Edição 510 | 04 Setembro 2017

Quatro sintomas sociais dos gaúchos

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Jaime Betts

O psicanalista Jaime Betts, em parceria com a professora Sinara Robin, foi um dos organizadores do seminário NósOutros Gaúchos – as identidades dos gaúchos em debate interdisciplinar, que deu origem a um livro homônimo (Editora da UFRGS). Os encontros, realizados em 2015, reuniram profissionais de diferentes áreas que apontaram questionamentos sobre quem são os gaúchos e como se relacionam.

No artigo aqui publicado, retoma alguns dos temas tratados no seminário. Afirma que, “levando em consideração que conflito é da condição humana, a questão que se põe para uma determinada comunidade cultural é a de como procura solucionar os mesmos”. O resultado, escreve, “são as melhores ou piores soluções encontradas, soluções de compromisso denominadas na psicanálise de sintomas sociais”.

No caso específico do Rio Grande do Sul, os sintomas sociais são muitos, mas o psicanalista destaca quatro: a dificuldade histórica de se inserir e de se relacionar politicamente no contexto nacional e na geopolítica internacional; o complexo de caranguejo invejoso; um narcisismo galopante; um reducionismo identitário mitificante e conservador.

Jaime Betts é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA. Foi diretor executivo do Instituto APPOA – clínica, pesquisa e intervenção em psicanálise (2012-2016).

Eis o artigo.

As questões de quem são os gaúchos e como se relacionam precisam necessariamente ser debatidas em uma perspectiva interdisciplinar. É o que procuramos fazer no seminário NósOutros Gaúchos – as identidades dos gaúchos em debate interdisciplinar, que resultou no livro NósOutros Gaúchos – as identidades dos gaúchos em debate interdisciplinar (Ed. UFRGS) .

Buscar respostas no debate interdisciplinar levado a cabo ao longo do projeto implicou pautar o mesmo por quatro princípios: nenhuma disciplina da conta do todo; não há hierarquia entre as diferentes disciplinas; ninguém é dono da verdade; o real é impossível de simbolizar. Se estes são princípios necessários para a fecundidade do trabalho interdisciplinar, se caracterizam de especial importância quando o assunto é quem são os gaúchos e como se relacionam, como se pode depreender pelo que segue abaixo. Recomendo a leitura do livro, pois traz uma abordagem múltipla muito rica.

Levando em consideração que conflito é da condição humana, a questão que se põe para uma determinada comunidade cultural é a de como procura solucionar os mesmos. O resultado são as melhores ou piores soluções encontradas, soluções de compromisso denominadas na psicanálise de sintomas sociais.

Os sintomas sociais do Rio Grande do Sul são muitos, mas menciono aqui apenas quatro, que abordarei em seguida numa perspectiva histórico-psicanalítica:

1. a dificuldade histórica de se inserir e de se relacionar politicamente no contexto nacional e na geopolítica internacional;
2. o complexo de caranguejo invejoso;
3. um narcisismo galopante;
4. um reducionismo identitário mitificante e conservador.

Começarei pelo último, o reducionismo identitário. O gentílico gaúcho – que identifica os nascidos no Rio Grande do Sul ou que o adotaram como sendo seu lugar – é um reducionismo metonímico que toma a parte pelo todo, ou seja, o todo é reduzido a uma de suas partes. As identidades dos gaúchos e das gaúchas são múltiplas, oriundas de muitas etnias e culturas que compuseram historicamente quem somos hoje. Elas não se reduzem à identidade do gaúcho pilchado da campanha ou das prendas e seus vestidos rodados, conforme defendido pelo folclorismo conservador dominante difundido pelos meios de comunicação. Esse reducionismo é empobrecedor, pois exclui a potencial riqueza de uma diversidade cultural em condições de um diálogo construtivo entre os diferentes interesses políticos em jogo no estado.

Outro exemplo de mito reducionista de tomar a parte pelo todo é considerar que o Rio Grande do Sul é terra dos pampas. Não é! Tomamos de empréstimo dos hermanos argentinos a paisagem pampiana. A paisagem do estado se caracteriza pelo planalto sul-rio-grandense ao sul e o planalto meridional ao norte, com uma geodiversidade e biodiversidade maiores que a pampiana, como o geólogo Rualdo Menegat expôs num dos encontros do projeto. O território que se assemelha ao pampa argentino é uma estreita faixa de terra que se vê ao seguir pela BR-290 entre Porto Alegre e Uruguaiana. Perguntas de psicanalista: por que tomar como nossa uma paisagem emprestada de outros? Por que reduzir nossas identidades culturais a uma apenas, idealizada e normatizada pelos manuais do movimento tradicionalista? E com que consequências sociais, políticas e econômicas?

O terceiro dos sintomas sociais referidos acima é o do narcisismo gaúcho galopante, que tem várias manifestações. O Hino Rio-grandense, conhecido de cor e cantado em brados retumbantes nos eventos públicos pela maioria dos gaúchos, comete a insensatez de propor que nossas façanhas sirvam de modelo a toda terra. Por que tanto orgulho de ser gaúcho? Para que tanto? E por que cantar o Hino Rio-grandense se sobrepondo ao Hino Nacional, como tem acontecido em eventos esportivos?

A primeira leitura do fenômeno a ser considerada é que tanta exaltação narcísica procure ocultar um complexo de inferioridade, de exclusão e ressentimento pela falta de reconhecimento pelos outros ‘de nossas façanhas servirem de modelo a toda terra’. Tomemos três aspectos históricos mais ou menos esquecidos de nossas origens. Primeiro, mencionado acima, o que hoje é nosso gentílico ‘gaúcho’, no passado designava um personagem nômade, marginal, bandoleiro, sem-teto e sem-terra, que sobrevivia se alimentando de gado solto no campo e, posteriormente, trabalhando como peão e soldado para a oligarquia pecuarista dos senhores da terra e da guerra.

Segunda leitura: outro fato histórico é que a oligarquia pecuarista gaúcha se ressentia de servir como economia subsidiária no fornecimento do charque à oligarquia paulista dominante no Império, que queria alimento barato para seus escravos nas fazendas cafeeiras. O Império, por sua vez, impunha altos impostos à importação dos insumos necessários à produção do charque, o que beneficiava os preços daquele produzido pelos nossos hermanos uruguaios e argentinos, que, além disso, era de carne de melhor qualidade.

Foi este o contexto sócio-político-econômico que desencadeou a revolta farroupilha de 1835 a 1845. Guerra perdida para o Império, mas cuja história é contada pelos vencidos, ressaltando apenas seus feitos heroicos. Cabe lembrar que durante muitas décadas, após seu término, o conflito era motivo de chacota, pelo menos em Porto Alegre, que resistiu aos farroupilhas e ganhou por isso de dom Pedro II, em 1841, o título de mui leal e valerosa, em virtude do seu posicionamento a favor do Império, expulsando a invasão dos rebeldes e resistindo a três cercos posteriores. Ironicamente, a Semana Farroupilha é comemorada anualmente em Porto Alegre, esquecida de seu lado da história.

Terceira leitura: somado a isso, o ressentimento da oligarquia pecuarista pela falta de reconhecimento político e de atribuição de importância por parte do Império (sobretudo da oligarquia paulista dominante) de que a conquista da terra, definição e defesa das fronteiras do que hoje é o RS foi feita a ferro, fogo e sangue pelos senhores da guerra e seus peões.

Abordamos aqui o contexto histórico do primeiro sintoma social mencionado acima – a dificuldade histórica de se inserir e de se relacionar politicamente no contexto nacional e na geopolítica internacional. Com a exceção do senador gaúcho José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915), que foi um dos mais influentes políticos no cenário da República Velha (1889-1930) e que morreu apunhalado pelas costas no Rio de Janeiro, pouco tivemos uma presença efetiva de articulação política de inserção dos interesses do estado no cenário nacional. Muitos gaúchos se tornaram políticos importantes, como Getúlio Vargas, mas este, contrariando as expectativas de seus conterrâneos, levou adiante uma política de modernização industrial do país e de inserção no cenário internacional. E o Rio Grande não subiu no trem desse projeto político com ele e ficou marcando passo, queixoso e ressentido.

A tônica histórica do posicionamento político do estado gaúcho, seguindo a temática separatista farroupilha, é de um ensimesmamento, fechado em si mesmo, com a arrogância da ilusão de autossuficiência. Ou então, de procurar o poder federal com o chapéu na mão – como faz nosso atual governo estadual –, sem procurar decididamente construir uma articulação política com os demais governos estaduais para fazer valer a defesa dos interesses do Rio Grande do Sul em conjunto com os demais. Por exemplo, no combate à Lei Kandir, que sangra as divisas do estado oriundas das exportações. Nesse sentido, a miopia narcísica-política limita a visão do potencial que a atual posição geopolítica traz para o estado tanto no cenário nacional quanto no internacional.

Aqui temos o segundo dos sintomas sociais mencionado no início: o complexo de caranguejo invejoso. É comum ouvirmos a expressão de que a ‘caranguejada’ foi contra essa ou aquela iniciativa, mais por ser do contra que por outro motivo razoável. A anedota lembrada pela expressão acima é de que por aqui a cesta com os caranguejos não precisa ser tampada para evitar que os mesmos saiam, pois, assim que um começa a subir, vem outro e o puxa para baixo. A inveja não tolera que o outro se realize, pois o ressentimento do invejoso do contra se origina em sua incapacidade de lutar positivamente pelo que deseja.

A dificuldade de se chegar a um consenso por estas bandas, de fazer as coisas acontecerem, é um dos poucos consensos locais e nacionais. Fala-se do grenalismo, uma rivalidade muitas vezes passional e intolerante que facilmente descamba para a violência. Historicamente, disputas políticas ou diferenças de opinião eram resolvidas na base da faca. No traumático episódio da guerra civil, chamada de Revolução da Degola – a Revolução Federalista de 1893 –, o solo gaúcho ficou encharcado de sangue, ódio e ranger de dentes.

Trata-se de um ódio mal resolvido que é facilmente reativado pelos conflitos sociais, gerando mais ódio e intolerância. A violência de Estado se repete em nossa história recente com a brutal expulsão pela Brigada Militar da ocupação pelo movimento dos Lanceiros Negros de um edifício público estadual em Porto Alegre. O prédio estava desocupado e sem função há oito anos, e nele estavam morando muitas famílias. Uma total falta de diálogo e de negociação política do Estado, e de visão histórica, pois repete com violência em outros termos o famigerado episódio de traição dos generais farroupilhas, que desarmaram os lanceiros negros – que haviam dado seu sangue pela revolução em troca de sua liberdade e foram chacinados.

Logo se vê o tamanho do desafio que nossos sintomas sociais colocam. E, ao mesmo tempo, vislumbramos o potencial de crescimento que toma consciência da pluriculturalidade que caracteriza quem somos e de como podemos nos relacionar melhor no Rio Grande do Sul, implementando políticas públicas de inclusão, de disposição ao diálogo com as diferenças e de articulação efetiva com os demais estados da União. Recomendo novamente a leitura do livro para um debate interdisciplinar amplo de nossas questões e desafios.■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição