Edição 511 | 25 Setembro 2017

Suárez para além da conservação ou superação do medieval

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Patricia Fachin | Tradução: Vanise Dresch | Edição: Vitor Necchi

Para Olivier Boulnois, o pensador não rompe com o Renascimento e “beneficia–se da literatura, do pensamento, das descobertas renascentistas” em meio a transição entre Idade Média e Era Moderna

Ao refletir sobre a importância e o alcance do pensamento de Francisco Suárez, o filósofo francês Olivier Boulnois afirma que se trata de “um dos grandes pensadores da escola jesuíta” ainda no início da existência da ordem religiosa que, naquele tempo, acabava de surgir. Suárez também se engajou nos combates intelectuais de sua época, entre eles o direito de rebelião contra os tiranos, a relação entre o Papa e os soberanos e o fundamento do direito natural. “Foi certamente o maior metafísico de sua época”, classifica Boulnois em entrevista concedida por e–mail à IHU On–Line.

Boulnois prossegue em sua análise. No século 19, a obra de Suárez passou por um processo de reedição, “como uma espécie de manual de filosofia tomista”. Nos primeiros 60 anos do século 20, “houve uma desafeição por Suárez porque se queria voltar ao Tomás histórico e se percebeu que Suárez se distanciava dele em vários pontos essenciais”. Até que, nos 40 anos restantes do século, “Suárez começou a ser estudado em si mesmo, e se descobriu toda a sua originalidade e a sua potência positiva”.

Frente à questão se Suárez conserva ou supera elementos da tradição medieval, Boulnois afirma que, na realidade, “a oposição entre a Idade Média e a Era Moderna é uma construção historiográfica de alguns humanistas, mas a maioria dos intelectuais da época ignora isso, e Suárez não adota essa oposição”. Suárez não rompe com o Renascimento e “beneficia–se da literatura, do pensamento, das descobertas renascentistas, mas não tem a consciência de pertencer à Era Moderna, de ter rompido com a Idade Média”.

Olivier Boulnois é um filósofo francês, especialista em filosofia medieval. Defendeu sua tese de doutorado na Universidade de Poitiers. É diretor École Pratique des Hautes Etudes e professor do Instituto Católico de Paris, onde ensina religião e filofosia cristã na Idade Média. Publicou vários livros, entre eles Metafísicas rebeldes – Gênese e estruturas de uma ciência na Idade Média (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2015 – obra lançada originalmente na França pela editora PUF, em 2013), Philosophie et théologie. Anthologie. Tome 2, le Moyen Âge (Paris, le Cerf, 2009 – organização da obra e redação de 12 capítulos), Lire le Principe d’individuation de Duns Scot (Paris, Vrin, 2014) e Au–delà de l'image (Paris: Seuil, 2008).

O entrevistado apresenta a conferência Ser e representação em Suárez no dia 26 de setembro, às 9h, no campus São Leopoldo da Unisinos, dentro da programação do VIII Colóquio Internacional IHU e XX Colóquio Filosofia Unisinos – Metafísica e Filosofia Prática. A atualidade do pensamento de Francisco Suárez, 400 anos depois. Acesse a programação completa.

Confira a entrevista.

IHU On–Line – Qual é a atualidade da filosofia de Suárez, 400 anos depois?
Olivier Boulnois – A meu ver, julgar um autor por sua atualidade é ditar–lhe inconscientemente a nossa atualidade e considerar que somos a medida de todas as coisas. Ora, o que parece mais importante é justamente pararmos de olhar para o nosso próprio umbigo, é ouvir o que um autor tem de mais original e de mais inatual. Qual é a originalidade inatual de Suárez? Ele desenvolveu uma grande especulação que se caracteriza pelo fato de se manter uma escolástica na era moderna.

A escolástica supõe um ensino institucional, universitário, de certas disciplinas (lógica, filosofia, teologia). Para ela, a reflexão filosófica assenta–se numa importante base lógica e busca uma harmonização com a teologia (cristã). Apoia–se nas grandes autoridades da filosofia (a começar por Aristóteles ), elaborando um discurso racional e coerente.

Ao mesmo tempo, Suárez pertence plenamente à época moderna. Foi um dos grandes pensadores da escola jesuíta, ordem religiosa que acabava de surgir e que encontrou um sucesso impressionante. Foi também um autor que se engajou nos combates intelectuais de sua época: o direito de rebelião contra os tiranos, a relação entre o Papa e os soberanos, o fundamento do direito natural, as querelas De auxiliis (sobre a graça e o livre arbítrio) etc.

Cabe assinalar que a escolástica moderna (não somente Suárez) constitui uma base escolar conhecida por todos os grandes filósofos modernos (Descartes , Hobbes , Malebranche , Leibniz etc.) e que, sem isso, passamos ao largo de uma dimensão importante da filosofia moderna. Como essa dimensão permaneceu amplamente inexplorada, o estudo da escolástica moderna deveria revolucionar a história da filosofia moderna. Na verdade, Suárez foi certamente o maior metafísico de sua época (1548–1617). Suas Disputationes metaphysicae influenciaram muito não somente a filosofia, mas também a teologia católica, até mesmo a teologia protestante, mediante a Schulmetaphysik alemã.

Alcançamos agora uma nova fase da compreensão do pensamento de Suárez. No século 19, ele foi reeditado como uma espécie de manual de filosofia tomista. Acreditava–se poder harmonizar São Tomás de Aquino com Suárez: ambos conciliavam supostamente Aristóteles com a fé cristã, e Suárez parecia fazê–lo seguindo o espírito de São Tomás de Aquino. Inversamente, nos primeiros 60 anos do século 20, houve uma desafeição por Suárez porque se queria voltar ao Tomás histórico e se percebeu que Suárez se distanciava dele em vários pontos essenciais (o sentido da analogia do ser, o papel da inspiração divina na ação da graça etc.). Mas, nos últimos 40 anos, Suárez começou a ser estudado em si mesmo, e se descobriu toda a sua originalidade e a sua potência positiva. Para isso, é preciso entender que ele traz respostas aos debates contemporâneos, especialmente aos teólogos espanhóis e portugueses de seu tempo. Estes últimos precisam ser lidos para compreendermos a posição de Suárez! Percebemos, contudo, que ele não é o mais inovador dos pensadores escolásticos.

IHU On–Line – A abordagem Suáreziana sobre o ser conserva elementos da tradição medieval e a supera ao mesmo tempo?
Olivier Boulnois – Na realidade, a oposição entre a Idade Média e a Era Moderna é uma construção historiográfica de alguns humanistas, mas a maioria dos intelectuais da época ignora isso, e Suárez não adota essa oposição. Para um autor escolástico como Suárez, não houve ruptura com o Renascimento. Obviamente, Suárez beneficia–se da literatura, do pensamento, das descobertas renascentistas, mas não tem a consciência de pertencer à Era Moderna, de ter rompido com a Idade Média. São nossos manuais que criam uma ruptura, mas o tempo é contínuo. Assim, Suárez se situa nessa continuidade. Ele recolhe toda a aquisição da escolástica, apoiando–se em Aristóteles, mas também em todos os grandes escolásticos: Tomás de Aquino, Duns Scotus , Ockham , Durand de Saint–Pourçain etc. A partir dessas autoridades, ele constrói de maneira muito delicada sua própria posição, que sempre é sutil e equilibrada, muitas vezes até mesmo diplomática quando se esforça para conciliar autores discordantes.

IHU On–Line – Quais as principais influências de Tomás de Aquino, de Scotus e de Ockhan presentes na abordagem metafísica de Suárez?
Olivier Boulnois – Uma das grandes dificuldades da obra de Suárez é o seu manejo do raciocínio e da autoridade: Suárez apresenta com frequência uma tese filosófica próxima de Scotus ou de Ockham, citando ao mesmo tempo Tomás de Aquino. Isso se explica pela situação institucional: em razão do seu papel de professor nas maiores universidades jesuítas (Valladolid, Roma, Alcala, Coimbra), Suárez tem de manter viva a escola jesuíta, tendo então de responder às objeções de seus contemporâneos (jesuítas, dominicanos ou franciscanos) pela argumentação. Mas precisa também proteger a autoridade do “doutor comum”, Tomás de Aquino. Sua obra tem, portanto, um lado eclético que foge às classificações. É por essa razão que parece impossível dizer globalmente se Scotus, Ockham ou Tomás de Aquino prevalecem em seu ensino. Em todo caso, os três estão presentes. E no que diz respeito ao campo que estudei, o da metafísica, parece claro que Suárez se insere numa problemática de Duns Scotus.

IHU On–Line – Em que consiste a doutrina da metafísica em Suárez e quais são seus principais elementos?
Olivier Boulnois – É justamente por isso que Suárez se insere na linha de Scotus, que levanta uma questão nova, que não era a mesma de Tomás de Aquino: é possível abarcar o ser num único conceito? Essa é a famosa questão da univocidade do ser. Para Duns Scotus, esta é a condição da metafísica como ciência: existe ciência somente se todas as conclusões nela demonstradas se apoiarem em um conceito único. Se o ser não fosse um único conceito, mas vários, não haveria uma relação entre o conhecimento das criaturas e o conhecimento de Deus, ou entre a percepção dos acidentes e o conhecimento da substância, que fosse maior do que aquela existente entre o cão, animal que late, e a constelação celeste do cão. A principal consequência dessa análise é o fato de haver uma ciência universal do ser enquanto ser que precede a ciência particular de Deus, que é um ser dentre outros. Em termos modernos, a ontologia precede a teologia (filosófica).

Em Suárez, isso é mais complexo, mas, estruturalmente, ele admite a ideia de que a metafísica diz respeito ao ser enquanto ser; ela é anterior e fundadora de todo o resto, enquanto o conhecimento de Deus é apenas uma parte dela. Em suma, em suas Disputationes metaphysicae, mesmo citando abundantemente Tomás de Aquino, Suárez defende a ideia de que a metafísica é, em primeiro lugar, uma “ciência geral”, o que denominamos “ontologia”. Assim, ele desvincula Tomás de Aquino da doutrina da participação, segundo a qual todo ente participa do ser conforme a capacidade que sua essência finita lhe dá. Acreditou–se durante muito tempo que o conceito de ontologia derivava de Suárez por ele lhe conferir sua fundação metafísica mais contundente. Mas, posteriormente a outros trabalhos, mostrei que a ontologia emerge de um movimento muito mais amplo, por volta de 1600, e que Suárez é apenas uma peça do quebra–cabeça. A palavra ontologia surge em 1606, na escolástica protestante, num diagrama de Lohrard (que esquematiza o pensamento de Timpler ). Não há referência a Suárez (as Disputationes metaphysicae são de 1597, e a primeira edição “protestante”, de 1605), mas Timpler apoia–se em outro escolástico, Perera. É somente Goclenius , em 1609, que associa a ontologia a Suárez.

IHU On–Line – Em seu livro Metafísicas rebeldes, ao tratar da metafísica medieval, o senhor usa o termo “metafísicas medievais”, no plural. Quais são essas metafísicas? Por quais razões na Idade Média existia uma diversidade de metafísicas? O objeto da metafísica é distinto para os filósofos desse período?
Olivier Boulnois – Em Metafísicas rebeldes , eu quis mostrar a grande riqueza da filosofia medieval. É claro, há uma problemática em comum, a tentativa de tirar uma ciência unificada dos 14 livros de Aristóteles, que recebemos com o título de Meta ta Physika (“depois das realidades físicas”). Mas esta se desdobra em uma vasta diversidade de interpretações, dependendo se a prioridade é dada à ciência de Deus, àquela das causas ou à do ser (para simplificar). Principalmente, pareceu–me que havia famílias de pensamento que respondiam a tipos de matrizes de teses, permitindo mostrar que a história de todas essas metafísicas tinha certa lógica. Mas evito falar do sentido da história: essa sucessão comporta uma parte de acaso, de contingência, que é impossível eliminar. Podemos dizer que novas reflexões dão origem a novas fases da metafísica, mas também que posições mais antigas continuam coexistindo com as mais recentes.

Identifiquei três grandes famílias de metafísicas que correspondem a três modelos: um modelo abertamente teológico, um modelo misto e um modelo transcendental.

O modelo teológico baseia–se tanto nas declarações de Aristóteles quanto na especulação neoplatônica. A ciência principal, na obra intitulada Metafísica, é a “ciência teológica”, que é por excelência a ciência que Deus tem de si mesmo, uma ciência que nos escapa por completo. O neoplatonismo vê nela a culminância da existência humana e associa a ela uma dimensão de exercício espiritual.

O modelo misto assenta–se na doutrina da participação e supõe que todo conhecimento de um ser finito é uma maneira de se aproximar tendencialmente do conhecimento de Deus, ser puro e transcendente. Nesse modelo, a ciência do ser é inseparável de uma abordagem da ciência de Deus e, ao mesmo tempo, Deus está infinitamente além de tudo o que podemos pensar.

O modelo transcendental vê na metafísica a ciência do ente como conceito “transcendental”, isto é, um conceito que transcende todos os limites físicos e gerais, um conceito que pode ser dito de todas as coisas, finitas ou infinitas. Nesse modelo, a ciência do ser é fundamental; ela é anterior e distinta da ciência de Deus. Em troca, este é incluído no alcance do conceito de ser, não podendo mais estar absolutamente além do ser ou além do pensamento.

IHU On–Line – Como surge a oposição entre a metafísica comum (metaphysica communis) e a metafísica especial (specialis)?
Olivier Boulnois – Aqui também o espantoso é que essa evolução ultrapassa os indivíduos. A guinada começa com Henri de Gand (o grande teólogo da Universidade de Paris depois de Tomás de Aquino, no último quarto do século 13), mas continua com Duns Scotus, por volta de 1300, e é objeto de um importante debate entre os pós–scotusistas do século 14 (Pierre d’Auriole, Ockham, Nicolas Bonet). Tenho muita expectativa em relação à edição crítica do Scriptum Metaphysicae de Thomas d’York (por volta de 1260), que já parece tomar esse rumo, mas que é ainda essencialmente inédita.

Henri parte da ideia de que o primeiro conceito que podemos pensar é o do ser. Temos, portanto, uma espécie de metafísica implícita, um conhecimento do ser enquanto ser. Mas a metafísica examina explicitamente esse conceito, postulando que é o primeiro e o mais universal. Existe, pois, uma ciência “transcendental” (transcendens) ou “comum” do ser, anterior ao conhecimento de Deus. Reciprocamente, para pensar Deus, acrescentam–se ao ente propriedades “específicas” (speciales), como, por exemplo, a infinitude, a necessidade de existir etc. É preciso então articular uma ciência comum do ser com uma ciência especial de Deus. Na verdade, Scotus vislumbra essas duas dimensões, mas somente de maneira provisória: se essa hipótese fosse levada a sério, seria necessário dividir a metafísica em duas ciências distintas, a ciência comum e a ciência especial. Porém, Scotus não ousa infringir a autoridade de Aristóteles, que fala de uma ciência suprema única. Até mesmo Suárez faz isso de uma maneira indireta e hesitante. É justamente apenas com a invenção da ontologia na escolástica protestante que a ontologia e a teologia natural podem ser claramente separadas.

IHU On–Line – Ainda em seu livro Metafísicas rebeldes, o senhor diz que a metafísica assume sempre a estrutura de uma onto–teo–logia. Como essa estrutura se manifesta na abordagem metafísica de Suárez?
Olivier Boulnois – Veremos essa questão durante o Colóquio [VIII Colóquio Internacional IHU e XX Colóquio Filosofia Unisinos – Metafísica e Filosofia Prática. A atualidade do pensamento de Francisco Suárez, 400 anos depois]. Digamos desde já que Suárez herda a problemática scotusista (pertencente ao terceiro modelo de metafísica), esforçando–se ao mesmo tempo para ajustá–la à autoridade de Tomás de Aquino (pertencente ao segundo modelo), o que resulta em uma posição extremamente sutil, complexa e, às vezes, desviada.

IHU On–Line – Por que, para o senhor, a metafísica é, de um lado, um exercício espiritual e, de outro, está enraizada em uma reflexão teórica?
Olivier Boulnois – Isso fica muito claro no início da história da metafísica, tornando–se mais implícito depois. Simplesmente, na tradição neoplatônica (operante no primeiro modelo de metafísica), a especulação teórica culmina na união com o primeiro Princípio. Ela prossegue, dizem esses autores, com uma mística ou uma visão de Deus (epopteia). Mas então o que era, desde a Escola de Alexandria , uma progressão na ordem da formação e uma hierarquia das disciplinas filosóficas (ética, física, mística ou epóptica) torna–se a progressão da vida espiritual de acordo com três etapas, as quais se tornarão, de Denis [ou Dinis] a João da Cruz , as três vias espirituais: purificação, iluminação e união. Há, então, um exercício ético prévio à metafísica, mas que ainda opera quando esta se realiza. Fazer metafísica é também trabalhar para transformar a si mesmo.

IHU On–Line – Alguns filósofos identificam nas obras de Duns Scotus, Ockham e Suárez o início da modernidade. Essa afirmação é correta? Especificamente em relação à obra de Suárez, quais suas contribuições para a modernidade?
Olivier Boulnois – A que modernidade nos referimos? Há a modernidade na pintura, sobre a qual mostrei em outro livro que devemos partir da experiência de Brunelleschi , pois ela constitui a verdadeira certidão de nascimento da perspectiva artificial (por volta de 1401). Tem a modernidade em astronomia, da qual a revolução copernicana é certamente um ato de ruptura (por volta de 1543). Do ponto de vista religioso, a ruptura do protestantismo é importante, embora sua data não seja clara (em 1517 ou 1521 a excomunhão de Lutero ?). Mas onde está a modernidade na filosofia? Ao mesmo tempo em que é possível situá–la em áreas epistêmicas precisas, a questão é muito mais difícil em filosofia. Se nos concentrarmos na metafísica, a ruptura da metaphysica generalis é importante e, nesse caso, do ponto de vista estrutural, o momento em que isso se decide é indiscutivelmente a guinada scotista (por volta de 1300). Ockham e Suárez inserem–se nessa estrutura, pois não a questionam fundamentalmente. Mas a denominação vem bem depois, em 1606: é a ontologia... Se nos concentrarmos na parte imersa do iceberg, na estrutura comum, podemos dizer que a articulação entre metafísica geral e metafísica especial reinou de Duns Scotus a Kant . O historiador J. le Goff defendia uma longa Idade Média que incluía a Modernidade até o século 18. Na metafísica também essa longa Idade Média existe.

IHU On–Line – Ao longo do século 20 – e, de certo modo, atualmente –, a metafísica sofreu duras críticas e viu sua legitimidade ameaçada. Qual é o sentido de continuar estudando metafísica nos dias de hoje?
Olivier Boulnois – Cabe ressaltar que a metafísica sofre uma “crítica” desde Kant. Precisamente, a Crítica da razão pura apresenta–se como tentativa de refundar “a filosofia transcendental dos antigos”. Mas Kant não quer abolir a metafísica, ele quer eliminar o que ela tem de dogmático e fundamentá–la de maneira crítica, com base nas condições de possibilidade de nossa experiência. De maneira, às vezes, menos consciente, as empreitadas do século 20 obedecem também a um duplo movimento de destruição e de reconstrução. Heidegger queria primeiramente destruir a ontologia, mas era para reestruturá–la com base em uma analítica da existência; depois apontou a necessidade de superar a metafísica, mas reconheceu que era impossível superar a língua da metafísica. Wittgenstein , no Tractatus, esperava reduzir o uso correto da linguagem aos fatos do mundo e remeter ao indizível tudo o que não pode ser assim enunciado. Mais tarde, porém, ele reconheceu que, justamente, a filosofia se ocupa de tudo o que não é fato, de tudo o que a linguagem não pode dizer (principalmente a estética, a ética, o religioso, a ação). Foi assim que seus discípulos contribuíram consideravelmente para a filosofia analítica, que não tem hoje mais nenhum complexo em abordar questões metafísicas.

De minha parte, tentei abordar nesse livro a metafísica pelo vértice do que Kierkegaard chamava de “comunicação indireta”. Trata–se de fazer com que seja revelada a essência da metafísica mediante as diversas figuras de sua história. Contemplando um quadro de Klee , ouvindo uma suíte de Bach , lendo um poema de Drummond , podemos ao mesmo tempo perceber as formas e o que elas representam, e sentir o invisível que elas nos fazem imaginar (a arte do pintor, a transcendência do ser). Da mesma forma, examinando uma obra filosófica, podemos pressentir a essência da metafísica através de uma fase de sua história. Proponho inverter o movimento de interpretação. Em vez de construir a priori conceitos para submeter a estes os autores e para calcá–los sobre o ser, proponho seguir a paciente lição dos artistas e dos fenomenologistas: deixar que a própria coisa apareça a nós. O leitor, portanto, tem de realizar um ato de interpretação, mas esse ato lhe dá toda a liberdade de aceitar a forma de metafísica que se apresenta a ele como sendo a melhor. Cabe a ele ser fiel à própria forma do modo como ela se depreende do objeto que queremos decifrar. Isso prepara, talvez, para o que chamamos de revelação: uma manifestação que requer nossa interpretação e suscita nossa liberdade. ■

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