Edição 510 | 04 Setembro 2017

Perfil - Elogio ao tempo perdido

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Lara Ely

Maura Corcini Lopes, professora e decana da Escola de Humanidades da Unisinos, valoriza os momentos de ócio como atos de resistência do pensamento

Foto: Juliana Borgmann / Unisinos

O valor do não dito tem um preço alto para quem dedicou a vida a estudar a surdez. Pelo viés da educação inclusiva, a decana da Escola de Humanidades Maura Corcini Lopes fecha um semestre à frente do cargo e já sente na rotina o peso da responsabilidade. Na pele de uma mulher que concilia os cargos de chefia, docência e pesquisa à vida pessoal, ela coloca em perspectiva a criação de espaços de ócio na rotina para fazer a “resistência do pensamento”. Sem isso, não há inovação, defende. No seu caso, o desafio extra é cumprir as mil e uma tarefas e conseguir zelar pela sala de aula como templo do conhecimento, da democracia e da relação de troca de saberes.

Dez anos após conceder entrevista ao IHU pela primeira vez, a professora segue lecionando com a mesma devoção do início da carreira. À frente do Grupo de Pesquisa em Inclusão, criado por ela em 2002, mas formalizado em 2006, ela vive rodeada de bolsistas de iniciação científica, mestres, doutores e pós-doutores. Ao vivo ou por Skype, eles se encontram todas as quintas-feiras e discutem sobre deficiência, gênero, raça e outros tipos de preconceito.

Os pupilos da decana são multiplicadores de uma bandeira levantada por ela desde 1998, quando entrou na universidade para cursar o Mestrado. Naquela época, o grupo atuava na informalidade, se dedicava à inclusão pelo olhar do cinema. A presença da professora Eli Fabris, anos mais tarde, o intercâmbio com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e os novos projetos deram sustância à produção do grupo.

“Elas trazem seus olhares externos como pesquisadoras em programas de pós-graduação em vários locais do Brasil, e com isso, multiplicam a inclusão. Eu trabalho com a deficiência auditiva. Mas tem pessoas que pesquisam a pobreza, etnia, gênero. Tem uma variedade de desdobramentos que são típicos da contemporaneidade. É um grupo de tentáculos que busca entender como podemos qualificar a vida desses coletivos que acabaram, de alguma forma, à margem da sociedade”.

O tema não podia ser mais atual. Na paradoxal era da Revolução 4.0 e, ao mesmo tempo, da exclusão tecnológica, da fome e dos repatriamentos, o tempo dedicado ao outro é cada vez mais escasso. “Cada um tem que se ocupar do gerenciamento e da promoção de si mesmo, atuando como sujeito S.A., e pouco se dedica ao exercício da empatia”. O problema disso, segundo Maura, é que nem todos possuem repertório para se afirmar no ringue cotidiano de nossas competitivas sociedades.

Sala de aula: refúgio de acolhimento

À beira da máquina de costura da mãe, em Santiago do Boqueirão, cidade vizinha de Santa Maria, ela costumava conversar com as clientes que encomendavam roupas. Certa vez, a filha de uma delas, que estudava Educação Especial na Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, presenteou-lhe com uma coleção de livros, que ela levaria como companhia de férias. Aquele compilado de palavras sobre psicologia, psiquiatria nunca saíram do imaginário da pequena Maura. Pelo contrário: foram decisivos para ela optar pela Educação Especial, em vez da Pedagogia Clássica. Mal sabia que se tratava apenas do aperitivo para o que, anos depois, viria a ser o alimento do seu cotidiano.

Passados 19 anos de Unisinos entre docência, gestão e pesquisa, Maura não se entregou ao conservadorismo de um posto acadêmico. Pelo contrário: a constante atualização e o contato com a pesquisa no campo das Humanidades faz com que ela consiga ser, em discurso e prática, o próprio refúgio de acolhimento que propõe.

Para isso, seu dia começa cedo: às cinco da manhã está de pé revisando afazeres, organizando a agenda, planejando as atividades. Embora sua sala fique junto à Reitoria, passa a maior parte do tempo interagindo com professores, alunos e funcionários.

“A mulher multitarefa não vem de hoje. Nós só agregamos tarefas a uma rotina que é histórica. Quando vem para cá (universidade) só soma. Essa ideia do cuidado faz parte do nosso jeito, e eu não gostaria de perder isso. É típico do feminino, e para ganhar outros espaços eu não abro mão de manter esse cuidado – é o que nos diferencia.”

Esse olhar afetuoso que remete ao outro é um dos diferenciais de Maura no grupo composto por seis decanos, todos entre 30 e 50 anos, metade homens, metade mulheres. Seu papel é garantir a interlocução entre professores e alunos e os gestores da instituição, assim como se integrar com as demais escolas da universidade. Segundo ela, a escolha dos decanos não é associada ao tempo de vida ou de instituição, mas ao perfil.

“Estou aqui para garantir a melhor experiência de aprendizagem, mas não aceito que nós, professores, sejamos taxados de mediadores do conhecimento. Professor é professor, mudar esse conceito é diminuir a nossa tarefa”, argumenta a professora de 45 anos.

Ilhas de fruição para a vida

Em tempos utilitaristas, onde a produtividade e a necessidade de atualização constante fazem com que os alunos cheguem à universidade com muita bagagem e pouca disposição para refletir, ela defende o lugar da sala de aula como um templo do aprendizado, o qual caracteriza como uma espécie de ilha para ancorar o conhecimento.

“Quando você recorda de ter feito algo que não seja útil? Com esse sujeito tão atarefado e digital, como eu vou mobilizar o pensamento? Para mim, é na colaboração e troca com o outro que se dá esse avanço.”

Subverter essa lógica cotidiana de correria consiste em criar “ilhas de fruição para a vida”. São momentos que aumentam o repertório, dão sentido ao que se faz no mundo profissional, e mais: nutrem de forma criativa as ações no campo das ideias.

“Ninguém mais tem tempo para ler um livro, ir ao cinema, caminhar ao acaso. Com isso, as pessoas estão perdendo o tempo para pensar a vida. Acho que devemos fazer um movimento de contraconduta, para proteger o direito ao ócio. Daí vem o repertório para desempenhar o papel de improviso que é estar em sala de aula (...). Quanto mais saberes você tem, mais preparado você está na sala de aula. Os saberes inúteis enriquecem nosso repertório para a intelectualidade. A filosofia não serve para alguma coisa, mas instrumentaliza para pensar a vida”, ensina. ■

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