Edição 509 | 21 Agosto 2017

Enxovalhando Thoreau

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Edward Mooney | Tradução: Eduardo Vicentini

Em seu artigo, Edward Mooney chama atenção para a densidade do pensamento de Thoreau. “Thoreau nos leva continuamente para profundezas inexploradas e tonificantes do desejo humano e para percepções possíveis extremamente maravilhosas, deslumbrantes. Quando a trilha se complica ou a subida fica muito árdua, alguns abandonam a caminhada e escrevem uma reclamação”, pondera Mooney, em artigo enviado à IHU On-Line.

Edward F. Mooney é professor no departamento de Religião e Filosofia da Universidade de Siracusa, no Estado de Nova Iorque, EUA. Dedica-se à abordagem de diversos autores, entre eles, Thoreau, Stanley Cavell, Martha Nussbaum, Lao Tzu, Herman Melville, Emily Dickinson, Soren Kierkegaard, Martin Heidegger e Iris Murdoch. É autor de diversas obras, das quais destacamos, Lost Intimacy in American Thought: Recovering Personal Philosophy From Thoreau to Cavell (Bloomsbury Academic: 2009); Repetition and Philosophical Crumbs (Oxford University Press: 2009), escrito em parceria com M.G. Piety; e Ethics, Love, and Faith in Kierkegaard: Philosophical Engagements (Indiana University Press, 2008); On Søren Kierkegaard: Dialogue, Polemics, Lost Intimacy, and Time. (Abingdon, Inglaterra: Routledge, 2017)

Eis o artigo.

Será que eu sou tão estranho ou melindroso por pensar que ‘escória’ é um rótulo desagradável, senão vulgar, para ter pregado às costas?

Em ‘Pond Scum’ (The New Yorker, 19 de Outubro de 2016), Kathryn Schultz faz exatamente isso quando apresenta um Thoreau ‘horrível’, ‘misantropo’. Deixando de lado a vulgaridade de saudá-lo dessa maneira, o artigo oferece uma representação profundamente distorcida do icônico escritor das florestas e lagos, rios, campinas e montanhas .

Pode parecer surpreendente, mas Thoreau amou as pessoas tanto quanto os lagos. Ele criou um saudável pântano ao redor da sepultura de seu irmão em Sleepy Hollow para que os nutrientes de John pudessem ser naturalmente reciclados. Por amor, ele quis alongar a vida de John .

“O Êxtase da Influência” (The New Yorker, 9 de Setembro de 2016) nos dá uma reveladora digressão de Emerson, que fala da exuberante afeição de seu protegido para com as crianças: “Thoreau encantava Waldo [o filho de cinco anos de Emerson] com uma variedade de brinquedos, apitos, botes, arminhas e todo tipo de instrumentos que ele podia fabricar e consertar. Ele era famoso por planejar as brincadeiras de sábado para os meninos da vizinhança”.

Embora ele seja acusado de misantropia por Schultz e outros, Thoreau poderia olhar para as multidões na feira da cidade e exclamar: “Eu amo esses filhos da terra, amo cada filho e cada mãe, com seus grandes corações sinceros , correndo em rebanhos, tumultuosamente, de espetáculo para espetáculo.” E então essa impressionante confissão: “Mesmo os exaustos trabalhadores que encontro na estrada, eu os reconheço realmente como deuses viajantes”.

Ele amou profundamente seu irmão. Seu primeiro livro, Uma Semana nos Rios Concord e Merrimack, comemora suas vidas compartilhadas. Ele não esquece os amigos com quem caminhou regularmente, nem o lenhador canadense apresentado em Walden. Os dois leem em voz alta, os braços quase enlaçados, com foco na cena da Ilíada onde Aquiles e Pátroclo renovam sua amável amizade.

* * *

Schultz não é a primeira a descarregar em Thoreau. Uma cadeia de expletivas – ‘hipócrita’, ‘misantropo’, ‘pedante’ – o segue de forma previsível como cães que latem, tanto na imprensa quanto na conversa casual. Por que os críticos mordiscam os seus calcanhares?

Por uma coisa, Thoreau ama provocar com sentimentos inesperados e impopulares. Os sentimentos não se ajustam a um único padrão, fazendo com que seja fácil pinçar sentenças apropriadas para ofender particularmente os incautos.

Então, novamente, talvez seja “A Angústia da Influência” de Harold Bloom – ao invés de um mais edificante êxtase de influência . Se Thoreau ganha tração cultural demais, os cães de guarda mal-humorados ficam ansiosos e nos dão o aviso.

Um ícone cultural ou político grandioso brinda a tentadora oportunidade de revelar seus pés de barro. Este é um grande expediente de nivelamento. É um triste lugar-comum que a leitura crítica usualmente signifique minar, e raramente recomendar generosamente. Quanto maior a estatura do escritor em questão, maior o potencial para o vitupério. O resultado? “Pond Scum”, “Horrível Thoreau”, “Misantropo”, “Hipócrita se fazendo de santo”. A primeira coisa que Thoreau publicou foi um obituário no jornal local para uma mulher sem maior destaque, que doutra sorte teria sido esquecida. É como se ele não considerasse qualquer vida como passível de ser esquecida.

* * *

Ninguém gosta de ficar recebendo sermão, mas Thoreau não é um moralista inveterado, a não ser em suas aguerridas polêmicas políticas – digamos em sua defesa de John Brown. Em escritos como Walden ele fica muito mais perto da postura reflexiva e, no mais das vezes, gentil de Rousseau em Devaneios de um Caminhante Solitário. A senhora Schultz não está sozinha ao apresentar grande dificuldade para ouvir os devaneios e as reflexões de Thoreau, suas ironias, gracejos e hipérboles. As excursões bem elaboradas de Walden pela paródia, hipérbole e devaneio (e semelhantes) não são feitas para anunciar doutrinas ou para empurrar dogmas goela abaixo. Thoreau é um mestre do exagero engenhoso e da caricatura perversa.

Quanto de seu capítulo de abertura, Economia, é, ligeiramente, uma elaboração irônica de “Um tostão poupado é um tostão ganhado” de Franklin? Um outro capítulo, Leitura, mostra ele desejando que todas as pessoas de sua cidade pudessem ler os clássicos em suas línguas de origem. Ele candidamente chama alguns dos momentos mais extravagantes de sua escrita de “devaneios”.

Um trem de carga ouvido do outro lado do lago é uma indicação de comercialismo suspeito (para não dizer barulho) mas, como em um sonho, também liberta “sua nuvem de vapor como um estandarte ondeando atrás de si guirlandas douradas e prateadas.”

Uma página mais e ele se mostra fascinado pela heroica entrega por meio dos trilhos de uma quantidade de produtos intrigantes. Cada vagão do comboio carrega significados inesperados:

“Essa carga de velas de lona rasgadas é mais legível e interessante agora do que convertida em papel e livros impressos.”

Ouvir erroneamente os tons de voz sutis, seus registros e modulações, acarreta em imputações terrivelmente equivocadas. Não precisamos comprar a ideia de um “Santo Henry”, mas a alternativa não precisa ser um amargo e pobre “Horrível Henry”.

Thoreau nos leva continuamente para profundezas inexploradas e tonificantes do desejo humano e para percepções possíveis extremamente maravilhosas, deslumbrantes. Quando a trilha se complica ou a subida fica muito árdua, alguns abandonam a caminhada e escrevem uma reclamação.

Depois dessas palavras mordazes, ocorreu-me um pensamento que, ao contrário, é bastante caprichoso: talvez compreender Thoreau é como compreender uma viagem ao redor do mundo, você compreende um dia de cada vez, e tenta acompanhar a conversa na medida em que ela muda e se lança desta ou daquela maneira, tal como crianças brincando. E lembre-se que para toda paisagem cambiante, há um fio condutor – por mais difícil que seja recriá-lo sem começar a viagem novamente. É claro que suas viagens paravam antes de ir muito além do Maine, Minnesota, Staten Island e do Monte Greylock. Mas cobriram mundos . ■

Leia mais

- A sensibilidade religiosa de Thoreau. Artigo de Edward F. Mooney, publicado em Cadernos de Teologia Pública, número 123.

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