Edição 509 | 21 Agosto 2017

A fúria de Dunquerque

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Fernando Del Corona

Épico de guerra de Christopher Nolan assume riscos e aposta na intensidade constante

Entre os diretores de cinema que surgiram nas últimas décadas, Christopher Nolan pode ser considerado dos mais bem-sucedidos junto de nomes como David Fincher ou Wes Anderson, e, é possível, o que melhor equilibrou sucesso comercial e de crítica, gerando comparações por vezes hiperbólicas como um “novo Stanley Kubrick”. Independentemente de se concordar com essa glorificação de seus filmes, é inegável sua importância como um grande diretor contemporâneo, um dos poucos que mobiliza orçamentos e bilheterias enormes através do seu nome – ainda que sua carreira não esteja imune a falhas, como Batman: O cavaleiro das trevas ressurge (2012), o terceiro filme da sua trilogia sobre o homem-morcego. Para um diretor de tamanho cacife e com projetos tão ambiciosos, não é surpresa que cada um dos seus novos filmes seja esperado com muita expectativa e analisado com mais minúcia do que a maioria dos outros. Como é de se esperar, isso leva a muitas opiniões destoantes e acaloradas. É o caso de Interestelar (2014) – para uns, uma reflexão profunda sobre o tempo e o papel do homem na Terra; para outros, um amontoado de ideias mal desenvolvidas que representa o pior de Nolan – e agora com sua obra mais recente, Dunkirk.

Em todos os aspectos do filme, pode-se encontrar opiniões totalmente diferentes e igualmente intensas. As atuações, a história, a trilha sonora, a estrutura ou o realismo, por causa disso tudo o épico de guerra de Nolan é um filme altamente divisivo, e não é difícil entender por quê. O diretor assume escolhas que tiram o filme do lugar comum, enquanto mantém elementos que o estabelecem como um filme marcadamente seu. O resultado é intenso em diversos sentidos.

Para os familiarizados com a Segunda Guerra Mundial, a história não deve ser novidade: em 1940, tropas inglesas, francesas e belgas se viram encurraladas pelo avanço do exército alemão na costa de Dunquerque (este é o nome da cidade, que curiosamente foi mantido em inglês no título brasileiro), na França. As tentativas de resgate para a Inglaterra eram frustradas por ataques aéreos e marinhos e pela falta de navios para levar os mais de 300 mil soldados presos na praia sob constante bombardeio. A história já fora contada diversas vezes no cinema. A versão mais famosa, O drama de Dunquerque, foi dirigida por Leslie Norman em 1958, e, mais recentemente, em elegante plano sequência, em Desejo e reparação (2007), de Joe Wright. Fica a sensação, porém, que a versão de Nolan será a mais lembrada.

Imagem: Divulgação

A história é dividida em três tramas devidamente marcadas por títulos em tela, que se passam em períodos diferentes de tempo e que se intercalam e encontram em momentos distintos: uma semana na praia, de onde dois jovens soldados (Fionn Whitehead e Aneurin Barnard) tentam fugir a todo custo e atravessar o Canal da Mancha; um dia em um dos mais de 800 barcos civis que foram ao resgate dos soldados – chamados na Inglaterra até hoje de “Os pequenos barcos de Dunquerque” – comandado por Dawson (Mark Rylance), seu filho Peter (Tom Glynn-Carney), e o amigo deles, George (Barry Keoghan); e uma hora nos céus conforme os pilotos Farrier (Tom Hardy) e Collins (Jack Lowden) manobram seus aviões Spitfire contra os ataques da força aérea alemã.
Utilizar narrativas temporais complexas não é novidade para Nolan. Em Amnésia (2000), a história se desenrola de trás para frente, refletindo o problema de falta de memória do protagonista. Em Interestelar, o tempo passa de modo diferente dependendo de onde os personagens se encontram, de maneira que algumas horas em um planeta podem representar dias em uma nave em sua órbita. É em A origem (2010), porém, que se encontra o paralelo mais próximo nas distorções e alongamentos temporais que ele faz aqui, com alguns minutos em uma trama durando o mesmo que horas em outra.

O uso desse artifício em Dunkirk traz vantagens e desvantagens. Ainda que criativo e ajude a reforçar os diferentes tempos da guerra – a luta frenética de uns versus o pesadelo repetitivo e interminável de outros –, no filme acaba por resultar em certos desencontros de tom e ritmo. Por mais que o título diga que se passou uma semana em uma das tramas, parece que transcorreram no máximo um par de dias. E cortes súbitos de uma intensa luta aérea para o tempo morto dos jovens na praia, ou da noite para o dia, podem gerar certos solavancos narrativos – e, ainda que não comprometa o resultado final, é um dos defeitos do filme.

A trilha sonora de Hans Zimmer, frequente colaborador de Nolan, porém, consegue manter a coesão dramática e a tensão ao longo da duração da história. Menos interessado em melodias dramáticas, usadas com parcimônia apenas em momentos chave, e sim no ritmo da batalha, a música parece mais um apanhado de sons que se misturam com as explosões das bombas e as sirenes dos bombardeiros Stuka – criadas com o propósito de apavorar os inimigos em terra, o que, como se vê aqui, funciona perfeitamente. O fio condutor, porém, é o tique-taque de um relógio sempre ao fundo, constante e onipresente. Às vezes mais rápido, às vezes mais lento, mas, excetuando poucas exceções estratégicas e muito notáveis, sempre presente. Esse tique-taque dá ritmo à tensão constante, crescente, opressora.

As três tramas avançam de maneira a se encontrar em um momento crucial. Em terra, o clima é de pesadelo, marcado pela impotência e a repetição. O comandante Bolton (Kenneth Branagh, representando, como sempre, o máximo da elegância do gentleman inglês), o mais alto oficial responsável pela evacuação, olha com desespero conforme barco após barco é afundado, seja pelos submarinos alemães ou pelos bombardeios aéreos que também ameaçam as centenas de milhares de jovens presos na praia. Nolan se inspirou em filmes mudos para filmar as cenas de multidão – o filme é notadamente enxuto em seus diálogos –, acentuando os movimentos em massa, a unidade dos soldados como um grupo só.

Existe pouco desenvolvimento dos personagens, efetivamente. O maior deles acontece na trama do mar, onde Dawson resgata um soldado (Cillian Murphy) em estado de choque e que se recusa a voltar para Dunquerque, aumentando as tensões no pequeno barco, mas, no geral, os personagens são entendidos como significantes de um todo maior. Os jovens desesperados querem fugir da praia a qualquer custo, mas pouco se sabe sobre cada um. Eles funcionam para representar todos os outros em posição idêntica. Da mesma maneira, Farrier e Collins são destemidos e heroicos, mas suas personalidades não passam muito além disso. Não é um filme de personagens, e sim de ações e sensações. A guerra é percebida a partir do conjunto, não do pessoal.

O mesmo distanciamento se aplica aos alemães: sua presença é sempre sentida através de sons, explosões, tiros ensurdecedores, mas eles nunca são realmente vistos. Vemos seus aviões, vemos suas balas acertando soldados, mas as únicas vezes que eles aparecem em cena estão distantes ou fora de foco. Eles também são representantes do pavor que cerceava os aliados em Dunquerque, uma força aparentemente incansável e imperdoável.
Esta apresentação do inimigo como um assassino anônimo, ainda que fazendo sentido dentro da lógica do filme, é apenas um sintoma de uma das falhas mais apontadas no filme: seu interesse puro e absoluta na história do ponto de vista dos ingleses. Não existe dúvida: essa é uma história sobre ingleses, por ingleses, para ingleses. É possível apontar os raros momentos em que os franceses aparecem na história, que parece ignorar que quase um terço dos resgatados eram franceses, ou os mais de 40 mil soldados que impediram o avanço dos alemães em terra. Eles são vistos de vislumbre, ou fala-se sobre, mas em grande parte sente-se que se conta uma história inglesa.

Apesar de não ser algo tão marcante quanto em outras obras – especialmente americanas, como o recente Até o último homem (2017) –, Dunkirk eventualmente sucumbe a um sentimentalismo patriótico que acomete muitos filmes de guerra, simplificando por vezes o conflito em “nós contra eles”. Isso foi motivo de especial discórdia na França, que, marcada muito por uma história derrotista de colaboração com os nazistas na guerra, tem em Dunquerque um dos seus momentos mais corajosos de batalha.

Ainda assim, é possível compreender o sentimento por trás desse sentimentalismo. Reconhecido por Winston Churchill – então no cargo de primeiro-ministro há pouco mais de duas semanas – como um desastre militar, o resgate de Dunquerque representa um ponto de virada na guerra. Caso não tivesse sido bem-sucedido, as forças britânicas e francesas seriam drasticamente reduzidas, e o resultado da guerra poderia ser outro. A maior virada, porém, foi para a moral inglesa. Como o próprio diretor notou, militarmente fora uma derrota, mas, no plano humanitário, uma vitória colossal que gerou um dos mais famosos discursos de Churchill – e que aparece de maneira pouco sutil no filme.

Na Inglaterra, até hoje fala-se do “espírito de Dunquerque”, referência à coragem dos civis que cederam seus barcos para salvar os soldados encurralados. É um momento histórico único, mas também deve-se compreender o impacto que certas histórias têm no imaginário de uma nação, e Dunkirk certamente levanta esse diálogo. O interesse para Nolan, parece, é exatamente essa unidade coletiva, esse sentido de união, de um todo no lugar do individual.
Fala-se muito da espetacularização da guerra em filmes como esse. No caso de Dunkirk, trata-se, sem dúvida, de um espetáculo. Nolan é famoso por evitar computação gráfica nas situações em que pode usar efeitos práticos e trucagens, assim como filmagens em locação, e isso reflete no resultado final. Até as cenas mais impressionantes parecem reais e palpáveis. Gravado em impressionante filme de 70 milímetros, é uma experiência a ser assistida no cinema – em preferência no formato IMAX, no qual cerca de 70% do filme foi filmado.

Os tiros cercam o espectador. As bombas parecem cair a alguns metros de distância. Mergulha-se na imensidão vertiginosa dos céus conforme a câmera se instala na cabine de um avião dando piruetas e se preparando para um novo ataque. A vastidão do mar está logo ali – a terra parece ao mesmo tempo próxima e a uma distância intransponível.

Existe uma certa herança que os filmes de guerra moderno devem a O resgate do soldado Ryan (1999), de Steven Spielberg, em relação ao hiper-realismo utilizado para recriar o pesadelo de um campo de batalha. Nolan não foge de cenas terríveis. Jovens empilhados em um molhe, ouvindo as terríveis sirenes alemãs conforme o bombardeador se aproxima, as explosões cada vez mais próximas até que... Mas, ao contrário de Spielberg, buscando uma classificação etária mais acessível e apostando mais na tensão emocional do que na violência gráfica, Dunkirk não é um banho de sangue e vísceras. Existe uma boa dose de violência, mas, quando uma bomba estoura em cima de um soldado, se vê apenas areia voando.

Assim como a guerra em si, Dunkirk é uma mistura de sons e imagens terríveis; de distorções temporais, anonimatos, violências, loucuras e tensões. Em sua tentativa de criar uma experiência calcada mais na sensação do que no sentimental, Nolan é bem-sucedido. Caso se busque um grande momento de reflexão sobre a natureza da guerra – como no próprio O resgate do soldado Ryan ou em Além da linha vermelha (1998), de Terrence Malick –, não é esse o filme. Existe uma potência catártica por trás da história, mas que parece direcionada para um público específico que já compartilha do imaginário representado aqui. Para todos os outros, são cenas de guerra, de uma realidade opressora que ao mesmo tempo ressalta o desalento e a esperança, o medo e a coragem, a distância e a proximidade – entre os aliados e os inimigos que os cercam, entre histórias convergentes ou até da própria Inglaterra, ali, tão próxima, se apenas eles pudessem cruzar aquele trecho de mar. Se apenas.

Ficha técnica

Imagem: Reprodução do cartaz do filme

Dunkirk
Título original: Dunkirk
Direção: Christopher Nolan
Produção: Emma Thomas, Christopher Nolan
Elenco: Fionn Whitehead, Tom Glynn-Carney, Jack Lowden, Harry Styles, Aneurin Barnard, James D'Arcy, Barry Keoghan, Kenneth Branagh, Cillian Murphy, Mark Rylance, Tom Hardy
Reino Unido, Estados Unidos, França, Holanda, 2017, 106 min.








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