Edição 511 | 25 Setembro 2017

No Brasil das crises, a emergência de uma revolução

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João Vitor Santos

Ivan Salomão analisa os limites e potencialidades do nacionalismo varguista como forma de pensar possíveis saídas para as crises econômica e social em que o país está mergulhado

Entre um escândalo político e outro, o atual governo segue defendendo a necessidade de reformas para assegurar a estabilidade econômica. Para o economista e professor da UFRGS Ivan Salomão, já é dado que o Brasil não suporta mais os gastos que tem diante do atual quadro de arrecadação. Para ele, a emergência é pensar modelos de desenvolvimento que não promovam apenas ajuste fiscal, enquanto a área social é posta à míngua. “Me parece que se chegou a um consenso de que nem o mercado nem o Estado, apartados, levarão ao progresso de que tanto se necessita”, aponta. Mas, então, que modelo seria o ideal? O professor não tem resposta pronta. Por isso, na entrevista a seguir, concedida por e–mail à IHU On–Line, analisa o modelo nacional–desenvolvimentista de Getúlio Vargas, que tentou valorizar a indústria nacional sem desconsiderar políticas sociais. “O nacional–desenvolvimentismo cumpriu um papel importante na história do Brasil. Com a honrosa exceção do Japão, o Brasil, encabeçado pelas políticas desenvolvimentistas, foi a economia que mais cresceu durante o século XX em todo o mundo”, recorda.

Salomão explica que Vargas era filiado à “ideia de que o Estado deveria incumbir–se da tarefa de guiar o desenvolvimento”. Entretanto, reconhece que o nacional–desenvolvimentismo teve seus limites, que repercutem até hoje. “Nosso setor industrial é muito pouco competitivo, diversos são os setores econômicos que não sobrevivem sem a muleta estatal”, aponta e acrescenta: “do ponto de vista social, o modelo de desenvolvimento adotado no século XX não logrou incorporar a massa de trabalhadores no bolo”. Assim, antes de pensar em reeditar o modelo varguista, como tentaram governos do PT, o professor defende mais do que reformas, como propõe o governo Temer. Sugere: “a única solução perene e socialmente defensável para a crise é promover uma revolução (e não reforma) tributária por meio da reformulação da política arrecadatória, na qual se elimine o emaranhado de tributos indiretos em benefício de uma estrutura direta e progressiva”.

Ivan Salomão é professor da Faculdade de Ciências Econômicas e do Programa de Pós–Graduação em Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É, ainda, líder do Grupo de Pesquisa (CNPq) "História Econômica e Pensamento Econômico no Brasil" e editor da Revista Análise Econômica – RAE.

Confira a entrevista.

IHU On–Line – Como compreender a gênese do pensamento político, econômico e social de Getúlio Vargas?
Ivan Salomão – Getúlio Vargas era uma figura interessante. Uma boa descrição dessa personagem histórica foi dada por um de seus principais biógrafos: “era sedutor como Oswaldo Aranha , valente como João Neves da Fontoura e culto como Washington Luis ”. Getúlio teve uma formação intelectual sólida. Na Faculdade de Direito, teve contato com os autores clássicos, apesar do ecletismo de suas referências intelectuais. Um dos autores que mais o influenciou foi Saint–Simon , precursor do socialismo dito “utópico”. Tudo isso para ilustrar como a formação de seu pensamento esteve muito bem embasado do ponto de vista intelectual.

Ainda que tenha crescido numa época de hegemonia da ideologia e da política liberais, Getúlio fazia parte de uma geração que, de modo gradativo, passou a romper com os dogmas liberais. Fortemente influenciado pelo positivismo trazido ao Rio Grande do Sul por Júlio de Castilhos , a ideia de que o Estado deveria incumbir–se da tarefa de guiar o desenvolvimento balizou diretamente a sua atuação quando da ascensão aos cargos executivos. O mercado teria tarefa importante, mas a atuação do ente estatal se faria fundamental para se superar o estágio de subdesenvolvimento em que se encontrava a economia brasileira.

Essa concepção também marcou sobremaneira o seu pensamento social. A alcunha de “pai dos pobres” não surgiu gratuitamente. Apesar do empenho significativo do aparelho estatal de propaganda na formação desse mito, toda a política social – da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT ao salário mínimo – esteve diretamente influenciada pela ideia de que caberia ao Estado atuar no sentido de mitigar as diferenças socioeconômicas, atenuando, assim, a ideia de que o mercado alocaria os recursos disponíveis da forma mais adequada, e justa, possível.

IHU On–Line – De que forma este pensamento varguista pode inspirar a refletir sobre as questões de nosso tempo?
Ivan Salomão – De modo consciente ou não, a discussão político–econômica atual está profundamente relacionada ao arcabouço institucional do governo Vargas. O processo iniciado nos anos 1990, o qual voltou muito mais fortalecido em 2016, é a tentativa de desconstruir o legado varguista. Sem entrar no mérito – se foi positivo ou negativo para a história do país – as políticas adotadas pelo governo Temer atentam diretamente contra a ideia de um “Estado demiurgo”, ou seja, do ente responsável por organizar a nação e liderar o processo de desenvolvimento.

Claro que o fenômeno do varguismo esteve limitado ao contexto histórico do século XX, de modo que a tentativa de sua reprodução, nos moldes originais, seria totalmente descabida nos dias de hoje.

IHU On–Line – Quais as potencialidades e limites da perspectiva nacional–desenvolvimentista?
Ivan Salomão – No período entreguerras surgiram, em diversos países, movimentos nacionalistas cuja faceta econômica voltava–se à intervenção estatal em prol do desenvolvimento. O nacional–desenvolvimentismo, porém, foi um fenômeno tipicamente brasileiro, ou talvez, latino–americano.

O nacional–desenvolvimentismo cumpriu um papel importante na história do Brasil, com todos os erros e acertos a ele inerentes. Com a honrosa exceção do Japão, o Brasil, encabeçado pelas políticas desenvolvimentistas, foi a economia que mais cresceu durante o século XX em todo o mundo. O Produto Interno Bruto – PIB brasileiro praticamente dobrava a cada década. O nacional–desenvolvimentismo nos legou uma das maiores estruturas industriais do mundo ocidental, transformou o Brasil num país eminentemente urbano e remodelou a nossa pauta de exportações.

Por outro lado, encerrou diversos problemas os quais não foram resolvidos até os dias de hoje. Nosso setor industrial é muito pouco competitivo se comparado às empresas que operam na fronteira tecnológica. Diversos são os setores econômicos que não sobrevivem sem a muleta estatal, uma realidade que, por sua vez, denota as várias distorções do país da “meia–entrada”. Por fim, do ponto de vista social, o modelo de desenvolvimento adotado no século XX não logrou incorporar a massa de trabalhadores no bolo, fazendo com que uma das 10 maiores economias do mundo permaneça como uma das mais injustas e desiguais.

IHU On–Line – No que o nacional–desenvolvimentismo de Vargas se assemelha e no que se diferencia da lógica desenvolvimentista empregada ao longo da gestão, dita progressista, dos governos Lula e Dilma?
Ivan Salomão – Essa é uma discussão homérica travada entre os economistas. Há analistas que afirmam categoricamente que o segundo mandato de Lula (2007–2010) e os governos Dilma foram uma reprodução malsucedida do nacional–desenvolvimentismo, especialmente do governo Geisel (1974–1979). Por outro lado, há quem afirme, com base em argumentos robustos, que tais governos não foram desenvolvimentistas.

Ao fim e ao cabo, há elementos que se assemelham e outros que distinguem os referidos governos. Observou–se, de fato, um aprofundamento da intervenção estatal, em diversos aspectos, a partir da segunda metade dos anos 2000. Mas a simples intervenção, per se, não caracteriza o desenvolvimentismo. Este, ao contrário do que atestam seus críticos, não se resume à simples intervenção do Estado no domínio econômico, a qual, de acordo com essa narrativa, resulta inevitavelmente em distorções e crise. O desenvolvimentismo é um fenômeno muito mais amplo e complexo do que o simples intervencionismo.

Por outro lado, há uma série de outros indícios que separam os governos do PT do desenvolvimentismo. A começar pelo processo, de cujas consequências deletérias os sucessivos governos não têm conseguido se desvencilhar. Sendo o setor industrial um dos pilares da política desenvolvimentista, não se pode caracterizar como tal uma gestão que viu definhar a indústria sem qualquer reação à altura do problema. A outrora competitiva indústria metal–mecânica da Serra demonstra que sem uma política industrial estruturante, mas ao mesmo tempo comedida, nem mesmo empresas que operam no estado da arte conseguem prosperar.

Além disso, a reprimarização da pauta de exportações brasileira também depõe contra tal argumentação. O que se observou ao longo do século XX foi justamente o contrário: os bens primários (com destaque para o café) cederam paulatinamente espaço para produtos manufaturados e semimanufaturados. Hoje em dia, observa–se a retomada da predominância das commodities agrícolas e minerais na pauta de exportação.

IHU On–Line – É possível conceber um nacional–desenvolvimentismo no nosso tempo? Por quê?
Ivan Salomão – Há diversas correntes teóricas alternativas ao mainstream discutindo essa questão. E assim como se observa em grande parte dos movimentos de esquerda mundo afora, há também subdivisões entre os principais ideólogos: novo–desenvolvimentismo, social–desenvolvimentismo, eco–desenvolvimentismo etc.

A débâcle do governo Dilma colocou esse movimento nas cordas, de modo que retomar a discussão no campo político–eleitoral tem sido bastante difícil. Mas faz–se justo notar que os defensores da adoção de uma nova política desenvolvimentista não incorrem nos mesmos erros do passado. A ideia caricata de uma gestão perdulária, despreocupada com eficiência e produtividade não passa disso, uma caricatura. Atualizou–se o repertório político e ideológico do desenvolvimentismo, de modo que questões contemporâneas – como tecnologia digital, indústria criativa, sustentabilidade ambiental, direitos das minorias etc. – passaram a encabeçar o programa.

Se é possível conceber um nacional–desenvolvimentismo no nosso tempo? Não tenho a resposta exata para essa questão. Mas me parece que se chegou a um consenso de que nem o mercado nem o Estado, apartados, levarão ao progresso de que tanto se necessita.

IHU On–Line – O segundo Governo Vargas pode ser compreendido a partir do conceito de populismo? Por quê?
Ivan Salomão – Trata–se esta de uma falácia amplamente divulgada na literatura e reproduzida pelos meios de comunicação, mas que não encontra amparo nas evidências empíricas. O segundo governo Vargas não se encaixa em nenhum dos modelos teóricos de populismo econômico. A não ser que se queira alargar o conceito, mas de acordo com o que a literatura consagrou como populismo econômico, é simplesmente impossível classificá–lo como tal.

De forma sumarizada, define–se a política econômica populista como a que privilegia o crescimento irresponsável de curto prazo associado à rejeição a políticas de estabilização, desconsiderando a existência de restrições econômicas. Mais especificamente, os modelos populistas caracterizam tais governos pela adoção de uma política econômica instrumental expansionista, especialmente a fiscal, no início dos mandatos. Os dados mostram que o começo do governo foi de um expressivo arrocho fiscal e de comedimento em relação à política cambial.

A crise herdada do fim dos anos 1940 impôs a contenção da atividade econômica temporariamente, estratégia coerente com o diagnóstico de que se tratava de uma dificuldade de curto prazo. O início do mandato, portanto, foi marcado pela adoção de medidas estabilizadoras. Uma vez alcançada parte dos objetivos visados na fase ortodoxa, o governo passou, de fato, a abrandar, a partir do segundo semestre de 1952, o rigor da política econômica, especialmente a política monetária. Essa breve caracterização falseia a hipótese de populismo econômico.

IHU On–Line – No que consiste o pensamento nacionalista e como ele pode incidir sobre os campos político, econômico e social?
Ivan Salomão – O nacionalismo é um fenômeno muito antigo, especialmente na Europa, onde os primeiros estados nacionais se formaram a partir da transição da Idade Média para a Moderna. Na América Latina, trata–se de um fenômeno mais recente, que se fortaleceu quando do início dos movimentos que levariam à independência em relação às metrópoles ibéricas. Ademais, nacionalismo e liberalismo nem sempre se opuseram necessariamente, como viria a ocorrer a partir de meados do século XIX; ao contrário, compunham, naquele momento, as faces de uma mesma moeda. Assim, justamente por se tratar de um conceito de múltiplas acepções, ser nacionalista no século XXI pode se prestar a diversos fins.

Atualmente, o nacionalismo está bastante atrelado à defesa da produção nacional – seja primária ou industrial – e todas as suas supostas consequências positivas (defesa do emprego, da renda e da produção nacionais). Como essa política esteve historicamente associada à proteção alfandegária, quase sempre adotada sem comedimento, hoje se associa o nacionalismo a uma política pouco criteriosa de defesa de setores politicamente influentes. Os maiores prejudicados são os consumidores, pois são obrigados a comprar produtos de conteúdo nacional, quase sempre mais caros e de menor qualidade.
Na América Latina, diversos foram os governos que surgiram, a partir dos anos 2000, com base em uma plataforma nacionalista: Chávez na Venezuela, os Kirchner na Argentina, Morales na Bolívia, Correa no Equador, para ficar nos mais conhecidos.

IHU On–Line – Como compreender o processo de industrialização do Brasil? E no que esse processo explica o atual quadro da indústria nacional?
Ivan Salomão – A industrialização brasileira foi delineada pelo chamado Processo de Substituição de Importações – PSI, novamente, um fenômeno latino–americano. Tratou–se de um processo em que se buscava fomentar a produção nacional de bens que antes se adquiriam no exterior. Mas, diferentemente do que a expressão sugere, não se tratava de fechar o comércio do país com o exterior. Antes, buscava–se oferecer condições à indústria brasileira para competir com a estrangeira. Ou seja, em um primeiro momento, favoreceu–se a importação de insumos e bens de capital para equipar as plantas nacionais a fim de que passassem a produzir para o mercado interno.

A ideia baseava–se em uma tese consagrada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – Cepal , a deterioração dos termos de troca. Em linhas gerais, acreditava–se que os preços dos bens exportados pelos países centrais tendiam a aumentar no longo prazo, ao passo que os dos bens exportados pela periferia tendiam a cair de forma estrutural. A única maneira de sanar o inevitável estrangulamento do balanço de pagamentos decorrente dessa situação seria passar a produzir internamente, e para o mercado interno, aquilo que antes comprávamos do exterior.

Um dos instrumentos nos quais o PSI se baseou foi justamente a proteção tarifária. Adotada de forma pouco criteriosa e comedida, essa política resultou em graves distorções. Ao proteger a indústria nacional da concorrência estrangeira, gerou–se um sistema de oferta deficiente e de baixa produtividade, que se mostrou altamente vulnerável quando da abertura econômica do início dos anos 1990.

IHU On–Line – Qual sua análise sobre a política econômica do Brasil hoje?
Ivan Salomão – Analisar a conjuntura no calor dos fatos não é tarefa das mais simples. Ainda assim, vejo a situação atual à luz da metáfora do copo meio cheio, meio vazio. Em primeiro lugar, parece haver consenso em relação à necessidade de se promover um ajuste fiscal. Como se sabe, dinheiro não dá em árvores, de modo que a expansão fiscal imoderada observada nos últimos anos levaria, em algum momento, à ruína.

Sumarizando: durante quase uma década, as receitas cresceram de forma extraordinária, no sentido de que não se tratava do padrão fiscal brasileiro. Sabia–se que, cedo ou tarde, a situação voltaria à realidade. Ou seja, nesses quase 10 anos, estivemos sob o efeito de uma “morfina arrecadatória”, quando se aumentaram as despesas sem a garantia de que as receitas seguiriam crescendo. A partir da década de 2010, a arrecadação voltou à normalidade, desvendando uma realidade que se traduz na enorme crise que nos acomete atualmente.

Por outro lado, o ajuste promovido pelo governo atual é de uma irracionalidade absoluta e de uma injustiça atroz. Ajuste fiscal profícuo é aquele que segue a lógica do que os juristas chamam de “capacidade contributiva”: quem aufere maior renda/patrimônio, que pague mais ao fisco. Assim, a única solução perene e socialmente defensável para a crise é promover uma revolução (e não reforma) tributária por meio da reformulação da política arrecadatória, na qual se elimine o emaranhado de tributos indiretos em benefício de uma estrutura direta e progressiva.

IHU On–Line – Quais os desafios para hoje se pensar em desenvolvimento aliado a políticas públicas de proteção social?
Ivan Salomão – Na linha do que argumentei anteriormente, apenas uma reformulação total do sistema tributário brasileiro pode tirar o país da crise sem penalizar a imensa massa de desfavorecidos. Não é cortando benefícios sociais dos trabalhadores em benefício de uma elite privilegiada que, proporcionalmente, paga pouco imposto que se tirará o país do buraco.

Políticas que visam ao aumento da produtividade são, naturalmente, bem–vindas. O corte de privilégios que desde sempre reinaram no Brasil faz–se oportuno e necessário. Um sopro de mercado em setores dominados pela politicagem também é fundamental para se vislumbrar o tão sonhado desenvolvimento dinamicamente sustentado.

Ainda assim, nos setores em que a atuação do Estado mostra–se fundamental – como na educação e na saúde básicas – os sucessivos cortes orçamentários só fazem agravar a já precária estabilidade social do país. A diminuição da atividade estatal é bem–vinda em diversas áreas, desde que realizada de forma razoável e socialmente justa. ■

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