Edição 512 | 02 Outubro 2017

“Precisamos ser mais ‘Vós’ e menos ‘Vossa Mercê’. Contra a sociedade escravagista, a insurgência

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João Vitor Santos | Edição: Ricardo Machado

Marcus Carvalho descreve as tensões de um contexto radicalmente discriminatório que levou ao levante dos revolucionários de Pernambuco, no começo do século 19

Passados 200 anos de Revolução Pernambucana, um dos principais desejos dos insurgentes continua atual: o desejo de igualdade na aplicação das leis. Segundo Marcus Carvalho, os rebeldes “defendiam o constitucionalismo e, na forma mais radical, a república. No cerne de tudo isso, estava a representação que devia ser ampliada. Enfim, a igualdade perante a lei e o direito à representação eram muito caros para eles”, esclarece o professor em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“As pessoas se percebiam inseridas em uma sociedade dividida não apenas em condição (livre, escravo; pobre, rico), mas também em qualidade (nobre, plebeu; pele clara, pele escura). A mudança de qualidade é muito mais vagarosa e difícil do que de condição”, pontua Carvalho. “Ao proibir o uso do Vossa Mercê e instituir o uso somente do Vós, a Revolução de 1817 acabou com a noção de qualidade. No contexto da época, isso era radicalíssimo. Não foi apenas uma proposta. Foi um decreto. Vossa Mercê é um tratamento que indica submissão. O Vós indica apenas respeito, mas é igualitário. Some-se a isso a condenação moral da escravidão”, complementa.

Estabelecendo um diálogo com os dias atuais, o professor sugere que “precisamos ser mais ‘Vós’ e menos ‘Vossa Mercê’. Parece tacanho dizer isso, mas ainda não conquistamos direitos defendidos em 1789 na França”, destaca.

Marcus Carvalho formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambucao – UFPE, onde também realizou mestrado em História. Também é mestre em História da Arte pela universidade de Ilinois, nos EUA, onde também realizou doutorado em História. Fez estágio pós-doutoral na École de Hautes Études en Sciences Sociales, na França. Atualmente é professor titular de História ma UFPE. É autor de Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850 (Recife: Editora UFPE, 2010).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que consiste e quais as questões de fundo do ciclo das insurreições liberais do Nordeste?
Marcus Carvalho – Discute-se muito os limites do liberalismo, ou seja, os direitos civis do livres e libertos, a igualdade perante a lei de todas as pessoas não escravizadas, os limites do poder do imperador, a questão da escravidão e as possibilidades do seu fim imediato ou gradualmente.

IHU On-Line – Que ideia de liberalismo era defendida por este ciclo? Política, social e economicamente, o que significava?
Marcus Carvalho – Essas rebeliões (1817 , 1824 e 1848 ) contêm várias tendências. Havia desde facções das elites locais apenas insatisfeitas com os arranjos clientelares do poder central que, eventualmente, as deixavam de fora da distribuição de benefícios, até, no outro extremo, os liberais radicais. O que sempre nos fascina mais são os liberais radicais, pois eles chegaram a participar do poder em 1817 e em 1824, pelo menos. Defendiam se não a abolição imediata, ao menos a emancipação gradual. Defendiam uma radicalização dos direitos civis, igualando os cidadãos, pois o Brasil herdou do Antigo Regime uma sociedade de ordens, ou seja, havia várias gradações de poder e status mesmo entre as pessoas que não eram escravizadas. Defendiam o constitucionalismo e, na forma mais radical, a república. No cerne de tudo isso estava a representação que devia ser ampliada. Enfim, a igualdade perante a lei e o direito à representação eram muito caros a eles.

IHU On-Line – A Revolução Pernambucana de 1817 pode ser considerada a “primeira revolta popular do Brasil”? Por quê?
Marcus Carvalho – Acho a expressão “revolta popular” anacrônica nesse contexto. O Brasil era uma sociedade escravista superposta a uma sociedade que se pensava organizada em ordens. O mundo era escravista nessa época. As pessoas se percebiam inseridas em uma sociedade dividida não apenas em condição (livre, escravo; pobre, rico), mas também em qualidade (nobre, plebeu; pele clara, pele escura). A mudança de qualidade é muito mais vagarosa e difícil do que de condição. Ao proibir o uso do Vossa Mercê e instituir o uso somente do Vós, a Revolução de 1817 acabou com a noção de qualidade. No contexto da época, isso era radicalíssimo. Não foi apenas uma proposta. Foi um decreto. Vossa Mercê é um tratamento que indica submissão. O Vós indica apenas respeito, mas é igualitário. Some-se a isso a condenação moral da escravidão. Eles admitiram a impossibilidade política da abolição imediata, mas anunciaram claramente que o fariam de forma lenta e gradual. Essas duas medidas em conjunto atestam a radicalidade de 1817. As pessoas seriam iguais perante a lei e, paulatinamente, a escravidão seria abolida. É importante ressaltar que mesmo depois da abolição, as pessoas continuaram divididas em “qualidades” no Brasil. A tal igualdade perante a lei ainda não foi alcançada. Por essas razões estavam certos os rebeldes em chamarem o movimento de Revolução. 1817 foi derrotado, mas foi sim um movimento revolucionário.

IHU On-Line – Como compreender os levantes ocorridos em Recife, entre 1823 e 1848? Que conexões podemos fazer com outros levantes populares da história do Brasil?
Marcus Carvalho – Acho que ainda vivemos resquícios do chamado Antigo Regime, ou seja, da sociedade anterior à Revolução Francesa . Falamos de socialismo, mas, na realidade, ainda precisamos de coisas mais simples, como a igualdade perante a lei, o direito à representação popular, o fim de uma sociedade ainda baseada na noção de “qualidade”. No Brasil ainda persistem noções de fidalguia subliminares, porém contundentes. Alguns podem e devem mandar, aos demais cabe obedecer ou o tronco. Nunca é pouco lembrar também que o esteio do Absolutismo era a magistratura. Era também um dos caminhos mais fácies para as famílias as quais faltava qualidade ascenderem à nobreza, daí o nome “nobreza togada”. Isso continua até os dias de hoje.

IHU On-Line – Que história da independência do Brasil pode ser revelada a partir da perspectiva de negros, pardos e quilombolas de Pernambuco? Como essa história vem sendo reconstituída?
Marcus Carvalho – Há uma outra Independência na historiografia contemporânea. Na história há sempre alternativas. Nós somos isso que sabemos que somos. Mas houve lutas e alternativas derrotadas. O povo sempre se revoltou. Os escravizados, os libertos, a população livre pobre sempre foi protagonista. A proposta vencedora na Independência foi profundamente conservadora, centralista e escravista, mas houve alternativas e muito sangue foi derramado para que essas propostas mais avançadas não prosperassem. Um dos principais compromissos políticos do historiador é recuperar essas alternativas. Mostrar que elas existiram – e existem! Não temos que nos conformar com o que está posto. Aqueles anos de formação do Brasil foram de muito protesto, de muitas demandas. As camadas subalternas aproveitaram-se do momento para protestar, fugir, rebelarem-se. A historiografia contemporânea tem mostrado isso.

IHU On-Line – Como se dava a relação entre negros e brancos em Pernambuco no início do século 19?
Marcus Carvalho – Essa relação foi sempre conflituosa, claro. Era uma sociedade escravista. Todavia, um dos fundamentos da longevidade da escravidão no Brasil era a possibilidade de o ex-escravizado ser dono de escravizados. Isso não existia nos Estados Unidos, por exemplo. Lá o senhor era sempre branco. Aqui, era perfeitamente possível uma pessoa ser escravizada na África, vir para o Brasil e passar a vida como cativo sem ter tido jamais um senhor branco. Como não havia nenhum interdito à propriedade de escravos, havia muita gente com poucos escravizados. A propriedade escrava no Brasil era muito pulverizada. Havia multidões de proprietários com um, dois, três escravos. Isso reforçava muito a instituição, pois havia inúmeros não-brancos donos de gente e também tornava mais fluidas as relações interétnicas e inter-raciais, por mais brutal que fosse a escravidão. Ao mesmo tempo, não havia interditos à alforria, o que dava ao sistema uma certa flexibilidade. O paradoxo é este: essa flexibilidade fez a escravidão durar muito.

IHU On-Line – Qual a importância e como compreender a figura do líder João Batista , e do próprio Quilombo de Catucá , no contexto do começo do século 19?
Marcus Carvalho – É impossível responder isso em poucas linhas, mas, repetindo, é muito importante recuperar o protagonismo popular, a resistência do povo contra a opressão. É preciso acabar com o mito de que as coisas já estão postas, que o Brasil atual é este porque não houve alternativas, o que existe é o que sempre foi. Não é nada disso, o povo sempre lutou, sempre resistiu. Há sempre alternativas e devemos defendê-las.

IHU On-Line – De que forma o pensamento da insurreição pernambucana, que leva à Revolta de 1817, pode inspirar uma reflexão sobre os problemas do Brasil de hoje?
Marcus Carvalho – Igualdade perante a lei. Precisamos disso. Precisamos ser mais “Vós” e menos “Vossa Mercê”. Precisamos também combater os privilégios da “nobreza da terra”, tanto aquela de riqueza antiga, que, por se achar com “qualidade”, pensa e acredita que pode tudo e é diferente do resto da população, os plebeus, as pessoas de baixa qualidade, ou seja a imensa maioria de nós. Também precisamos de uma magistratura que não seja apenas uma “nobreza togada”, defensora de privilégios e foros próprios, mas que defenda a igualdade perante a lei.

IHU On-Line – No início do século 19, a escravidão gerou nos negros um sentimento de insurgência que foi importante ingrediente nas revoltas desse período. No Brasil de hoje, qual a emergência de novas insurgências? Quais são as formas contemporâneas de resistência dos negros no Brasil?
Marcus Carvalho – O Brasil continua racista e excludente. O famoso censo do “moreno jambo” mostrava claramente que, quanto mais escura a cor da pele, mais perto da favela a pessoa estava, menor sua educação, pior a sua condição econômica. Defendo a política de cotas. Não só ajuda a corrigir isso, como provocou uma discussão no país sobre o racismo. A vitória contra o racismo, a misoginia e a homofobia só se consegue com muita educação e a plena igualdade dos indivíduos perante a lei. Parece tacanho dizer isso, mas ainda não conquistamos direitos defendidos em 1789 na França. ■

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