Edição 511 | 25 Setembro 2017

A força da autenticidade na filosofia suarezina

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Patricia Fachin | Tradução: André Langer | Edição: João Vitor Santos

Santiago Orrego destaca que, ao invés de pensar na atualidade e originalidade, é mais interessante se perceber o caráter autêntico na obra de Francisco Suárez

O que faz de uma perspectiva filosófica atual? Tem de trazer algo novo e original? Para o professore Santiago Sánchez Orrego, da Pontifícia Universidade Católica do Chile, esses são falsos problemas, pois compreende que o valor de uma filosofia não está no seu caráter atual. “Há momentos em que as obras filosóficas do passado parecem desprovidas de interesse – elas não são atuais, nesse sentido – porque o nível da reflexão filosófica diminuiu ou simplesmente porque foram seguidos caminhos diferentes, não melhores nem piores”, justifica. Isso, para ele, serve para entender porque há quem indique Francisco Suárez como pensador atual e outros nem tanto.

Na entrevista a seguir, concedida por e–mail à IHU On–Line, Orrego observa que “Suárez, como um pensador individual, é muito autêntico e tem características originais dentro do seu escopo, mas não são tantas como poderia parecer à primeira vista”. O mais interessante não reside na perspectiva da originalidade. Entretanto, ressalta: “o essencial na filosofia – e na vida, talvez – não é ser “original”: a busca de originalidade é uma forma de dependência da opinião dos outros como a face negativa da imitação. O que é verdadeiramente positivo é ser “autêntico”, isto é, dirigir–se por si mesmo, a partir da própria razão que examina as coisas com diligência, sem se preocupar com se o que se encontra é semelhante ou não ao que outros já viram”. Característica que identifica na filosofia Suárezina.

Santiago Sánchez Orrego é professor na Pontifícia Universidade Católica do Chile, graduado em Filosofia pela Universidade dos Andes, também no Chile, PhD em Filosofia pela Universidade de Navarra, na Espanha. Ainda realizou estágio pós–doutoral na Universidade Católica do Chile. Entre suas publicações, destacamos El ser como perfección en Tomás de Aquino (Servicio de Publicaciones de la Universidad de Navarra, 1998) e La actualidad del ser en la Primera Escuela de Salamanca. Con lecciones inéditas de Vitoria, Soto y Cano (Eunsa, Pamplona, 2004).

O entrevistado apresenta a conferência Questões de Metafísica – Sobre as Disputationes metaphysicae de Francisco Suárez no dia 26 de setembro, às 10h45min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU, campus São Leopoldo da Unisinos, dentro da programação do VIII Colóquio Internacional IHU e XX Colóquio Filosofia Unisinos – Metafísica e Filosofia Prática. A atualidade do pensamento de Francisco Suárez, 400 anos depois. Acesse a programação completa.

Confira a entrevista.

IHU On–Line – Qual é a atualidade da metafísica de Francisco Suárez, 400 anos depois?
Santiago Sánchez Orrego – Costuma–se dizer que uma obra filosófica é atual quando nela podemos encontrar respostas ou orientações esclarecedoras para questões e situações do tempo presente. No entanto, o que define o tempo presente – e, portanto, é a medida da atualidade de uma coisa – não é apenas aquilo que diferencia o presente do passado, pois o presente também inclui tudo o que tem em comum com os tempos anteriores ou pelo menos alguns deles. Certamente, esses aspectos comuns não se apresentam em estado puro, mas sempre sob a concretude própria de cada época. E para aqueles que estão situados dentro de um tempo específico, é impossível separar claramente ambos os aspectos.

Nesta perspectiva, a metafísica de Suárez é atual? Se alguém considera o que ele diz especificamente na sua obra mais célebre, suas Disputationes Metaphysicae , há longas passagens que não têm nenhuma atualidade. São sobretudo aquelas que procuram resolver contradições aparentes entre certas ideias metafísicas e algumas das crenças da época sobre certos fenômenos concretos do mundo físico que agora sabemos com certeza que são falsos ou que suas verdadeiras explicações são completamente diferentes. Eu li de cabo a rabo três quartas partes das Disputationes, e posso atestar que essas passagens são muito longas, e justamente por causa da falsidade de suas premissas, que agora conhecemos, são muito entediantes, quase insuportáveis, sem qualquer interesse, pelo menos filosófico. Elas não se conectam com nenhum problema que nos pareça relevante hoje; elas não nos dizem nada. É por isso que dizemos que elas não têm nenhuma atualidade.

Pois bem, o que acabo de dizer mostra, em contrapartida, que muitas outras passagens têm um interesse atual, precisamente porque nos dizem algo, prendem a nossa atenção, conectam–se com os nossos interesses. E ser atual não é uma coisa diferente disso. Por esta razão, a pergunta pela atualidade de uma filosofia deve ser respondida de forma concreta: ela interpela, de fato, as pessoas no presente? É atual na exata medida em que faz isso, nem mais nem menos.

Filosofia analítica e metafísica

Agora, dando mais um passo, cabe perguntar se as pessoas que ela interpela podem ser contadas entre aquelas que, hoje, fazem filosofia em um nível reconhecidamente elevado. Na minha opinião, a resposta é sim, especialmente no campo da chamada filosofia analítica, dominante em ambientes anglo–saxões. Até a década de 1970, a filosofia analítica era, quase por definição, anti–metafísica, mas as coisas mudaram muito e é quase uma moda em alguns círculos falar de metafísica analítica. As questões mais relevantes para a metafísica clássica, como o problema dos universais, as relações entre causas e seus efeitos, a existência ou não de essências nas coisas, a possibilidade de provar ou não a existência de Deus, ou de provar a sua inexistência (o que não é a mesma coisa), voltaram a ser feitas. Bem, não poucos desses autores encontraram desenvolvimentos filosóficos que são muito valiosos para as suas próprias pesquisas nos autores escolásticos e muito mais entre os escolásticos hispânicos dos séculos XVI e XVII, como Suárez, mas não apenas.

Muito se poderia acrescentar em relação a outras tradições filosóficas, mas isso nos levaria muito longe. Eu menciono apenas um caso. Edmund Husserl , fundador da fenomenologia – uma das principais correntes da filosofia do século passado –, foi “acusado” de propor novamente aquilo que os escolásticos já haviam dito. Era uma acusação, pois seus críticos supunham que a filosofia escolástica era uma filosofia ruim. Husserl respondia mais ou menos da seguinte maneira: “Eu não conheço os escolásticos, mas se você me disser que chegou às mesmas conclusões que eu, estou feliz por isso e merece todo o meu respeito” (não é uma citação textual). Um ponto central na fenomenologia é a noção de “intencionalidade” – um termo técnico que não tem o mesmo significado no castelhano comum. É interessante que Franz Brentano , o mestre de Husserl de quem ele tomou o conceito, afirma explicitamente que é um termo escolástico. E acontece que Brentano começou a fazer a sua tese de doutorado sobre a metafísica de Francisco Suárez, embora, finalmente, talvez por um retorno forçado à fonte, tenha acabado por escrever um texto clássico sobre os sentidos do ‘ser’ em Aristóteles .

Finalmente, gostaria de acrescentar que o caráter “atual” de uma filosofia entendido no sentido que eu indiquei acima não é necessariamente uma prova do seu valor: há momentos em que as obras filosóficas do passado parecem desprovidas de interesse – elas não são atuais, nesse sentido – porque o nível da reflexão filosófica diminuiu ou simplesmente porque foram seguidos caminhos diferentes, não melhores nem piores. Digo uma coisa de forma provocadora: se não tiverem interesse presente, pior para o presente.

IHU On–Line – Suárez é conhecido por ter elaborado um autêntico manual de metafísica de toda a tradição escolástica. Neste sentido, qual é a originalidade da filosofia de Francisco Suárez, especialmente em suas Disputationes Metaphysicae? E quais são os principais e novos problemas abordados na obra?
Santiago Sánchez Orrego – Talvez a palavra “manual” não seja a mais apropriada. Um manual, pelo menos em castelhano, é algo meramente introdutório, mas as Disputationes de Suárez entram completamente no assunto e muito profundamente. Nem mesmo a palavra “síntese” se encaixa completamente. É uma articulação global de toda a tradição escolástica, à maneira de uma enciclopédia que, ao mesmo tempo, é criativa e orgânica e não se limita a compilar.

Costuma–se dizer, e pessoalmente eu concordo, que a originalidade das Disputationes está em grande medida não tanto nos conteúdos, mas no fato de ser a construção de um sistema de pensamento, no sentido de que busca pensar a totalidade de seu objeto de estudo – que, neste caso, é simplesmente a totalidade do real – como uma unidade organizada a partir de princípios que o próprio sistema inclui e se encarregada de validar. Sem que Suárez lhe desse esse nome, com suas Disputationes, ele encontrou, de repente e visivelmente, uma das ideias–chave da filosofia moderna, a ideia de “sistema” como a consumação do conhecimento racional de uma determinada área e, em sua máxima expressão, de toda a realidade.

Por outro lado, na minha opinião, não há dúvida de que nas Disputationes e em todas as obras de Suárez encontram–se elementos muito originais e inovadores quando comparados com as obras filosóficas dos séculos XIII e XIV, com as quais geralmente são comparadas. As teses de Suárez são confrontadas com as de Santo Tomás , Duns Scotus ou Willian de Ockham , em relação com as quais há grandes diferenças de abordagem. Quem salta do século XIV às Disputationes de Suárez depara–se com um mundo novo, mas esse é precisamente o ponto que eu quero destacar: era um mundo, não um indivíduo. Quando se compara a filosofia de Suárez com a de seus antecessores imediatos e a de seus contemporâneos, nota–se que a originalidade encontrada em Suárez é bastante coletiva, de todo o movimento intelectual em que estava inserida. Assim, Suárez, como um pensador individual, é muito autêntico e tem características originais dentro do seu escopo, mas não são tantas como poderia parecer à primeira vista.

De maneira semelhante, a projeção de Suárez na filosofia moderna é muitas vezes exagerada, porque havia muitos outros autores que usavam os mesmos conceitos que Suárez ou outros semelhantes, e que tiveram uma grande difusão. Descartes menciona alguns escolásticos nos quais ele bebeu na sua juventude, como Antonio Rubio e os Conimbricenses , mas não Suárez, embora muito provavelmente o tenha lido. Às vezes, a suposição de que o antecedente determinado de um aspecto da filosofia de um Descartes ou de um Spinoza é Suárez tem sido uma pista ruim, como penso que aconteceu com a noção cartesiana de “realidade objetiva” do conceito. Jennifer Ashworth , na minha opinião, demonstrou claramente que em Descartes opera a ideia do conceito objetivo de Rubio, e não de Suárez. Poderíamos multiplicar os exemplos.

Escolástica

A escolástica ibérica dos séculos XVI e XVII, incluindo aquela que se desenvolveu na América, foi um formidável movimento intelectual e cultural, como poucos na história. Com isso não quero dizer que seja um erro dar a Suárez um grande destaque, como se está fazendo neste congresso da Unisinos, porque ao realçar Suárez, com ou sem consciência, reconhece–se a força e a originalidade do movimento do qual Suárez é, sem dúvida, um dos seus cumes. Talvez se possa compará–lo com o Monte Everest ou com o K2, e considerar que estas montanhas não se assentam no mar ou em um vale, mas no Himalaia.

Novidades na metafísica Suáreziana

Há novos problemas metafísicos abordados em sua obra? Penso que não, se pensarmos nas grandes questões metafísicas, as verdadeiramente relevantes. Por outro lado, se falamos de questões mais específicas, cuja solução nos permite pavimentar o caminho para uma solução melhor ou mais precisa para aquelas outras mais relevantes, certamente podemos encontrar originalidades, relativas ou absolutas. Isso, para mim, tem um significado positivo. O essencial na filosofia – e na vida, talvez – não é ser “original”: a busca de originalidade é uma forma de dependência da opinião dos outros como a face negativa da imitação. O que é verdadeiramente positivo é ser “autêntico”, isto é, dirigir–se por si mesmo, a partir da própria razão que examina as coisas com diligência, sem se preocupar com se o que se encontra é semelhante ou não ao que outros já viram.

É assim que o próprio Suárez explica sua aparente originalidade. Em uma carta a Claudio Acquaviva , Prepósito–geral dos Jesuítas, ele se defende da acusação de correr atrás de novidades dizendo que, na verdade, ele não diz nada de novo, mas que olha para as coisas de novo, a partir da sua raiz, e as expressa a partir dessa perspectiva, e que a partir daí nasce a aparência de novidade: sua abordagem é nova. Eu não penso que seja apenas uma maneira rápida de se desculpar. O que se aprecia em Suárez, ou melhor, uma das coisas que eu pessoalmente mais aprecio em Suárez, é sua lucidez para captar a essência dos problemas, para esclarecer seu significado original, assim como libertando–as da maneira rotineira em que podem acabar sendo transmitidas sem perceber o seu verdadeiro significado, com fórmulas amputadas do pensamento que as cunhou originalmente, cheias de significado. Heidegger tem observações interessantes sobre este preciso perigo de degradação que ameaça toda a tradição filosófica, precisamente por ser uma tradição. Mas a tradição também é fator de progresso.

Juntamente com isso, e de maneira inseparável, considero admirável a independência de juízo que Suárez mostra para escolher a solução que parece mais acertada, independentemente da sua proveniência, e para realizar sua própria síntese, com seu enfoque e nuances próprios, quando lhe parece necessário. Eu reconheço que muitos não aceitam essa apreciação da originalidade de Suárez, mas eu a reitero: a grandeza de Suárez, para mim, está mais na sua autenticidade do que na sua originalidade.

IHU On–Line – Qual é o objeto da metafísica para Suárez? Neste sentido, como se aproxima e se diferencia da tradição medieval e da filosofia moderna?
Santiago Sánchez Orrego – Suárez inscreve–se na tradição aristotélica que assinala como objeto da metafísica o ente enquanto ente. Suárez especifica que se trata do ente enquanto ente real, porque considera que a metafísica não se estende aos chamados entes da razão, isto é, de maneira simples, aqueles que são entes apenas na medida em que o intelecto os produz e considera.

No entanto, não está claro que essa metafísica tenha que se concretizar como uma ciência do ente enquanto ente. Pode–se dizer que a metafísica, mais do que uma ciência do ente enquanto ente, é a ciência que procura conhecer todas as coisas na medida do possível e na perspectiva das suas causas e princípios primeiros mais fundamentais. E como pode haver uma ciência desse tipo? É preciso encontrar um ponto de vista, um aspecto do real, que seja ao mesmo tempo comum a todas as coisas e o mais fundamental de cada uma delas. Somente quando este aspecto for encontrado, a inteligência poderá dirigir um “olhar” unificador, que possa considerar todas as coisas, sem negar suas diferenças. Este aspecto existe? Embora pareça quase uma declaração vazia, o que é comum a todas as coisas e mais fundamental em cada uma delas é que elas são entes. A metafísica, então, deve olhar para as coisas, isto é, para os entes, na perspectiva de seu caráter de entes. É o que significa a expressão “ente enquanto ente”.

Pois bem, o que significa “ente”? Ente – “ens”, em latim, “to on”, em grego, de onde vem a expressão em último caso – é o particípio do verbo ser. Portanto, ente enquanto ente é “o que é”, e ente enquanto ente, por conseguinte, significa “o que é, enquanto é algo que é”. Tudo isso, repito, parece tão vago e vazio que não parece poder constituir uma ciência. Essa objeção contra a metafísica pode ser resumida da seguinte forma: “O que se pode dizer de “o que é”, na perspectiva de que é ‘algo que é’? Pode–se dizer que é, e ponto final. Isso é uma ciência? Ou é uma zombaria?” No entanto, embora não se consiga detalhar isso aqui, é surpreendente ver o quanto esta perspectiva e todas as possibilidades que ela encerra está prenhe de sentido. Isso só pode ser plenamente entendido quando se lê os verdadeiros metafísicos, e Suárez, sem dúvida, é um deles e um dos maiores.

Por enquanto, o “ente” pode ser dito de muitas maneiras. De acordo com uma delas, “ente” significa o que existe atualmente, como a árvore que agora vejo pela minha janela. De acordo com outro desses sentidos, “ente” também é o que pode existir, o que é possível que exista; e isso parece mais básico e mais universal, porque, para que algo exista, primeiro deve ser possível, e há muitas coisas que poderiam existir, mas que ainda não existem e talvez nunca vão existir.

Em qual destes dois sentidos o ente é objeto da metafísica? Suárez considera que é o ente, mas não tanto como o que existe atualmente, mas como o que pode existir. E o que pode existir? Tudo o que não implica uma contradição, um absurdo, o que pode ser pensado como existente. Um círculo quadrado não pode existir: não é um ente. Mas um animal racional pode existir; na verdade, existe, mas a sua possibilidade de existir era algo objetivo mesmo antes que existisse. O círculo quadrado não é pensável, mas um animal racional, sim.

O objeto da metafísica

Nesta linha, se dermos mais um passo, o que Suárez parece estar dizendo é que o ente que é o objeto da metafísica é “o pensável”. Mas isso não implica virar completamente a ideia que nos fizemos em primeiro lugar do “ente enquanto ente”? Já não parece ser “o que é”, mas “o que pode ser pensado”. O projeto original da metafísica era ser uma ciência de todo o real, mas agora parece ter se transformado em uma ciência do pensamento. E isso, certamente, é um giro radical da perspectiva da metafísica. Acrescente a isso o que eu disse anteriormente sobre a metafísica como sistema completo e coerente do ponto de vista da ordem dos conceitos e da sua estrutura como ciência, para compreender quão profunda é a transformação da metafísica que parece encontrar–se na maneira como Suárez a apresenta. Aqui estaria quase consumado o “giro copernicano”, expressão usada por Kant para caracterizar a transformação da filosofia que ele opera na Crítica da Razão Pura.

Embora eu tenha expressado essas ideias de forma um tanto quanto simplificada, elas servem para ilustrar o ponto em que, de acordo com não poucos autores, Suárez, sob a aparência de uma filosofia escolástica tradicional, inaugura algo novo em comparação com a Idade Média e constitui o começo do que seria radicalizado na filosofia moderna em autores como Descartes, Spinoza, Leibniz , Wolff e Kant. Esta é a interpretação de Gilson (e de Heidegger, embora ele se refira a isso de forma mais incidental).

Mas eu gostaria de chamar a atenção para o fato de que esta não é a interpretação unânime que se dá ao significado da metafísica de Suárez. É por isso que, ao descrever a base dessa maneira de entender Suárez, ele sempre usou a palavra “parece”. Há aqueles que situam este giro muito mais para trás na Idade Média, como o professor Ludger Honnefelder , que nos acompanha neste congresso. E há também aqueles que consideram que, quando se olha bem, a metafísica de Suárez é profundamente realista, por mais que busque acessar o real através de uma mediação conceitual muito elaborada. É o que José Pereira e outros autores mais recentes pensam. O objetivo desta elaboração conceitual seria precisamente garantir uma maneira adequada de acessar o real. Pessoalmente, estou mais próximo desta última interpretação.

IHU On–Line – Que relações estabelece entre a doutrina de Suárez e a de Domingo de Soto sobre a causalidade da vontade? Neste sentido, qual foi a recepção Suáreziana das doutrinas de Domingo de Soto?
Santiago Sánchez Orrego – Este é um ponto muito específico, motivo pelo qual me refiro a ele apenas brevemente. Domingo de Soto é um dos mestres mais influentes na Universidade de Salamanca no século XVI, onde Suárez estudou e trabalhou no início da sua docência. Nessa cidade escreveu e publicou suas Disputationes Metaphisicae. Por esse motivo, ele é um autor que influenciou, direta ou indiretamente, a filosofia de Suárez, talvez mais do que o próprio Suárez pudesse dar–se conta, por estar imerso em um ambiente em que as ideias de Soto pairavam no ar. Como eu disse mais acima, ele é um dos antecedentes imediatos de Suárez. Nas Disputationes, Suárez o cita mais de oitenta vezes. Até onde eu pude pesquisar, embora eu possa estar enganado, certamente o conhecimento do pensamento de Domingo de Soto é muito útil para compreender melhor o pensamento de Suárez.

Um desses pontos, sempre de acordo com a minha discutível opinião, é o da relação da vontade e da liberdade com a inteligência, acerca da qual Suárez foi interpretado com traços fortemente voluntaristas. Sua comparação com a filosofia, a perspectiva da análise e da linguagem de Domingo de Soto permite compreender que ele estava muito longe disso; longe de Duns Scotus, muito perto de Tomás de Aquino. O que isso significa, se eu estiver correto? Que na filosofia de Francisco Suárez a vontade depende em grande parte do que o intelecto apresenta como bom e que a bondade da vontade tem como regra absoluta os ditames da reta razão.

IHU On–Line – Ao longo do século XX – e, de certo modo, também hoje – a metafísica sofreu duras críticas e viu sua legitimidade ameaçada. Qual é o sentido de continuar estudando metafísica nos dias de hoje?
Santiago Sánchez Orrego – Muitas coisas podem ser ditas sobre isso. Por enquanto, a forte crítica à metafísica, da qual dependem de alguma forma todas as críticas posteriores, começa com Kant no final do século XVIII. E, em Kant, certamente, podemos encontrar uma negação da possibilidade de uma metafísica realista, transcendente, por assim dizer, muito bem elaborada e de um bom conhecimento da metafísica de seu tempo (o mesmo não vale para a metafísica clássica ou medieval). Kant teria o direito de dizer, com ou sem razão, que ele superou a metafísica no sentido tradicional da palavra. Mas muitos daqueles que vieram depois de Kant limitaram–se a assumir comodamente o resultado e a descansar em que “já se sabe, desde Kant, que a metafísica não é possível”. E isso continua até hoje.

A advertência de Hegel , feita na Ciência da Lógica , mantém sua plena validade: “A filosofia de Kant tornou–se um travesseiro para a preguiça do pensamento”. O que na filosofia de Kant foi um resultado, diz Hegel, agora é assumido sem mais como ponto de partida já adquirido. Mas essa atitude é inaceitável na filosofia. Quem pode legitimamente dizer que superou a metafísica? Apenas quem tomou a metafísica a sério e a examinou a fundo. O contrário se parece muito com a atitude do homem orgulhoso dos grandes avanços da ciência e da técnica, da computação, das viagens espaciais, etc., como se fossem realizações próprias, embora ele realmente não seja capaz de resolver nem mesmo uma equação simples... Uma coisa é “estar sentado sobre os ombros de gigantes”, e outra, muito diferente, é ficar dormindo sobre eles.

De maneira semelhante, há aqueles que desprezam o estudo da metafísica clássica porque preferem contemporâneos, como Heidegger e Derrida , entre muitos outros. Mas o que se encontra nas obras de muitos autores ditos pós–modernos? Um grande conhecimento da filosofia clássica, antiga e medieval, lida em seus idiomas originais.

Além disso, penso que é necessário evitar um erro de perspectiva, que consiste em identificar facilmente toda a filosofia contemporânea com as correntes que trazem mais novidades, aquelas que dão um passo adiante e, assim, pelo menos na aparência, fazem avançar o pensamento (e, em muitos casos, realmente o fazem). Mas por que não podemos chamar de contemporâneos os movimentos filosóficos que hoje estão em continuidade com o anterior, mesmo assumindo aspectos relevantes das correntes mais novas? Atualmente, existem bons ‘cultures’, por exemplo, da filosofia tomista, plenamente conscientes das críticas que precisam enfrentar; existe um forte renascimento da metafísica na filosofia analítica; nunca perdeu a sua continuidade a linha da fenomenologia realista desenvolvida pelos discípulos de Husserl , que, por sua vez, não o acompanharam no giro para o idealismo. Entre os que agora estão nessa linha está Josef Seifert , por exemplo. Kurt Gödel , talvez o maior matemático do século XX, defendia o argumento chamado “ontológico” de Santo Anselmo para provar a existência de Deus... E poderíamos multiplicar os exemplos.

“Essencial é a autenticidade”

Talvez por seu próprio caráter de história, os textos de história da filosofia enfatizam demais a sucessão de inovações e dão pouca visibilidade aos aspectos da continuidade. Reitero uma ideia que propus mais acima: o essencial na filosofia é a autenticidade, e não a originalidade. Dito isto, devo acrescentar que também nas correntes mais rupturistas do passado há, muitas vezes, um pensamento genuinamente autêntico, e que, embora não seja possível dar como um fato a superação da metafísica, tampouco podemos ignorar o fato de que a metafísica foi questionada com bons argumentos. Não se pode superar a metafísica sem conhecê–la, assim como também não se pode dar por superada a crítica sem examiná–la seriamente.

IHU On–Line – Ainda faz sentido estudar a metafísica das Disputationes Metaphysicae de Francisco Suárez? Por quê? Quais partes das Disputationes Metaphysicae são as mais importantes e tem sentido ler atualmente?
Santiago Sánchez Orrego – As partes definitivamente caducas, que talvez têm um interesse puramente histórico, são aquelas que dependem essencialmente de uma física ou biologia definitivamente superadas como explicação de fenômenos concretos. No entanto, eu me atreveria a assinalar que não está claro que, em seus aspectos mais gerais, a física de cunho aristotélico tenha sido superada; ela é, certamente, muito diferente da física moderna, mas é preciso salientar que ela também tem objetivos muito diferentes dela. Muito mais sentido tem ler os aspectos das Disputationes que abordam temas abstratos mediante finíssimas análises conceituais, que podem ser muito iluminadores, mesmo quando não se aceita, finalmente, seu sentido propriamente metafísico. Concretamente quais? A resposta a isso, sem dúvida, depende dos interesses filosóficos do leitor, que podem ser todos muitíssimos e muito legítimos.

Em relação às Disputationes Metaphysicae, acredito que mantêm sua validadade as palavras com que Leibniz, que leu profusamente a obra de Suárez, se refere à filosofia escolástica em geral, em seu Discurso de Metafísica: “Eu estou convencido de que se um espírito exato e meditativo se desse ao trabalho de esclarecer e digerir o pensamento deles à maneira dos geômetras analíticos, encontraria aí um tesouro de grande quantidade de verdades importantíssimas e absolutamente demonstrativas”. ■

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