Jair Bolsonaro, do PP, caso ele concorresse à presidência do Brasil, são jovens, com menos de 34 anos. A mesma pesquisa indicou o fato de que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, lidera as intenções de votos nos primeiro e segundo turnos, mesmo condenado e sendo réu em outros processos da Operação Lava Jato. Para aprofundar o entendimento sobre estes cenários, a revista IHU On-Line entrevistou, por e-mail, o militante social e produtor audiovisual Caio Almendra e os professores e doutores em Filosofia Moysés Pinto Neto e Rodrigo Nunes. Para os três pesquisadores foram feitas as mesmas duas perguntas.

Almendra afirma que, para se compreender por que uma eventual candidatura de Bolsonaro recebe adesão de setores mais jovens, é preciso antes entender a maneira como ideias e, principalmente, a imagem desse político se difundem. “Bolsonaro e seus satélites são extremamente eficientes na internet, mobilizando afetos a partir de discursos rasos, ufanistas e sensacionalistas”, explica.

Para Pinto Neto, a juventude tem tradição de investir na contracultura. Os atuais jovens brasileiros “viveram no clima majoritariamente progressista (nasceram para o mundo com Lula no poder) e veem no conservadorismo uma forma de protestar contra o sistema”. Ao mesmo tempo, o conservadorismo se repaginou, “associando-se a gamers e metaleiros, contrapondo-se ao ‘politicamente correto’ e, com isso, ganhando alguma aura paradoxalmente contracultural”.

Nunes salienta que “a primeira coisa a observar é que, embora esta presença expressiva entre a juventude tenha surpreendido a muitos, o recorte mais importante no eleitorado de Bolsonaro ainda é o de classe”. Não há outro candidato com performance superior à dele em famílias que têm renda familiar mensal acima de dois salários mínimos. Para o professor, “a esquerda brasileira encontra-se em uma crise de identidade profunda – um fim de ciclo em que o velho não termina de morrer e o novo não acaba de nascer – e não demonstra capacidade de se conectar com seu próprio tempo”. Ao resumir o cenário, diz: “Em todos os seus aspectos, o voto em Lula, como tudo mais que tange a 2018, em última análise é menos prova dos méritos de Lula que sintoma da gravidade da crise política e dos deméritos do sistema como um todo”.

Moysés Pinto Neto é doutor em Filosofia (PUCRS) e professor da Universidade Luterana do Brasil - Ulbra.

Rodrigo Nunes é doutor em Filosofia pelo Goldsmiths College, Universidade de Londres, e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio.

Caio Almendra é militante social, estudioso de tecnologia e produtor audiovisual.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Uma pesquisa do Instituto Datafolha revelou que cerca de 60% dos eleitores que indicam voto em Jair Bolsonaro neste momento são jovens, com menos de 34 anos. Como este dado deve ser interpretado?

Moysés Pinto Neto – Há uma tradição de longa data, mas reforçada sobretudo na década de 1960, pela qual a juventude investe na contracultura. Esses jovens viveram no clima majoritariamente progressista (nasceram para o mundo com Lula no poder) e veem no conservadorismo uma forma de protestar contra o sistema. Junte-se a isso a repaginada que o conservadorismo deu a si próprio, associando-se a gamers e metaleiros, contrapondo-se ao "politicamente correto" e, com isso, ganhando alguma aura paradoxalmente contracultural. O trabalho de Angela Nagle , Kill All Normies , mostra que houve uma inversão da contracultura para o campo conservador no caso da alt-right norte-americana. A influência do Estados Unidos, que se reflete cada vez mais nas guerras culturais online brasileiras, faz com que o fenômeno se reproduza por aqui. A juventude é cheia de energia e vontade de mudar. O que a esquerda ou os progressistas em geral estão oferecendo em relação a isso? 2013 foi sufocado pela esquerda – até hoje continuam tentando enterrar o acontecimento – e, a partir daí, quem ocupou as ruas mesmo? O principal nome da esquerda (não meu, certamente) é Lula. Dá para olhar para frente com isso? Falta uma alternativa antissistêmica.

Além disso, os jovens são cheios de energia e potência. O discurso da culpa e da vitimização, assim como os inúmeros enquadramentos estereotipados, vai sendo descartado por figuras mais ambíguas, anti-heróis, capazes de ao mesmo tempo ser novidade e potência (Kim , Holiday ) e embaralhar as cartas do tabuleiro identitário. Eles deslocam não apenas a polaridade oprimido/opressor excessivamente rígida nas políticas de identidade, como também apresentam uma narrativa de subjetivação.

A mesma razão serve, para além do nível comportamental, para o nível do projeto de futuro, em que apenas o liberalismo apresenta uma visão transformadora do Brasil, enquanto a esquerda fica com a resistência – chegando-se ao ponto de defender os oligopólios econômicos e fazer vista grossa à corrupção plutocrática em nome dos empregos ou da economia nacional. Na falta de imaginação que banhou o neodesenvolvimentismo, o vazio acabou sendo preenchido pelos liberais, uma vez que são aqueles que apresentam uma ruptura com o modelo atual, tachando de conservadores seus rivais – e mesmo que saibamos que o neoliberalismo faliu no hemisfério Norte.

Finalmente, como mostram estudos de Crary , Bifo e outros, é uma geração que vive enfurnada nas telas, na infoesfera, e com isso passa por uma vigorosa corrosão da experiência corpórea. A memeficação da política facilita a adesão a fórmulas fáceis e populistas, uma vez que desfaz a complexidade do mundo, e quem soube ocupar esse espaço de youtubers primeiro foram os conservadores. Os jovens perderam o contato com o atrito do real e não diferenciam mais o que é sério e o que é brincadeira. Como disse Giuseppe Cocco , é o fascio-fakismo. Eles realmente não acreditam que o palhaço seja homofóbico, violento ou machista – tudo se perde na ambiguidade e indecidibilidade sobre o sentido verdadeiro ou falso do que é dito.

Em síntese, um fenômeno meio político – substantivado no imenso vazio político e na insatisfação geral, cumulado com falta de alternativas de esquerda – e meio cultural-capilatístico – onde mescla um imenso déficit de atenção e outro imenso déficit de experiência (ambos causados pela intoxicação das redes e pela aceleração dos ritmos da vida).

Rodrigo Nunes – A primeira coisa a observar é que, embora esta presença expressiva entre a juventude tenha surpreendido a muitos, o recorte mais importante no eleitorado de Bolsonaro ainda é o de classe. Acima de uma renda familiar mensal de dois salários mínimos, ele tem uma performance superior à de qualquer outro candidato, inclusive João Doria; é abaixo dessa faixa (onde está, claro, a maioria da população) que ele perde a dianteira. Entre os mais jovens, por outro lado, ele perde tanto para Lula quanto para Marina (no cenário sem Lula). Ou seja, o dado mais importante ainda é que se trata de uma candidatura das classes A, B e C.

Um esquema simples, mas eficiente, para analisar a ascensão da direita no mundo todo consiste em identificar na sua origem as ansiedades causadas pela realidade ou pela ameaça de dois tipos de perda: a perda de privilégios e a perda de direitos. É óbvio que estas ansiedades estão presentes, em maior ou menor grau, em diferentes indivíduos e setores sociais; mas também é óbvio que, quanto mais alto na pirâmide social se está, menor é o medo de perder direitos e maior o medo de perder privilégios. Então há um recorte de classe aí também, embora ele não funcione de maneira mecânica; uma das funções do discurso conservador é justamente fazer com que os mais ameaçados de perder direitos se preocupem mais com a perda de "privilégios" – com impedir que as mulheres tenham acesso ao aborto, por exemplo, do que com uma saúde pública de qualidade.

O momento histórico, nacional e mundial, cruza ao mesmo tempo a ameaça de perda de direitos (austeridade, “uberização” crescente, degradação ambiental etc.) e, apesar de tudo, um avanço do empoderamento de minorias (e, através da educação, das classes mais baixas), o que muitos acabam sentindo como uma perda de privilégios: do privilégio patriarcal, do privilégio branco, do privilégio heteronormativo etc. É, portanto, terreno fértil para a radicalização política, seja à esquerda (explorando a perda de direitos), seja à direita (misturando a perda de direitos com a perda de privilégios). A classe média brasileira, que está vendo a recessão roubar-lhe as perspectivas oferecidas pelo período lulista ao mesmo tempo que experimenta o incômodo da política de cotas, do encarecimento do trabalho doméstico etc., é particularmente fértil.

Onde a esquerda tem sabido responder a estas ansiedades, ela tem conquistado amplamente o apoio da juventude; no Reino Unido, sobretudo, e nos Estados Unidos, em menor grau. Mas a esquerda brasileira encontra-se em uma crise de identidade profunda – um fim de ciclo em que o velho não termina de morrer e o novo não acaba de nascer – e não demonstra capacidade de se conectar com seu próprio tempo.

Some-se a isso outro fenômeno mundial que é a crise do “centrismo”, isto é, o consenso político que governou o mundo nas últimas três décadas, em que centro-esquerda e direita blindavam a administração da economia – ninguém questionava os pilares da gestão neoliberal – e as diferenças políticas se reduziam cada vez mais a questões cosméticas. A crise mundial iniciada em 2007 escancarou o fato de que os maiores partidos das maiores democracias eram todos, acima de tudo, defensores dos mesmos interesses: do mercado financeiro e das grandes corporações. Isto abriu uma grande crise de representação que, no Brasil, veio acompanhada de um escândalo de corrupção suprapartidário sem precedentes.

Tudo isto alimenta uma descrença muito grande no sistema político e em sua capacidade de reformar-se, de onde surge a ideia de que apenas uma liderança forte, vinda “de fora” do sistema, seria capaz de dobrá-lo. Se o eleitorado mais jovem é sensível a isso, é, em

primeiro lugar, tanto porque eles atingiram a maioridade durante o período de maior crise do centrismo quanto porque, na falta de uma perspectiva histórica mais longa (o que inclui a experiência de já ter se deixado enganar no passado...), eles são mais suscetíveis à promessa de soluções fáceis.

Mas também há mais que isso. Falar em “perda de privilégios” ressalta a natureza reativa do recrudescimento do conservadorismo: ele reage a mudanças que vê a seu redor. E onde o empoderamento de negros, mulheres, homossexuais, índios etc. é mais visível hoje do que nas universidades, nas escolas, entre a juventude? Estas transformações causam uma angústia em seu entorno, um sentimento de incerteza sobre o mundo e sobre si mesmo, que, para alguns, acaba sendo respondida pelo discurso conservador – que nos assegura, precisamente, que cada coisa tem seu lugar e que há uma ordem correta a fazer valer, nem que seja à força. A obscenidade característica deste discurso (o seu ar de "pronto, falei") é o mecanismo de dessublimação pelo qual os indivíduos podem descarregar a tensão de incerteza que as mudanças lhes causam e encontrar aliados que compartilham essa angústia. (Sobre a obscenidade, falei aqui: http://bit.ly/2gVVfIn )

Não se trata, é claro, de igualar o sofrimento psíquico de quem é vítima de preconceito com aquele de quem se beneficia de uma estrutura de opressão, mas de identificar um dos mecanismos pelo qual o preconceito se reproduz e reforça. É preciso, contudo, um certo cuidado. A socióloga Angela Nagle provocou bastante polêmica ao identificar, em seu livro Kill All Normies, uma relação especular entre a alt right norte-americana e os chamados “Tumblr liberals” ou “social justice warriors” – militantes progressistas cuja radicalização retórica nas redes sociais teria gerado, como reação, o caldo de cultura no qual a nova direita prosperou. Ora, é óbvio que essa dialética existe; o problema do argumento de Nagle é que lhe falta um pouco de perspectivismo político para entender que aquilo que uma progressista como ela percebe como radicalismo não é necessariamente o mesmo que um conservador quer dizer quando usa essa palavra. Para este último, potencialmente qualquer feminismo, qualquer ativismo negro ou homossexual, por mais moderado, já seria incômodo, excessivamente radical. Logo, não dá para dizer simplesmente que, se existe reação, é porque os ativistas “exageram”; há setores da sociedade para quem a luta dos oprimidos sempre parecerá, à primeira vista, um “exagero”.

Aliás, não se pode falar no crescimento do discurso conservador nos últimos anos sem atribuir a responsabilidade também à mídia corporativa, que o alimentou ativamente e, por ação ou omissão, flerta com ele até hoje. No auge do pacto lulista, enquanto a vida da maioria das pessoas estava melhorando, era inútil tentar convencê-las de que o governo era ruim. O que restava, então, era uma mistura de pânico moralista e paranoia da Guerra Fria, do qual a oposição inteira, inclusive a mais “moderna”, se utilizou. Foi isto que trouxe a extrema direita para o centro do debate político, mesmo se os grandes veículos de comunicação pretendem hoje distanciar-se dela.

Por último, há a natureza da comunicação contemporânea, especialmente entre os mais jovens, que se dá predominantemente através das redes sociais. Destas, destaco três elementos que contribuem para o fortalecimento do discurso conservador (e de radicalismos em geral). Primeiro, o fato de que a mediação técnica, ao eliminar a presença física do outro, diminui a possibilidade de empatia; as pessoas chegam a extremos de violência “virtual” a que dificilmente chegariam cara a cara. Segundo, o fato de que o conteúdo é “memeficado”, feito para ser consumido rapidamente, o que favorece o efeito retórico fácil e os gestos simbólicos de “coragem” obscena em detrimento da

reflexão, da análise sóbria e realista. Terceiro, o fato de que a dinâmica fundamental das redes sociais é a disputa pelo mercado de “likes”, “retuítes” etc. – o que novamente favorece o superficial em detrimento do profundo, bem como cria um incentivo para que indivíduos e grupos reforcem aqueles aspectos de seu “perfil” que é mais “recompensado” pelos outros através de “likes”, “retuítes” etc. Ou seja: há um mecanismo intrínseco às redes sociais que tende a estabelecer um feedback positivo que conduz à radicalização.

Caio Almendra – Temos dois elementos distintos, jovens e Bolsonaro , e precisamos entender como eles se relacionam.

Tenho um imenso receio de algumas análises sobre a popularidade do Bolsonaro entre jovens que colocam a "rebeldia da juventude" como o elemento central. Para tais análises, os jovens seriam automaticamente mais propensos a serem a favor de mudanças. Como boa parte da vida dos jovens foi com o PT no poder, os jovens se rebelariam votando em um crítico feroz do PT, no caso, o Bolsonaro.

Ora, toda a noção de que juventude é sinônimo de rebeldia política, e a construção de um caminho único para que essa rebeldia política se mobilize, é fruto de um preconceito, uma análise rasa do discurso.

Não é incomum a juventude ser apoiadora do partido que está no governo. Antes de presumir algo intrínseco à juventude, devemos pensar como as pautas políticas que mais afetam os jovens se desenvolveram nos últimos 13 anos. Os preços do aluguel dispararam, o custo de vida urbana cresceu, não houve progresso no campo dos costumes (como legalização de drogas, em especial da maconha, ou avanços em pautas feministas e direitos reprodutivos). Não houve democratização ou qualquer mudança significativa na mídia, o que tornou nossa televisão pouco interessante ao jovem frente à chegada do audiovisual via internet. Hoje, fica claro que, apesar de apoiar a direita na economia, boa parte da mídia rejeita o autoritarismo de Bolsonaro. Houve redução das perspectivas salariais dos mais jovens, fenômeno que tem componentes globais, mas que foram mais sentidos durante o governo PT. Os críticos ferozes ao petismo têm, portanto, uma boa possibilidade de crescimento na juventude.

Para entendermos por que Bolsonaro cresce entre os setores mais jovens, temos que ver, também, como se dá a difusão das ideias e, principalmente, da imagem do Bolsonaro. Bolsonaro e seus satélites são extremamente eficientes na internet, mobilizando afetos a partir de discursos rasos, ufanistas e sensacionalistas. Em especial, não se trata da internet pela internet, mas da atual formatação das redes sociais, que privilegiam circulação rápida de informação e esquecimento da informação via soterramento. E qual o perfil do usuário de internet? Mais jovem e com mais acesso à educação. Por isso, é nessa faixa que ele está forte hoje, a meses da campanha, antes das atividades de rua e do tempo de TV.

Não se trata de afirmar que não há uma energia específica da juventude em torno das pautas das mudanças. Mas, ela não é necessariamente hegemônica e nem necessariamente é canalizada para o Bolsonaro em outros meios de difusão de ideias e informações. No próprio estado onde o Bolsonaro atua politicamente, parcela significativa da crítica ao PT entre os jovens é expressa pelo fortalecimento do PSOL, partido no extremo oposto do espectro político das ideias do Bolsonaro.

IHU On-Line – A mesma pesquisa do Datafolha aponta o fato de que Lula lidera as intenções de votos nos primeiro e segundo turnos, mesmo condenado pelo juiz Sérgio Moro e sendo réu em outros processos da Operação Lava Jato. O que isso significa?

Moysés Pinto Neto – Como disse Celso de Barros , o “companheiro” impeachment fez um favor ao PT. Em vez de deixar o governo Dilma sangrando na própria catástrofe, ceifou precocemente o governo, legitimou a ideia de golpe parlamentar e acabou formando uma unidade precária no campo organicamente petista e no “apoio crítico”, que é basicamente aquele segmento que, embora não se defina como petista, sempre termina ao lado do PT em nome da esquerda unida. O grupo que desequilibrou a balança a favor de Dilma em 2014 de certo modo se reaglutinou.

Além disso, o rumo impopular do governo Temer provoca inequivocamente o efeito comparativo. O período lulista trouxe avanços sociais e melhorias econômicas que não serão apagadas tão rapidamente. O período Temer traz a supressão de direitos e investimentos para a população pobre. Em meio a um sistema apodrecido como um todo, Lula acaba soando como uma liderança que saberia resolver os problemas.

Finalmente, não somente pelo restante também estar envolvido, mas também porque boa parte da população – apesar de tudo – ainda é impermeável às redes sociais digitais e não se deixa, por isso, tocar pela narrativa radical que costuma permear a bipolarização brasileira. No caso, Lula aparece ainda como um nome razoável, sem o mesmo escândalo que isto costuma provocar online.

Lamentavelmente, a posição de Lula também significa nossa incapacidade de formar novas lideranças, renovar os quadros políticos e estabelecer um novo projeto para o país. Ela nos congela no mesmo momento insuportável que vivemos, prorrogando-o de modo a até colocar em risco a democracia.

Rodrigo Nunes – Há algum tempo eu faço a provocação de que os mais pobres (a maioria do eleitorado lulista) são os eleitores mais racionais do Brasil: eles votavam no PT porque era bom para eles e passaram a questionar este voto a partir do momento que a economia começou a desandar. Minha impressão é que este fato indica que muitos entre aqueles que votariam em Lula acreditam que ele esteve envolvido em corrupção, mas, ao mesmo tempo, o comparam com as outras opções disponíveis e pensam, primeiro, que entre todos estes, ele é o único que pode ser associado a um período de benefícios reais à maioria da população; e, segundo, que se outros tantos, politicamente até mais nefastos, seguem e possivelmente seguirão à solta, cobrar a prisão de Lula seria apenas confirmar nossa tendência de distribuição desigual da justiça. Em resumo: em todos os seus aspectos, o voto em Lula, como tudo mais que tange a 2018, em última análise é menos prova dos méritos de Lula que sintoma da gravidade da crise política e dos deméritos do sistema como um todo.

Caio Almendra – Um grave erro ao analisarmos cenários políticos é concentrarmos toda a aferição de preferência como um resultado da vontade do povo. Uma eleição é uma escolha entre determinados candidatos, e uma pesquisa eleitoral visa a simular essa eleição. Não se trata, portanto, de “saber como o povo pensa”, apenas de saber como o povo votaria entre determinadas pessoas. Da mesma forma, precisamos entender que Lula tem algo na casa dos 20% no primeiro turno, dependendo do cenário, e 50 e poucos por cento o querem preso. É numericamente possível, e até comum, que políticos vençam eleições majoritárias com rejeição na casa dos 50%.

Segundo a pesquisa, 54% da população querem que Lula seja preso. A pesquisa aponta que 5% das pessoas querem Lula preso, mas ainda assim, perante os atuais candidatos, votariam nele. São as pessoas que querem Lula preso sem rejeitá-lo. Parece estranho, mas notem, não é. Não sabemos quantas pessoas querem todos os políticos presos, não sabemos quantos de fato sabem quais são as acusações contra Lula etc. Simplesmente não sabemos quantas pessoas acham que todo o sistema político é corrompido por completo, mas que, ainda assim, acham melhor participar dele com o voto do que se abster. Mesmo com esse dado tímido e com baixa carga de informação dá para perceber uma coisa: a prisão é relevante na escolha entre cenários possíveis, mas pode não ser determinante. Como? Por quê?

Desde a redemocratização, jamais passamos um governo inteiro sem graves denúncias de corrupção. A corrupção é endêmica a nosso sistema político e econômico. Durante a ditadura, não havia denúncias, mas havia corrupção. A restrição à imprensa, a censura, impedia a realização de denúncias. Durante os governos petistas, a imprensa intensificou levemente as denúncias de corrupção, como forma de domesticar a base social do petismo, em especial os movimentos camponês e sindical. Os segmentos dos jornais destinados a tais tipos de notícia se alongaram.

O resultado desse processo não é linear, igualmente distribuído. O ingresso do Judiciário no cotidiano do noticiário político fez reduzir a confiança do público no Judiciário. As parcelas desagradadas por uma decisão passaram a desgostar do Judiciário, a informação mais difundida sobre suas decisões aumentou a rejeição ao Judiciário como um todo. Esse é o processo de longo prazo. O processo mais recente deveria tratar da confiabilidade do juízo da Lava Jato . Infelizmente, a coisa é personalizada na figura do juiz Sérgio Moro .

Recentemente, algumas pesquisas começaram a tratar da questão da popularidade de Moro. E o que descobrimos? Que o discurso do PT sobre “mera perseguição política”, apesar de ineficiente na tarefa de gerar a sensação de inocência de Lula, foi capaz de reduzir a confiança na Lava Jato, em especial diante de um cenário de impunidade de outros quadros políticos renomados, como o atual presidente (Dilma Rousseff deixou de ser presidente, mas o noticiário político continuou repleto de denúncias, algumas completamente novas e com potencial escandaloso, como a relação entre JBS e Temer ). Essa redução de confiança foi muito mais sentida entre os setores mais próximos ao petismo, eleitores usuais etc., mas difunde-se um pouco mais.

Com a redução da confiabilidade na Lava Jato como procedimento capaz de encerrar a corrupção por completo, com a redução da confiança nos demais políticos nesse pós-PT permeado de escândalos, fica mais fácil vislumbrarmos melhor como o espectro da prisão de Lula não significa um afastamento completo da possibilidade de ele ser eleito, como é comum e usual. Não chega a ser um cenário onde fica claro que havia inocência e perseguição política, mas é suficiente para descolar a possibilidade da prisão da esperada morte política.■

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