Edição 510 | 04 Setembro 2017

A Argentina não dorme

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Fernando Del Corona

História do roubo do corpo de Eva Perón traz memórias e fantasmas da ditadura

Médico (Imanol Arias) prepara o corpo de Evita para o funeral em cena que adquire um ar de sonho – ou pesadelo

Para todas as diferenças e rivalidades entre Brasil e Argentina, existem aproximações inegáveis na história dos dois países sul-americanos, especialmente no século 21. Ambas nações sofreram sob o jugo de governos populistas e regimes totalitários – quando não uma mistura dos dois, como durante o período do Estado Novo no Brasil – e de militares que desestabilizaram o país. Na Argentina, em particular, seis diferentes golpes de estado ocorreram em um período de 50 anos, enfraquecendo o que outrora fora a economia mais poderosa da América Latina.

Uma pessoa em especial estava às voltas da política argentina durante 30 desses anos. Juan Perón, como fora Getúlio Vargas no Brasil, governou o país por dois mandatos entre 1946 e 1955, quando foi deposto por um golpe militar intitulado A Revolução Libertadora. Ele voltaria ainda a ser eleito democraticamente em 1973 e morreu no ano seguinte, deixando no seu lugar sua mulher e vice-presidente, Isabel Martínez de Perón, que, por sua vez, foi deposta por mais um golpe militar que perdurou até 1983.

Depois disso, outra figura se manteve em voga como uma das mais emblemáticas da política Argentina moderna: a primeira mulher de Perón, Eva – ou Evita . A primeira-dama mais famosa do país esteve firmemente ao lado do marido até a sua morte prematura de câncer, em 1952, aos 33 anos – a mesma idade de Jesus, comenta o almirante Emilio Eduardo Massera (Gael García Bernal) na narração que pontua momentos chaves de Eva não dorme, novo filme de Pablo Agüero .

A comparação com Jesus não é em vão: Evita foi adorada pelo povo argentino, idolatrada pelos descamisados – a classe trabalhadora – por sua luta pelos interesses do povo. Antes de sua morte, ganhou do Congresso argentino o título de Líder Espiritual da Nação. É essa figura mística, mais do que uma personagem real e humanizada, que surge nas margens de Eva não dorme. Em tempo: Eva aparece no filme por meio de seu corpo morto, embalsamado, desejado, possivelmente violado, que é interpretado – ou pelo menos incorporado – pela atriz Sabrina Machi. Ela também aparece em inúmeras imagens de arquivo que separam os três capítulos do filme. Mas a verdadeira presença de Evita no longa não é física ou visível – seu corpo é quase uma materialização hipnótica de um ideal divino. Ela é sentida pelo efeito que gerou na nação, no medo que inseria no governo militar – até mesmo morta –, na raiva de Massera que a chama de vadia repetidamente, na devoção dos revolucionários que buscam seu corpo. Sua presença é etérea.

A história de Eva não dorme se passa no período de 1952, quando o corpo de Evita é roubado pelos militares que proíbem o peronismo no país e temem o efeito que ela pode gerar sobre o povo, até 1974, quando finalmente retorna para o seu país, após ter sido enterrada em uma cripta em Milão. Detalhe curioso: depois que o corpo dela foi descoberto em 1971, permaneceu em uma sala climatizada na casa de Perón na Espanha, onde ele cumpriu seu exílio de 1955 a 1973. Ele voltou para a Argentina e se elegeu presidente, mas os restos mortais da ex-esposa permaneceram na Europa. Depois que o político morreu, Isabelita fez o traslado do corpo de Evita para a Argentina. Os detalhes do roubo e do retorno para casa, porém, são mantidos como pano de fundo do filme, que foca diretamente no efeito que a “mãe dos pobres” tinha sobre os argentinos. Em certos momentos, parece mais um filme de fantasma do que histórico.

Agüero separa o longa em três capítulos independentes e devidamente intitulados. O primeiro deles, “O embalsamador”, assume, ainda mais que os outros, um ar de sonho – ou pesadelo. Sob a luz de velas, um médico (Imanol Arias) prepara o corpo de Evita para o funeral. Ele a submerge em um líquido vermelho, as peças de roupa evolvendo-a como se fosse uma múmia. A maneira que ele toca nos pés e nas mãos é acentuada. O momento cronológico em que isso acontece é deixado em aberto. De todos os três capítulos, esse é o que mais se aproxima de um experimentalismo narrativo, e não avança o pouco que se pode chamar de trama do filme.

O episódio seguinte, “O transportador”, é o único que sugere alguma ideia de como o corpo pode ter sido roubado e transferido para outro país, mas também foge de detalhes. O foco principal são os dois homens responsáveis por levar o cadáver, um coronel (Denis Lavant) e um jovem soldado escolhido para ajudá-lo (Nicolás Goldschmidt). Essa história se passa inteiramente dentro do caminhão no qual transportam o corpo. O soldado não sabe nada sobre a carga que carregam, e a disciplina militar o impede de perguntar – mas Evita parece exalar uma força que o chama, inconscientemente. Conforme ele se curva sobre o corpo azulado, Evita parece mais uma bela adormecida esperando pelo beijo que vai acordá-la.

O momento central desse episódio é uma conversa entre os dois na traseira do caminhão, estando entre eles a caixa contendo o corpo. A cena é filmada em um impressionante plano único, em que a câmera se afasta lentamente conforme o dia clareia pela janela. A atmosfera sexual que ronda o cadáver parece influenciar o ambiente, conforme os dois militares bebem, se desafiam e comparam seus corpos feridos. Apoiada por uma sólida performance dos atores, esse é o melhor capítulo da história, ainda que não tente explicar as minúcias de como ocorreu o transporte – novamente, o que importa é o efeito que o corpo de Evita gera no país e naqueles que o cercam.

O segmento final, “O ditador”, conjectura sobre o possível desenrolar de um acontecimento real: o sequestro do general Pedro Eugenio Aramburu (Daniel Fanego) pelo grupo peronista Montoneros – novamente, nomes e detalhes são deixados para familiarizados com a história argentina, nada é explicitado para desavisados. Mais uma vez a trama se passa em um único ambiente, o espaço subterrâneo onde o general foi mantido e interrogado sobre o paradeiro do corpo de Evita. Ele escuta a notícia da própria morte anunciada no rádio que ouve através das tábuas do cativeiro. A única chance do seu próprio corpo ser descoberto é se ele revelar o que sabe sobre o roubo do cadáver da ex-primeira-dama, mas, como é de se imaginar em uma situação dessas, uma única pessoa nunca tem todas as repostas.

Os três episódios funcionam bem independentemente e são intercalados com as cenas de arquivo que contrastam o clima de sonho do filme com a realidade bruta das filmagens. Ainda assim, o resultado final é insatisfatório para quem não conhece a história contada. O filme é eficaz em sua proposta experimental de recriar o efeito quase religioso que Evita – e o seu corpo – teve em sua nação, mas para quem busca algum tipo de aprofundamento na história do país e da própria Eva, não existe resposta no longa-metragem.

O filme, no entanto, não precisa dar respostas para aqueles que desconhecem a história. A figura de Evita é muito importante para os argentinos, assim como a história dela. A arte de um país é uma das maneiras possíveis de lidar com seus fantasmas e seu passado, e isso Eva não dorme faz. Não à toa, a ditadura é tema recorrente no cinema argentino – em 1985, A história oficial, de Luiz Poenzo, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, e, mais recentemente, filmes como O clã (2015), de Pablo Trapero, e O segredo de seus olhos (2009), de Juan José Campanella, ainda que não tratem diretamente sobre a ditadura, mostram o efeito que ela teve em sua população e como suas marcas perduram, mesmo depois de seu término.

Apesar das semelhanças entre os dois países, a relação da Argentina com o período da ditadura militar difere do que acontece no Brasil: não existe um virar de costas para a própria história. Claro que há brasileiros que denunciam a arbitrariedade e os crimes cometidos a partir do golpe de 1964, no entanto, a elucidação dos fatos relativos aos 21 anos de ditadura não foi tratada com determinação pelo país – basta ver que os arquivos do período seguem inacessíveis e que familiares dos desaparecidos não tiveram o direito de enterrar seus entes. De maneira distinta, o país vizinho vem enfrentando os horrores do passado. As avós e as mães da Praça de Maio incessantemente mantêm viva a memória dos mortos e desaparecidos – mais de 30 mil entre 1976 e 1983. Militares continuam sendo julgados e condenados. Existe um acerto de contas com o passado. Eva não dorme leva isso adiante, honrando uma memória nacional e mostrando o fantasma que paira sobre o país, uma história que não permite ser esquecida.

Ficha técnica

Eva não dorme
Título original: Eva no duerme
Direção: Pablo Agüero
Produção: Jacques Bidou, Marianne Dumoulin, Vanessa Ragone
Elenco: Gael García Bernal, Imanol Arias, Denis Lavant, Nicolás Goldschmidt, Daniel Fanego
Argentina, 2015, 85 min.

Assista ao trailer em português

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