Edição | 02 Outubro 2017

O mundo em uma casa

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Fernando Del Corona

Novo filme de Darren Aronofsky leva espectador ao limite em parábola apocalíptica

Em Mãe!, o casal interpretado por Javier Bardem e Jennifer Lawrence vive em uma casa isolada,

onde os acontecimentos testam os limites do quão desconfortável a plateia pode ficar

Escrever sobre Mãe!, o novo filme do diretor Darren Aronofsky, é uma tarefa intimidadora. O longa, que recebeu tanto vaias quanto aplausos em sua estreia no Festival de Cinema de Veneza, vem polarizando audiências desde que saiu nos cinemas, dividindo o público entre os que o consideram um dos melhores – senão o melhor – do ano e os que detestaram. Além disso, é o tipo de filme que é quase impossível de falar sobre sem entregar os desenrolares da trama e os muitos significados por trás da história.

Em uma enorme casa isolada, mora um casal interpretado por Jennifer Lawrence e Javier Bardem. Ele é um escritor famoso sofrendo de bloqueio criativo, ela, sua esposa dedicada – por vezes até demais. A chegada de um estranho (Ed Harris), depois de sua mulher (Michelle Pfeiffer), e depois de uma série crescente de invasores indesejados afeta a vida do casal e do lugar onde vivem. Se, de início, pode parecer uma história como a de O anjo exterminador (1962), de Luis Buñuel, onde um grupo reunido para jantar não consegue – ou não quer – ir embora, logo os tons sinistros de filmes como O bebê de Rosemary (1968) e Repulsa ao sexo (1965), ambos de Roman Polanski, com suas jovens protagonistas aterrorizadas com a potencial violência de todos que as cercam, começam a se infiltrar na história.

Rapidamente fica claro que Aronofsky não está criando um conto realista de uma maneira literal. Após uma espécie de prólogo surreal envolvendo uma mulher em chamas, uma casa queimada e um diamante, o primeiro ato se desenrola de maneira quase realista. A personagem de Lawrence – chamada nos créditos de Mãe, enquanto Bardem é apenas Ele – fica incomodada com a presença do casal que insiste em desrespeitar suas regras e invadir espaços proibidos. Pior do que isso, seu marido desconsidera suas objeções e parece envolvido pela presença dos dois. A partir da chegada dos filhos dos personagens de Harris e Pfeiffer, porém, o filme assume cada vez mais um tom de pesadelo. A casa respira e sangra sobre as mãos de Lawrence. Quando o terceiro ato começa, todas as pretensões realistas vão pela janela, e as inclinações alegóricas dominam a trama.

Ao final do filme, não é difícil entender o significado por trás da maioria dos simbolismos de Mãe! – Bardem chega ao ponto de verbalizar um deles, de maneira desnecessariamente didática. Aronofsky não costuma apostar na sutileza, e sua mensagem é transmitida como um soco no estômago, uma técnica familiar para o diretor que testou os limites do quão desconfortável ele pode deixar a plateia com o desesperador Réquiem para um sonho (2000). Desde seu primeiro filme, o estranho e desconcertante Pi (1998), ele sabe utilizar imagens e sons para criar um sentimento intenso de angústia no espectador, e nesse filme mais recente não é diferente. Que não exista dúvida: Mãe! vai espantar e enojar grande parte da audiência, e pessoas saindo de sessões não é incomum.

Tanto Aronofsky quanto Lawrence já anunciaram a intenção ambientalista por trás do filme, chegando ao ponto de o diretor fazer uma longa declaração sobre o estado do planeta e o que o levou a escrever a história. Diversos elementos trabalhados por ele parecem ter sido trazidos do conjunto de sua obra, e o resultado final soa como um filme mais pessoal do que os outros. Aronofsky disse ter escrito o roteiro em apenas cinco dias, enquanto costumava demorar anos trabalhando em cada um de seus outros filmes. Seu interesse pelo religioso e pelo esotérico já estava presente em Pi, cujo protagonista acredita ter descoberto um padrão matemático para o universo, em Fonte da vida (2006) e, de maneira bem mais literal, em Noé (2014). O constante jogo entre realidade e fantasia também é central em Cisne negro (2009).

Laureada como um dos maiores talentos a sair da nova safra de atores hollywoodianos, Lawrence conquistou sua primeira indicação ao Oscar com apenas 20 anos, ganhou um aos 22 e, aos 25, se tornou a atriz mais jovem a ter quatro indicações. Ao mesmo tempo, sua carreira foi pontuada por filmes de ação, encabeçando franquias como a de Jogos vorazes e X-Men, o que ainda coloca, para alguns, certa descrença sobre seu potencial dramático. Em Mãe!, porém, ela dá o que pode ser a sua melhor atuação até agora. Acompanha-se a Mãe o tempo todo. Seu rosto é enquadrado sempre muito de perto, vemos através dos seus olhos e a seguimos em todo lugar que vai. A câmera nunca a abandona. Sendo assim, o grande peso do filme – e é um filme pesado, não tenha dúvida – cai sobre os ombros de sua protagonista, que passa por inimagináveis agressões físicas e psicológicas. Lawrence consegue transitar entre a subserviência e a paixão, a dor, o medo e a angústia. É um papel difícil, por vezes exagerado, que deixa pouco espaço para maiores sutilezas diante das crescentes ambições megalomaníacas de Aronofsky. Mãe! é um filme que não deixa espaço para respirar. Fugindo de uma estrutura narrativa mais convencional e sem trilha sonora – além de alguns acordes pontuais –, a tensão apenas cresce com o passar do tempo até beirar o insuportável.

A atuação de Lawrence é ainda mais surpreendente quando colocada ao lado de veteranos como Bardem, Harris e Pfeiffer – essa, mais do que os outros, brilha na tela como não fazia há muito tempo. Sua presença é a mais hipnótica em cena, por conta de seus olhares e insinuações. Bardem se revela uma presença imponente, entre benevolente e apoplético – uma mistura relevante ao se compreender o papel que ele interpreta.

Parece uma estratégia fácil, ao falar de Mãe!, se resumir a apontar o significado por trás dos simbolismos, analisar as metáforas, desvendar a parábola. Afinal, o filme, em si, é centrado nisso. Existe pouco, enquanto história, que fuja da alegoria. Aronofsky reflete ao longo da trama sobre a experiência humana na Terra, sobre a experiência criadora – tanto de um ponto de vista criativo quanto biológico, se é que existe, afinal, diferença entre os dois –, sobre maternidade e relacionamentos. Tarefa complexa e que nem sempre foge de certas obviedades – existe um certo número de metáforas menstruais em filmes que já começam a se tornar cansativas, especialmente depois de Carrie, a estranha (1976), de Brian De Palma, e dos filmes de terror corporal dos anos 1970.

Como filme, Mãe! trata-se de uma experiência única, abrasiva e provocadora. Mesmo que possa incomodar, ainda é um filme que merece ser visto, apesar do choque que acompanha a história, conforme mais e mais ela se aproxima do espetáculo escatológico do terceiro ato. Aronofsky deve ser louvado pela sua visão e ousadia, ainda que pudesse trazer um pouco mais de leveza na sua abordagem, o que não parece ser o seu forte – em alguns momentos, menos seria mais, especialmente em termos de efeitos visuais espetaculares.

Torna-se difícil analisá-lo com parâmetros comuns, um filme que parece ir além e desafiar as definições de bom ou ruim. Em certo momento, o personagem de Bardem fala para a Mãe: “Eu sou Eu”. E assim é Mãe!.

Ficha técnica

Mãe! (2017), de Darren Aronofsky

Mãe!
Título original: Mother!
Direção: Darren Aronofsky
Produção: Darren Aronofsky, Scott Franklin, Ari Handel
Elenco: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris, Michelle Pfeiffer
Estados Unidos, 2017, 121 min

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição