Edição 509 | 21 Agosto 2017

A revolução do “não”

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Entrevista e tradução: Eduardo Vicentini de Medeiros | Edição: Ricardo Machado

Jeffrey Cramer, curador do The Walden Woods Project, analisa o pensamento e a atualidade de Thoreau e sua desobediência civil

Grandes revoluções começam com três letras, cabem na minúscula palavra “não”. No fundo o grande gesto político e transcendental da negação ao que é hegemônico é a base da desobediência civil trazida por Henry David Thoreau, como um gesto político sem par. Mais do que passar a noite em uma prisão, apesar da notoriedade do ato, das desobediências mais importantes de Thoreau está a de “abrigar pessoas escravizadas fugitivas, alimentá-las, cuidá-las para que ficassem saudáveis novamente, comprar as passagens de trem e vê-las seguras em seu caminho para o Canadá – embora tenha ficado mais famosa a noite que passou na cadeia como uma forma de protestar contra um governo que permitiu a existência da instituição da escravidão”, afirma Jeffrey Cramer, um dos maiores especialistas no mundo em Thoreau e curador do The Walden Woods Project. “O que ele escreveu sobre esta experiência no ensaio hoje conhecido como ‘Desobediência Civil’ tem sido uma influência fundamental ao redor do mundo sobre as obrigações do indivíduo de lutar contra a injustiça”, complementa Cramer, que concedeu entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Para o pesquisador, não haveria a menor possibilidade de um diálogo entre Thoreau e uma figura como Donald Trump. “Thoreau teria considerado uma perda do seu tempo discutir questões políticas com um político”, frisa. Ainda que o escritor não fosse afeito a religiões, havia em seus escritos uma certa influência do transcendentalismo americano, caracterizado por um sentido latente de reforma social por intermédio da reforma de si próprio. “Ele não foi um defensor da religião formal e manteve uma visão panteísta sobre Deus e a espiritualidade. O que ele experimentou em primeira mão em relação à divindade dentro de todos nós, não poderia ser encontrado em nenhuma religião”, descreve Cramer.

Jeffrey Cramer é curador de coleções no Thoreau Institute at Walden Woods Library e responsável por projetos como Walden Woods Project e Ralph Waldo Emerson Society. Foi editor de vários livros sobre literatura dos Estados Unidos.

A entrevista foi publicada em Notícias do Dia de 15-7-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como caracterizar a influência do Idealismo Alemão no surgimento do Transcendentalismo Americano em geral e sobre a escrita de Thoreau em particular? Existe alguma evidência de que Thoreau tenha lido alguma obra de Kant?
Jeffrey Cramer – Embora as ideias de Kant tenham sido apresentadas para o grupo de transcendentalistas por Frederick Hedge , que indubitavelmente compartilhou essas ideias com seus amigos, e por intermédio dos escritos de Thomas Carlyle , bem como por Aids to Reflection de Coleridge (Princeton: Princeton University Press), não há evidência de que Thoreau tenha lido Kant ou outro Idealista Alemão. Seu principal contato seria filtrado por outros escritores.

IHU On-Line – A propósito, como se caracteriza o Transcendentalismo Americano?
Jeffrey Cramer – De forma muito simples, é idealismo, tal como Emerson o caracterizou. Ou, fé em coisas não vistas. É a ideia de que podemos intuir a verdade diretamente a partir de Deus, que a verdade transcende nossas experiências cotidianas, e que conhecemos o certo e errado sem a necessidade de aprendizado. O Transcendentalismo Americano carrega consigo um sentido muito forte de reforma social por intermédio da reforma de si mesmo.

IHU On-Line – O que explicaria uma cidade tão pequena como Concord ter sido o epicentro do Transcendentalismo Americano?
Jeffrey Cramer – Simplesmente porque Emerson, ele mesmo o epicentro do Transcendentalismo Americano, mudou-se para Concord em 1835. Ele havia morado lá temporariamente um ano antes, com seu avô emprestado, Ezra Ripley, em Old Manse (que ficou famosa com Nathaniel Hawthorne) e onde Emerson escreveu seu livro, Natureza. Thoreau foi um nativo de Concord. Bronson Alcott mudou-se para Concord em função de Emerson.

IHU On-Line – Thoreau foi um leitor atento de William Paley em Resistance to Civil Government ou estava respondendo a um espantalho criado para fins retóricos?
Jeffrey Cramer – Thoreau leu atentamente Paley. Seja ou não como ‘um espantalho criado para fins retóricos’, Thoreau encontrou algo que o fez sentir compelido a responder. É uma questão aberta o quanto de ‘Resistência ao Governo Civil’ (‘Desobediência Civil’) foi uma resposta direta a Paley ou o quanto Paley foi apenas um trampolim. Thoreau foi um leitor atento, mas também um leitor sem compromissos. Como ele disse: “Quando leio um livro indiferente, parece ser isso a melhor coisa que posso fazer, mas um volume inspirador dificilmente me deixa com tempo livre até finalizar suas últimas páginas. Ele escorrega pelos meus dedos enquanto leio. Ele não cria uma atmosfera na qual possa ser examinado, mas uma na qual seus ensinamentos podem ser praticados. Ele me confere uma tal riqueza que o deixo com o menor dos arrependimentos. O que começo pela leitura devo terminar pela ação.”

IHU On-Line – Qual foi o contato de Thoreau com o Unitarismo? Houve alguma repercussão duradoura em seus escritos?
Jeffrey Cramer – Ele foi batizado na Igreja Unitarista, mas quando adulto desligou-se por escrito, cortando oficialmente os laços. Ele não foi um defensor da religião formal e manteve uma visão panteísta sobre Deus e a espiritualidade. O que ele experimentou em primeira mão em relação à divindade dentro de todos nós, não poderia ser encontrado em nenhuma religião.

IHU On-Line – As atividades de Thoreau junto a Underground Railroad seriam seu mais efetivo exemplo de desobediência civil? De que forma isso estaria expresso?
Jeffrey Cramer – Certamente isso seria um exemplo claro – abrigar pessoas escravizadas fugitivas, alimentá-las, cuidá-las para que ficassem saudáveis novamente, comprar as passagens de trem e vê-las seguras em seu caminho para o Canadá –, embora tenha ficado mais famosa a noite que passou na cadeia como uma forma de protestar contra um governo que permitiu a existência da instituição da escravidão. O que ele escreveu sobre esta experiência no ensaio hoje conhecido como ‘Desobediência Civil’ tem sido uma influência fundamental ao redor do mundo sobre as obrigações do indivíduo de lutar contra a injustiça.

IHU On-Line – Seria possível rastrear o esforço autobiográfico dos Diários em alguma inspiração na literatura clássica? De onde nasce o interesse quase obsessivo de Thoreau por relatos na primeira pessoa do singular?
Jeffrey Cramer – De fato surgiu a partir de uma discussão que ele teve com Emerson, que talvez foi sua maior influência, na qual Emerson perguntou a Thoreau: “Você mantém um diário?” Daquele dia em diante Thoreau escreveu em seu diário quase até, em seu último ano, estar doente demais para fazê-lo.

IHU On-Line – Em sua prestação de contas no capítulo ‘Economy’, Thoreau nos diz que gastou U$ 28,12 para os materiais de sua cabana. Você alguma vez se perguntou qual seria este valor atualizado em dólares nos dias de hoje?
Jeffrey Cramer – Aproximadamente U$ 860,00 nos dias de hoje.

IHU On-Line – Como seria uma conversa cara a cara entre Donald Trump e Thoreau? Algum tópico urgente?
Jeffrey Cramer – Não aconteceria. Thoreau teria considerado uma perda do seu tempo discutir questões políticas com um político.

IHU On-Line – O senhor poderia nos oferecer um breve relato pessoal de suas atividades no The Walden Woods Project? E também sobre a importância do Thoreau Institute para preservação do legado thoreauviano?
Jeffrey Cramer – Como Curador de Coleções para o Projeto Walden Woods, mantenho a mais ampla coleção de materiais relacionados a Thoreau no mundo. Ajudo pessoas com suas pesquisas em todos os aspectos e em todos os níveis, desde estudiosos ganhadores do Prêmio Pulitzer até estudantes do colegial, de escritores a entusiastas, seja na biblioteca do Instituto Thoreau ou por e-mail, ou até mesmo conversando com estudantes ao redor do mundo em nosso programa ‘Skype na sala de aula’.

Ao colecionar toda obra de e sobre Thoreau em um único local – mais de 60.000 itens que incluem livros, manuscritos, revistas, arte, música, mapas, panfletos, cartas e histórias pessoais –, somos os zeladores de seu legado. Não há coleção comparável em algum outro lugar.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Jeffrey Cramer – Seguidamente Thoreau é desconsiderado por aqueles que o conhecem pela reputação ou pelo mito, mas que não tiraram um tempo para realmente ler suas obras. Eu recomendaria a qualquer um que tem curiosidade sobre este autor americano icônico que pegue um de seus livros ou ensaios ou uma seleção de seus Diários e veja por si mesmo. Pode ser uma das melhores coisas que farão. ■

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