Edição 509 | 21 Agosto 2017

Despertar do sono dogmático para ler o mundo

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Eduardo Vicentini de Medeiros | Edição: Ricardo Machado

Paulo Faria descreve a profunda raiz filosófica de Thoreau, que joga luz sobre as contradições de seu tempo

Os escritos de Henry David Thoreau foram alçados ao status de textos, também, filosóficos por Stanley Cavell, que fez uma leitura de Walden a partir do cânon acadêmico. “Cavell introduziu como chave de leitura a filiação do pensamento de Thoreau à filosofia transcendental de Kant, que lhe teria chegado pela via da recepção de Kant no Romantismo britânico (Coleridge, Wordsworth, Carlyle) e no transcendentalismo da Nova Inglaterra, notadamente em Emerson”, analisa o professor e pesquisador Paulo Faria, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

O professor chama atenção para o descompasso da promessa de liberdade sob a qual os Estados Unidos são fundados e a sua não realização. “Um dos temas centrais de Walden, assim como dos escritos políticos de Thoreau, é que a promessa dos Estados Unidos (a que encontramos em documentos fundadores como a Declaração de Independência) não se cumpriu”, pondera. Reconhecer estas contradições implica ter uma visão atenta sobre o mundo, significa ter força para acordar do sonambulismo dogmático e ler o mundo com seriedade, como diria Thoreau. “Ler seriamente é tratar a leitura como a ocasião de um trabalho sobre si mesmo – é reconhecer no texto uma provocação (do latim pro-vocare, literalmente ‘chamar à frente’) endereçada ao leitor, para que ele reconstrua sua consciência e sua vida ao contemplá-las no espelho que lhe é endereçado pelo escritor”, pontua.

Paulo Francisco Estrella Faria é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, tendo participado como pesquisador visitante na Universidade de Nova York, na Universidade Rutgers, no Instituto Jean Nicod em Paris e na Universidade de Chicago. Foi fundador e vice-presidente, entre 2010-2012, da Associação Latino-americana de Filosofia Analítica - ALFAn. Atualmente é professor da UFRGS. Suas áreas de atuação são a metafísica e a epistemologia, as filosofias da lógica e da linguagem, e a história da filosofia analítica.

O entrevistado apresenta a conferência Escrita como prestação de contas e Desobediência Civil, no dia 30-8-2017, na Unisinos Porto Alegre, a partir das 18 horas. A palestra integra o evento VII Colóquio Internacional IHU – Caminhando e desobedecendo. Thoreau 200 anos.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Thoreau foi homenageado por dois compositores norte-americanos emblemáticos para a estética contemporânea: Charles Ives e John Cage . Seria correto dizer que a sensibilidade musical de Thoreau estava em descompasso com a estética do século XIX?
Paulo Faria – Thoreau tinha certamente uma apurada sensibilidade auditiva, como atesta o capítulo ‘Sounds’ de Walden; e sabemos que ele tocava flauta, inclusive durante sua estadia em Walden Pond; mas não me parece que possamos dizer nada muito concreto sobre sua sensibilidade musical: a música é uma arte que prima por sua ausência nos escritos de Thoreau. Seria antes o caso de dizer que esses dois grandes revolucionários da música, Ives e Cage, encontraram no inconformismo de Thoreau um modelo e inspiração para seu próprio inconformismo.

IHU On-Line – Dentre os textos políticos de Thoreau que tocam diretamente no tema da escravidão, qual (ou quais) merece destaque?
Paulo Faria – Os mais importantes, a meu ver, são ‘Slavery in Massachusetts’ (1854) e ‘A Plea for Captain John Brown’ (1859).

IHU On-Line – Thoreau, a respeito da importância da leitura, afirmou “Quantos homens marcaram a data de uma nova época em suas vidas com a leitura de um livro!”. Da extensa e diversa lista de leituras de Thoreau, qual livro teria desencadeado para ele uma nova época?
Paulo Faria – É arriscado indicar um único livro no conjunto heterogêneo de leituras que marcaram a formação de Thoreau. Mas, para jogar o jogo, arrisco-me a apontar o Baghavad Gitâ: ‘How much more admirable the Bhagvat-Geeta than all the ruins of the East!’ (Walden, cap. 1, ‘Economy’).

IHU On-Line – Em que momento Walden entra na sua vida? E qual o impacto?
Paulo Faria – Creio ter lido Walden pela primeira vez em 1990. Reconheci imediatamente que estava diante de um livro que marcaria duradouramente minha visão de mundo, e em particular minha concepção das relações entre filosofia e o que Descartes chamava a ‘conduta da vida’. Desde então, perdi a conta das vezes que reli Walden, que é, em qualquer caso, o livro que reli mais vezes em minha vida; e estou seguro de que vou continuar relendo esse livro prodigioso pelo resto da minha vida.

IHU On-Line – Como você avalia a contribuição de Stanley Cavell para o estudo de Thoreau no meio filosófico acadêmico?
Paulo Faria – Cavell deu uma contribuição fundamental ao publicar o primeiro estudo filosófico de fôlego sobre Walden, e é sem dúvida o principal responsável pela promoção de Thoreau ao cânon da história da filosofia. Ninguém antes havia lido Walden como uma obra filosófica de maneira tão sistemática e fecunda. Dito isso, Cavell introduziu como chave de leitura a filiação do pensamento de Thoreau à filosofia transcendental de Kant , que lhe teria chegado pela via da recepção de Kant no Romantismo britânico (Coleridge , Wordsworth , Carlyle ) e no transcendentalismo da Nova Inglaterra, notadamente em Emerson . Essa filiação foi, a meu ver, persuasivamente impugnada por Eduardo Vicentini de Medeiros em sua tese de doutorado Thoerau: Moralidade em Primeira Pessoa.

IHU On-Line – Muitos intérpretes alocam a obra de Thoreau em uma longa tradição da filosofia como forma de vida. O aspecto prático da atividade filosófica é um traço intrínseco?
Paulo Faria – Que a filosofia foi uma forma de vida antes de ser teoria é a tese sustentada pelo historiador da filosofia de Pierre Hadot em todos os seus livros, notadamente em Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga e em seus livros sobre Plotino (La simplicité du regard) e Marco Aurélio (La citadelle intérieure). E certamente não é coincidência que Hadot, um especialista em filosofia antiga, tenha escrito um ensaio sobre Thoreau cujo título, extraído de Walden, é ‘Hoje em dia existem professores de filosofia, mas não filósofos’.

IHU On-Line – Como poderíamos medir o descompasso entre o Novo Éden prometido pelo Transcendentalismo Americano e a América de Trump?
Paulo Faria – O descompasso talvez nunca tenha sido mais agudo, mas é importante assinalar que ele existia no tempo de Thoreau: um dos temas centrais de Walden, assim como dos escritos políticos de Thoreau, é que a promessa dos Estados Unidos (a que encontramos em documentos fundadores como a Declaração de Independência) não se cumpriu. É assim que, no capítulo ‘The Bean Field’ de Walden, Thoreau escreve que ele deveria ter plantado, ao invés de feijões, ‘sementes, se a semente não se perdeu, como sinceridade, simplicidade, fé, inocência e outras assim, e observado se eles não brotariam neste chão com menos cultivo e fertilização, e assegurariam meu sustento, pois certamente ele não foi exaurido no que respeita a essas colheitas. Quem dera!, digo a mim mesmo; mas agora mais um verão se foi, e mais um, e mais um, e sou obrigado a dizer, leitor, que as sementes que eu plantei, se de fato eram as sementes daquelas virtudes, estavam bichadas e perderam sua vitalidade, e por isso não germinaram’ – passagem em que Cavell, certeiramente, identificou um eco de Jeremias (8:20): ‘A colheita acabou, o verão chegou ao fim, e não fomos salvos.’

IHU On-Line – Thoreau escreveria de bom grado um ensaio com o título “A plea for Aaron Swartz ”?
Paulo Faria – Sim, e igualmente ‘A plea for Edward Snowden’ , ‘A plea for Chelsie Manning’ e ‘A plea for Julian Assange’ .

IHU On-Line – A escrita de Thoreau teria alguma vocação especial para manter despertos seus leitores mesmo quando todos os demais já foram dormir? Prestar contas é o melhor antídoto para o sono dogmático?
Paulo Faria – Thoreau concebe sua escrita, notadamente a escrita de Walden, que apresenta meticulosamente os custos e ganhos desse formidável experimento com a própria vida que foi a estadia em Walden Pond, como uma prestação de contas – esse é o tema do primeiro capítulo do livro, ‘Economia’. Mas ele também se queixa de que ninguém se tenha prontificado a auditar essas contas, o que equivale a dizer que (àquela altura, em todo caso) ele ainda não encontrou, numa época em que a maioria dos homens vive vidas de ‘quieto desespero’, de conformismo e resignação, os leitores que trocarão o sono dogmático pela vigília que é a ‘vida examinada’. Dito isso (mas demonstrá-lo seria uma longa e demorada tarefa), a escrita de Thoreau, na sua pletora de recursos retóricos (paráfrase, ironia, paradoxo, exagero) é cuidadosamente calculada para, a todo instante, surpreender e ‘acordar’ o leitor – como a ferroada desse zangão que, segundo Platão , impedia os atenienses de ‘dormirem o tempo todo’, o ironista Sócrates.

IHU On-Line - O que significa ler seriamente, nos termos de Thoreau? É uma atividade silenciosa e solitária por excelência, aos moldes de Proust ?
Paulo Faria – Ler seriamente é tratar a leitura como a ocasião de um trabalho sobre si mesmo – é reconhecer no texto uma provocação (do latim pro-vocare, literalmente ‘chamar à frente’) endereçada ao leitor, para que ele reconstrua sua consciência e sua vida ao contemplá-las no espelho que lhe é endereçado pelo escritor. Essa é, também, a concepção da leitura que encontramos em Proust , notadamente na introdução (‘Sobre a leitura’) a sua tradução de Sesame and Lilies de John Ruskin , e no último volume (O Tempo Reencontrado) do colossal Em Busca do Tempo Perdido. É quase certo que Proust nunca leu Thoreau; mas é certo, em troca, que ele leu e admirou Emerson, citado várias vezes em seu primeiro livro, Os Prazeres e os Dias. E é certo também que para Emerson e Thoreau, como para Proust, esse trabalho sobre si mesmo é uma tarefa pessoal e intransferível, que só pode ser levada a cabo ‘nesse maravilhoso milagre da leitura que é a comunicação em plena solidão’ (Proust, nota à tradução de Sesame and Lilies), trabalho que ‘só pode ser profundo na solidão ou nessa solidão povoada que é a leitura.’ (Ibid.)

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Paulo Faria – Isto apenas: ‘O homem que não acredita que cada dia contém uma hora anterior, mais sagrada e próxima da aurora que o que ele até aqui profanou desesperou da vida, e está segundo um caminho descendente e obscurecente. (...) Manhã é quando eu acordo e há uma aurora em mim. A reforma moral é o esforço de espantar o sono. Por que é que os homens dão contas tão empobrecidas do seu dia, se não é porque estiveram dormindo? Eles não são calculadores tão ruins assim. Se não estivessem estado tomados pela sonolência, teriam realizado alguma coisa. Os milhões estão despertos o bastante para o trabalho corporal; mas só um em cada milhão está desperto o bastante para o esforço intelectual efetivo, e um em cada cem milhões para uma vida poética ou divina. Eu nunca encontrei um homem que estivesse realmente acordado. Como poderia tê-lo olhado no rosto?’ (Walden, cap. 2, ‘Onde eu vivi, e para que e eu vivi’). ■

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