Edição 509 | 21 Agosto 2017

Da colonização à democratização: as imposições ocidentais que sufocam a África

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Giulio Albanese | Tradução: Ramiro Mincato | Edição: João Vitor Santos

“A análise de alguns cenários enfocados mostra que o conflito não tem apenas significado político e institucional, mas também militar, como é o caso da República Democrática do Congo. Esse local que revela a existência de circuitos políticos ligados a instituições, exércitos e milícias privadas, senhores das guerras locais, empresas multinacionais, finalizadas à exploração dos recursos naturais, presentes no território, e, evidentemente, completamente à revelia de qualquer forma de consenso ou legitimidade popular”, escreve o missionário comboniano Giulio Albanese. Ele faz um relato com o objetivo de jogar luz sobre questões que estão por trás de todo o conflito e violência presente no continente africano hoje e que vai repercutir na chamada crise migratória.

No seu texto, escrito na semana passada e enviado por e-mail, o missionário ainda destaca que “é opinião comum que antes da chegada dos colonizadores europeus, a África era uma vasta extensão de terra povoada por uma miríade de grupos étnicos briguentos e incapaz de assumir as formas mais elementares de organização política”. Para ele, isso não passa de falsa história. “Esquecemo-nos de que, na África, ao contrário do que aconteceu nas Américas, o poder dos Estados autóctones era tal que desencorajava, até o tempo da revolução industrial, qualquer conquista em escala continental”, explica.

Giulio Albanese é padre, missionário comboniano, que viveu na África por anos, onde realizava trabalhos missionários e como jornalista. Dirigiu o Media Center New Pessoas, em Nairobi, está entre os criadores da agência missionária News Service, agora Missionary Internacional Service News Agency - Misna. É, ainda, colaborador de diversos veículos de imprensa da Europa, para os quais escreve sobre assuntos relacionados à África. Desde 2007, é professor de "jornalismo missionário/alternative jornalismo" na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e diretor das revistas missionárias das Pontifícias Obras Missionárias PMS - Missio Itália, Povos e Missão e A Ponte Golden.

Confira o artigo.

Precisamos, antes de mais nada, considerar que, nos últimos anos, houve muita publicidade a respeito de um possível renascimento africano, do orgulho político de um continente que, em suas múltiplas expressões, sente necessidade de virar a página. Quem postulou esta intenção por primeiro foi Nelson Mandela , o memorável primeiro presidente do pós-apartheid, na África do Sul. Estava convencido de que era possível opor-se o conceito de "Estado-nação", causador de tantos desastres, desde o início da temporada pós-colonial dos anos 60. Para Mandela, as gerações mais jovens, mais cedo ou mais tarde, seriam capazes de acabar com as paródias dos sistemas estatais ocidentais que, ainda hoje, se traduzem em governos pessoais e autocráticos, baseados em nepotismo e corrupção, exercidos em favor de uma ou duas etnias do país.

A respeito disso, Basil Davidson , um dos últimos africanistas do século passado, recentemente falecido, estigmatizava a pesada responsabilidade das antigas potências coloniais captadoras das elites nativas, que, impunemente, ainda hoje se prestam para manter relações econômicas desiguais, mesmo que informais. Estas influências continuam hoje, embora cresça dramaticamente a fileira das entidades estrangeiras que olham para o continente com grande cobiça. Basta pensar na crescente influência da China, que mantém profícuas relações diplomáticas e comerciais com todos os governos da União Africana - UA.

A análise de alguns cenários enfocados mostra que o conflito não tem apenas significado político e institucional, mas também militar, como é o caso da República Democrática do Congo. Esse local que revela a existência de circuitos políticos ligados a instituições, exércitos e milícias privadas, senhores das guerras locais, empresas multinacionais, finalizadas à exploração dos recursos naturais (fontes energéticas, em particular), presentes no território, e, evidentemente, completamente à revelia de qualquer forma de consenso ou legitimidade popular. Não por acaso, o ex-governador do Banco Central do Gana, Frimpong-Ansah , chegou a definir os Estados africanos pós-coloniais como "estados-vampiros", culpando as oligarquias locais pela drenagem do dinheiro público e dos recursos, segundo uma lógica clientelista e predatória.

Outros estudiosos, como Jean-François Bayart , acreditam que o processo degenerativo se deve à incapacidade de distribuição dos recursos em vista do desenvolvimento e bem-estar social, e à subjugação contínua de facções étnicas incapazes de servir a "res publica". Independentemente da explicação histórica, é lógico perguntar se seria possível um caminho evolutivo nas políticas nacionais africanas. A pergunta baseia-se na exigência de se saber se é admissível a individuação de um percurso de crescimento na recente história pós-colonial do continente.

A crônica dos eventos é contrastante. Até o fim da Guerra Fria, a paisagem política africana era dominada por um enxame de autocracias, mais ou menos mascaradas, e ideologicamente mais ou menos duras, cuja legitimidade baseava-se no legado colonial, no partido único e na complacência interessada dos dois blocos. Com a queda do Muro de Berlim, esses potentados começaram a estalar, não resistindo ao impacto dos estímulos endógenos e impulsos exógenos, prefigurando novas estruturas de poder que poderiam, pelo menos no papel, marcar o ponto de viragem.

Democracia importada

Começou-se a falar, então, a plenos pulmões, de democratização, como se tivesse chegado a hora da sociedade civil. Como esquecer, no início dos anos 90, as inúmeras emendas contra a pretensão europeia de condicionar as ajudas a respeito das regras democráticas, durante as memoráveis assembleias da ACP (África, Caribe, Pacífico) e CEE (a então Comunidade Europeia)? Aquele tipo de parlamento da cooperação Norte-Sul, criada pela Convenção de Lomé , de 1975, revelou ser um laboratório no qual se tentou incorporar no patrimônio político africano valores e práticas importadas. Isso exigiu tempo, recursos (que a comunidade internacional até agora poupou) e, provavelmente, ajustes muitas vezes até encorpados. O respeito da agenda dos direitos humanos e as formas de representação participativa, por outro lado, estão além da transição democrática “formal”. A dialética dos grupos, dos interesses econômicos, das aspirações populares, empurrou a busca de formas mais adequadas de representação política, mesmo que em um quadro geral de grande precariedade, de acordo com a composição étnica, a articulação geográfica e a fé religiosa.

Eis que não faltaram (e ainda não faltam) desilusões, quando se considera a instabilidade da região dos Grandes Lagos ou do Chifre da África . De fato, a busca por novos modelos de legitimidade deve sempre contar com um quadro econômico em que se confrontam os macroprocessos da globalização e as soluções locais, para os problemas da vida cotidiana. Mas exatamente essas implicações remetem ao ponto do qual partimos. A responsabilidade desses governos ocidentais que deveriam – pelo menos no papel, promover a democracia e a participação – são de dois tipos: político e solidário. O primeiro, sem dúvida, é marcado pelos Estados Unidos, cuja política africana caracterizou-se, nos últimos anos, por um pragmatismo notável, centrado em relações bilaterais entre os países individualmente, e a criação de condições de mercado vantajosas para as estratégias de globalização. Eis que então, o modelo "USA", na África, se evidenciou sempre mais como uma espécie de "grande dorsal", com todas as diferenças, mesmo perceptíveis, dependendo se Washington é governada pelos democratas ou pelos republicanos. Embora no momento ainda não esteja claro o que ele significa para o imprevisível Donald Trump , é improvável, porém, que ele dê ao Império do Dragão aquelas concessões ligadas ao negócio das commodities, tão caro aos seus antecessores.

A União Europeia, no entanto, é permeada de atitudes contrastantes: em nome da Comunidade se enuncia o princípio da multilateralidade, enquanto os governos individuais (especialmente França e Reino Unido, mas também a Alemanha e Bélgica) movem-se sob o emblema do bilateralismo, como se as relações com os Estados africanos individuais prescindissem dos compromissos da Comissão de Bruxelas . Uma coisa é certa: porquanto o número de países democráticos no continente, ao menos do ponto de vista formal, é agora o maior da história, na África ainda persiste uma grande variedade de regimes vagamente definidos que, com diferentes tons e camuflagens, tendem, de um lado, a reduzir consideravelmente ou até mesmo eliminar completamente o pluralismo político, privando, portanto, as populações dos direitos e liberdades fundamentais. Enquanto, por outro lado, administram a atribuição e distribuição do poder político com o uso da força contra qualquer forma de dissidência.

Imposição da democracia liberal ocidental

Portanto, o debate parlamentar e o envolvimento da sociedade civil estão sob severas limitações. É preciso, no entanto, tomar consciência de que há um debate aberto sobre a possibilidade de a democracia liberal de cunho ocidental ser o modelo universal, em direção ao qual deveriam se esforçar incansavelmente todas as nações, independentemente da sua tradição histórica e cultural. A este respeito, é provocador e, ao mesmo tempo, iluminante a posição do economista ganhador do prêmio Nobel Amartya Sen , nascido em Bengala, em 1933. Em sua obra, La democrazia degli altri. Perché la libertà non è un'invenzione dell'Occidente (A Democracia dos outros. Porque a liberdade não é uma invenção do Ocidente, em tradução livre), a tese é de que as objeções céticas, "sobre a possibilidade de propor a democracia aos povos que, alega-se, não a conhecem” e “sobre o que efetivamente a democracia pode realizar nos países mais pobres", pressupõem um conceito "muito estreito" e "limitado" de democracia, identificando-a com "votação pública" ou com "governo de maioria".

Uma compreensão correta da democracia, ao contrário, refere-se, segundo Sen, ao “exercício da razão pública" e, por isso, à "garantia de um debate público livre e de interações deliberativas de pensamento e de prática política", para “salvaguardar a diversidade das doutrinas". Em outras palavras, "a democracia é um sistema que exige esforço constante, e não um simples mecanismo (como o governo da maioria), independente e isolado de todo o resto". À luz disso, Sen argumenta que, para que a democracia tenha valor universal não é necessário que haja sobre ela consenso geral. Pelo contrário, é preciso "estabelecer se os homens, em todas as partes do mundo, podem ter razões para considerá-la tal".

Se por um lado é verdade que Sen se expõe ao risco de fornecer uma noção de "democracia" excessivamente ampla e suficientemente flexível, capaz de incluir qualquer regime (da democracia direta, no modelo de Westminster, ao despotismo esclarecido), por outro, seria oportuno fazer tesouro dos seus ensinamentos, relançando o confronto nas sedes internacionais, Nações Unidas, por primeiro, elaborando um compromisso, em seu significado etimológico mais nobre: aquele de "cum prometer". Isto é, de prometer juntos um compromisso de paz para o futuro aguardado e esperado pelos povos. Como diria nosso Augusto Monti , "o presente é lava em movimento, e julgar será possível somente quando a erupção estiver fria e firme".

Nota histórica sobre a política africana pré-colonial

É opinião comum que antes da chegada dos colonizadores europeus, a África era uma vasta extensão de terra povoada por uma miríade de grupos étnicos briguentos e incapaz de assumir as formas mais elementares de organização política. É uma história falsa. Esquecemo-nos que, na África, ao contrário do que aconteceu nas Américas, o poder dos Estados autóctones era tal que desencorajava, até o tempo da revolução industrial, por volta do século XIX, qualquer conquista em escala continental. Ao contrário do que se pensa, os assentamentos portugueses ao longo da costa africana foram apenas uma primeira tentativa de a penetrar; a verdadeira e própria colonização acontecerá apenas no século XIX, graças às expedições de inúmeros exploradores e missionários europeus.

Acrescenta-se a isso que os soberanos africanos a partir do qual os comerciantes de escravos compravam a mercadoria humana, desde o final do século XV, governavam impérios mais vastos do que qualquer nação europeia moderna. O fato é que, infelizmente, a história africana pré-colonial nunca entrou nos livros didáticos ocidentais. Por exemplo, quem já estudou, por acaso, na escola, os grandes acontecimentos do Reino Gana (od Ougadou), habitada pelo povo soninquê, que alcançou sua maior expansão no século XI? Era um Estado rico e florescente, que se estendia ao norte do rio Níger, e incluía boa parte do sudeste da Mauritânia e da parte ocidental do Mali. Ou alguém já ouviu falar de Sundiata Keita, o lendário herói do povo Malinke?

No entanto, em meados do século XIII, fundou o Reino do Mali que cobria ampla área geográfica, das costas atlânticas do Senegal e da Serra Leoa até a cidade de Gao, às margens da grande curva do rio Níger. Assim, para muitos é desconhecida a história do Império Songhai, um povo que vivia ao longo das margens do Médio Níger. No final do século XV tornou-se o maior Estado africano pré-colonial. Segundo os historiadores, era dividido em Províncias administradas por governadores nomeados pelo Império, sob os quais havia funcionários públicos encarregados do planejamento econômico do território, da gestão das receitas e da justiça. A segurança das rotas de comércio era realizada por duas forças armadas, exército e marinha, composta principalmente por soldados regulares.

Mais tarde, no final do século XVII, impôs-se o poderoso Estado do Ashanti, sob a liderança carismática de Osei Tutu: este Reino estendeu seu controle ao longo de toda a costa dos atuais Estados de Gana e Costa do Marfim. Aquele do Ashanti foi certamente o mais poderoso dos Estados que se desenvolveu entre o final dos séculos XV e XIX, na dorsal atlântica, a partir da foz do Senegal até os confins ocidentais de Camarões. Esses governos autóctones consolidaram-se fortemente com o aumento do comércio com a Europa; é claro, os escravos eram o bem mais precioso. O último dos grandes Reinos da costa foi o de Benin, que atingiu seu máximo esplendor na virada entre os séculos XV e XVII. Dirigidos por soberanos integérrimos (Obá), este Estado, com forte marca legalista, estava perto do vasto delta do Níger, e estendeu-se por uma área de floresta tropical densa de cerca de 300 mil quilômetros quadrados. Entre os legados deixados ao mundo existem preciosas obras de arte. À luz deste breve e aproximativo panorama histórico impõem-se algumas reflexões.

Em primeiro lugar deve ser reconhecida a dignidade dos Estados africanos antigos, expressão de um poder político e cultural muito mais vasto e articulado de quanto superficialmente se possa imaginar. O exercício do governo era feito pelas classes hegemônicas, às vezes dinastias, que tinham sob seu comando um aparato militar e um aparato burocrático capaz de recolher e administrar os impostos dos súditos. É verdade que a organização política dos Reinos não se espalhou uniformemente em todo o continente, dada a multiplicidade de "Estados sem Estado", ou seja, pequenos grupos tribais de agricultores sem normas estatutárias. Mas também é verdade que se estabeleceu, gradualmente, uma relação entre a África e a Europa devido ao crescente comércio. Mercadoria de troca privilegiada era o precioso "lenho de ébano", assim chamados, em código, os escravos, juntamente com as armas de fogo que desempenhavam papel principal, como hoje, aliás, para a conquista e controle do poder.

Antes da epopeia colonial do século XIX, sobre os 30.258.010 quilômetros quadrados do continente africano não reinava a anarquia; no bem e no mal, houve formas de governo despótico sobre todo o território. É verdade que as elites locais, de fato, legitimaram a escravidão, sacrificaram o próprio povo, em vista de ganhos iníquos. A escravidão foi uma vergonha para todos: para os comerciantes europeus, escravagistas, que compravam sem escrúpulos a mercadoria humana, e para os chefes africanos que trocaram milhões de jovens por rum, aguardente, pólvora e armas. Mas essas elites pagaram, elas mesmas, um altíssimo preço, porque foram esmagadas, uma a uma, pelas potências coloniais: o último governante dos Ashantis rendeu-se em 1896, para uma força expedicionária vinda do mar para transformar seu Reino em uma colônia da coroa britânica.■

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