Edição 508 | 07 Agosto 2017

A leitura de Freud para muito além da Psicologia das Massas

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João Vitor Santos

Para Patrícia Ferreira, Ernesto Laclau resgata o potencial político do pensamento freudiano

A psicologia também se apropria do conceito de populismo de Ernesto Laclau. Embora o autor não chegue a ser leitura corrente, é comum ver seus textos em prateleiras de psicólogos e psicanalistas. E não é ao acaso, pois o próprio Laclau revela a influência da obra de Sigmund Freud na constituição de seu pensamento. A doutora em Psicologia Social Patrícia Ferreira se diz “tentada” a afirmar que a “teoria basal da articulação em A razão populista esteja no Psicologia das Massas de Freud. Porém, é um ponto de vista influenciado pelo ‘lugar’ de onde realizo a leitura do texto e, além disso, não podemos esquecer a ‘crítica’ que faz a Marx e a referência a Gramsci”, ressalva.

Ainda assim, Patrícia considera possível traçar equivalências entre os grupos descritos no pensamento freudiano e a estruturação do conceito de populismo. O que não quer dizer que Laclau faça uma apropriação direta à obra de Freud. “É aí que Laclau imprime a sua diferença, pois, de modo ousado, parte do Psicologia das Massas, coloca-o em diálogo com conceitos emprestados de Lacan, traz a conversa para pensadores das ciências sociais, política, linguística, filosofia e coloca, sem hesitar e sem muito pudor, a psicanálise para trabalhar com a política”, avalia.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a psicóloga ainda explica como “os conceitos de Laclau contribuem para ampliar e, em certo sentido, avançar algumas formulações da psicanálise”. Para ela, o pensador traz outra perspectiva à ideia de alienação associada às massas. “A (re)leitura de Laclau da ‘obra social’ de Freud introduz elementos que, ao mesmo tempo em que legitimam o legado freudiano, fazem uma associação que permite vislumbrar ‘massas’ um pouco para além do Psicologia das Massas”, completa.

Patrícia do Prado Ferreira é graduada em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista - Unesp, doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e pós-doutoranda no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - USP. É pesquisadora do Laboratório de Psicanálise e Sociedade da USP, do Núcleo de Psicanálise e Política da PUC-SP e do Núcleo de Psicanálise e Sociedade da PUC-SP.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que conexões podemos estabelecer entre o pensamento de Ernesto Laclau com as perspectivas de Jacques Lacan e Sigmund Freud ? É possível afirmar que Laclau se associa mais a uma das linhas? Qual e por quê?
Patrícia Ferreira – A leitura de A razão populista de Ernesto Laclau permite dizer que, nesse momento de sua teoria, as elaborações de Freud e Lacan são fundamentais. Acredito ser mais difícil se apropriar de seu trabalho sem ter conhecimento de alguns conceitos que Laclau empresta da psicanálise, pois, na maioria do tempo, o autor estabelece uma relação direta com o pensamento de Freud e/ou Lacan. É tentador afirmar que a teoria basal da articulação em A razão populista esteja no Psicologia das Massas de Freud. Porém, é um ponto de vista influenciado pelo ‘lugar’ de onde realizo a leitura do texto e, além disso, não podemos esquecer a ‘crítica’ que faz a Marx e a referência a Gramsci .

É possível estabelecer equivalências (para usar um dos seus significantes) entre a estrutura dos grupos descritos na obra freudiana e a estruturação do populismo. Isso não quer dizer que sejam exatamente a mesma coisa, pois não são. E acho que é aí que Laclau imprime a sua diferença, pois, de modo ousado, parte do Psicologia das Massas, coloca-o em diálogo com conceitos emprestados de Lacan – significante, nomeação, vazio, traço, para citar alguns –, traz a conversa para pensadores das ciências sociais, política, linguística, filosofia e coloca, sem hesitar e sem muito pudor, a psicanálise para trabalhar com a política – o que não é sem crítica ou incômodo para a psicanálise.

Apesar de Laclau não ser um psicanalista, tenderia a associar sua teoria mais à de Freud, justo porque o apreendo com a impressão de que seu ponto de partida pode ser tomado como freudiano. Mas é ponto de partida, porque Laclau o ultrapassa com suas articulações e esse é um juízo particular... E, ademais, se até Lacan se dizia freudiano, não é?

IHU On-Line – Em que medida os conceitos de sociedade, sujeito e política contribuem para o campo da psicanálise? E como compreender esses conceitos desde a psicanálise?
Patrícia Ferreira – Sociedade, sujeito e política não são conceitos que estão fora do campo psicanalítico, eles estão e participam da psicanálise. Desde as histéricas que contavam suas histórias a Freud, há elementos que nos permitem dizer que a psicanálise sempre esteve implicada com o social. Isso está posto em Freud, como também está em Lacan. Os conflitos dos neuróticos de Freud estavam relacionados mais ao dever do Outro, muitas vezes representado pela figura paterna, o pai de família (e também a Igreja), que estabeleciam a regulação dos modos de gozo em renúncias pulsionais.

Freud disse da impossibilidade de dissociar a psicologia individual da psicologia social e Lacan alertava aos psicanalistas para que estivessem atentos ao seu tempo, aos acontecimentos, à subjetividade de sua época. O sujeito, como evidencia a psicanálise, é efeito do significante, está imerso e emerge na linguagem. O inconsciente é tomado como estrutura, lugar do Outro simbólico, e é também saber, quando se trata do que da estrutura se articula no discurso do Outro. O Outro (simbólico) é invariável em sua estrutura, mas é também suscetível às mudanças que repercutem em outros termos que compõem o sujeito, especialmente sobre o eu. E essas coisas todas atravessam o discurso dos sujeitos, dos analisandos.

Uma prova disso é que a polarização, decorrente da crise política que vivenciamos, apareceu nos consultórios, nas sessões de análise. É absolutamente comum aos psicanalistas encontrarem em suas escutas evidências dessas transformações no Outro social, inclusive no modo com que os sintomas são relatados. As histéricas de Freud falavam, entre outras coisas, desse conflito com o tempo moderno. E os sujeitos continuam falando disso, do social, cada um de acordo com sua época, com as questões de seu tempo.

IHU On-Line – Quais as contribuições dos conceitos de Laclau para a psicanálise?
Patrícia Ferreira – Os conceitos de Laclau contribuem para ampliar e, em certo sentido, avançar algumas formulações da psicanálise. Ou, ainda, para demonstrar um dos modos com que a psicanálise pode contribuir para os estudos políticos. Digo isso porque não percebo que os conceitos de Laclau foram incorporados pela teoria psicanalítica. Na verdade, o que observo é mais certo preconceito da psicanálise e de alguns psicanalistas em relação à teoria de Ernesto Laclau. É mais fácil encontrar um psicanalista que não tenha tido contato com o que ele escreveu do que um que tenha lido sua obra. Claro que existem exceções e poderia citar algumas. Mas o curioso é que, neste sentido, se a gente tentar compreender por que isso acontece com Laclau, podemos pensar na ideia que ele empresta da psicanálise, da representação significante.

O que quero dizer é que suas propostas são representadas por um significante e esse significante é ‘populismo’. Laclau é “o cara do populismo” e, muitas vezes, é até aí que sabem sobre ele, com o agravo dos sentidos pejorativos comumente atribuídos ao populismo. A partir da psicanálise, acredito que essa associação pode ser diretamente remetida ao Psicologia das Massas de Freud, que ele utiliza bastante, como disse anteriormente. Acho que é aí que pode haver certo receio em ir adiante, pois a massa tem todas as características da alienação, do cheio de sentido – a um líder, por exemplo – que a psicanálise justamente intenta ultrapassar e essa é certa função do trabalho psicanalítico.

Mas é relevante reconhecer o trabalho realizado por Laclau que, em minha opinião, resgata o potencial político freudiano, tantas vezes esquecido pelos psicanalistas – e, outras vezes, bem lembrado pela teoria crítica e também pelas ciências sociais. E, ainda, é preciso ressaltar que a (re)leitura de Laclau da ‘obra social’ de Freud introduz elementos – como as identidades populares ou os laços de equivalência – que ao mesmo tempo em que legitimam o legado freudiano, fazem uma associação que permite vislumbrar ‘massas’ um pouco para além do Psicologia das Massas, ampliando o diálogo com outras teorias e até com Lacan, especialmente o do campo da ex-tensão.

IHU On-Line – Como compreende a ideia de “identidades populares”? Em que medida esse conceito se associa à perspectiva de “povo” trabalhada por Laclau?
Patrícia Ferreira – Laclau define que a identidade popular é “o agente precipitante do laço de equivalência”, operador fundamental da passagem de demandas individuais para demandas populares. Sendo a identidade popular aquilo que se expressa a partir de um ‘significante vazio’ que irá fazer a função de denominador comum de união de demandas, mas que tem a característica de não excluir diferenças. Ele não elimina o que é particular de cada grupo ou a luta de um grupo, mas estabelece uma relação na qual algo é comum em quaisquer dos grupos que se encontrem em potencialidade equivalencial, digamos.

Sem esse ‘denominador comum’ como, por exemplo, a oposição a um regime opressor, não se estabelecem ‘identidades populares’. Se não existem essas identidades, as relações de equivalência se estabelecem em torno da solidariedade, por isso é preciso que haja um movimento que ele chama de ‘cristalização’ de uma cadeia de equivalências, a partir da qual se constituirá o ‘povo’. Então, podemos afirmar que há algo que ‘identifica’ e também que nomeia o povo, concebendo essa categoria que se articula nas e pelas pluralidades, um significante capaz de servir como ancoradouro de demandas. O povo, nesse sentido, é uma identidade discursiva que emerge a partir do trabalho de equivalência que desempenham as identidades populares.

IHU On-Line – Quem é e como você observa o “sujeito interpassivo”, trabalhado por Slavoj Žižek ? Quais as associações e dissociações que podemos fazer com a forma que Laclau conceitua o sujeito?
Patrícia Ferreira – O sujeito interpassivo é uma ideia pouco explorada por parecer ser bastante específica, mas, além de se relacionar com a estrutura dos sujeitos, é um modo de falar do sujeito na atualidade, especialmente quando Žižek se dispôs a pensar a relação dos sujeitos com a tecnologia e o ciberespaço. Ele tem alguns trabalhos sobre isso no fim dos anos 1990. Nesse período, Žižek se dedicou aos problemas da interatividade e falou da expectativa criada de que com ela os indivíduos poderiam sair da posição de espectadores passivos e participar ativamente do ‘espetáculo’, inclusive modificando as regras. Ele questionou se nessa interação entre o homem e as coisas, se isso da interatividade, não colocaria em cena o oposto, que seria o da máquina ser ativa no lugar do sujeito. Žižek estabelece uma relação disso com o fetichismo da mercadoria em Marx, com a crença fetichista, das relações sociais entre as coisas, dinâmica em que são as coisas que creem e não as pessoas – e mesmo que se saiba que coisas não creem, mantém-se a ilusão fetichista.

Disso, Žižek sugere o sujeito-suposto-crer evidenciando as relações do sujeito com o outro e o Outro, nas quais é possível estabelecer esse deslocamento da crença. Acreditar que alguém faz algo por nós é suficiente para a efetivação da crença, podemos dizer. Os exemplos que ele usa repetidas vezes são o das carpideiras nos funerais que choram a morte de alguém por outrem; e o dos risos de programas televisivos que riem por nós. O sujeito interpassivo tem, então, essa característica de deslocar a atividade para o objeto. Acho que é o que podemos dizer para minimamente localizar o conceito.

Agora, como isso se relaciona com o sujeito em Laclau? As duas características que comumente são associadas a sujeito em Laclau (com Chantal Mouffe ) são a da relação com a discursividade e pré-discursividade e as posições de sujeito. Sendo a segunda derivada da primeira e sendo o sujeito em relação com a discursividade essencialmente descentrado e plural – o que o desliga de associações diretas às categorias identitárias, ao mesmo tempo em que permite ao sujeito transitar entre diferentes, e até mesmo antagônicas, identidades. O descentramento do sujeito, por sua vez, coloca sua dimensão contingente, histórico-social ou trans-histórica, permitindo que ocupe diferentes posições no interior da discursividade. Daí porque é possível a construção de um discurso hegemônico a partir da lógica de equivalência.

Compreendo que a semelhança que se pode estabelecer entre o sujeito interpassivo e o sujeito do modo como é tratado em Laclau, seguramente é a relação de ambos com o social. E isso os associa também ao modo como a psicanálise concebe o sujeito em sua trans-historicidade, na relação entre estrutura e história. Isso não quer dizer que de tempos em tempos a gente tenha ‘sujeitos inéditos’, pois acreditar nisso sobreporia a alienação histórica à alienação estrutural. Mas, de certa forma, podemos compreender que a alienação histórica é uma espécie de ‘envelope’ formal de estrutura, que se modifica de sujeito a sujeito, de sociedade a sociedade.

IHU On-Line – Como populismo e democracia se articulam na América Latina historicamente? E como essa relação é atualizada para os séculos XX e XXI?
Patrícia Ferreira – Respondo percorrendo o caminho que Laclau realiza em seu estudo. Ele considera que o pontapé do populismo na América Latina teve uma configuração de populismo de Estado, no qual se reforçava a centralidade do Estado contra as oligarquias latifundiárias. No começo do século XX, esse populismo político se deu por movimentos urbanos de classes médias e populares que se encontravam em ascensão, decorrente da expansão econômica e que, por isso, começaram a reivindicar políticas redistributivas e participação política. Essas identidades advieram do liberalismo oligárquico que se estabeleceu pós-independência, composto por um sistema eleitoral regido pelos senhores de terra com suas formas de políticas clientelistas. Em decorrência dessa estruturação, as classes médias e baixas somavam demandas que não estavam sendo atendidas e que acabaram se cristalizando em nomes de lideranças – foi o que ocorreu com o nome de Ruy Barbosa , no Brasil, e de Arturo Alessandri Palma , no Chile.

Depois, Laclau considerou que o populismo latino-americano se tornou mais radical com a crise de 1930, porque o potencial redistributivo foi limitado e as demandas democráticas foram cada vez menos atendidas. Aí ocorreu uma fratura entre liberalismo e democracia, que antes encontravam-se mais alinhados. Nesse período, surgiram governos como o de Getúlio Vargas aqui, o de Perón na Argentina e o Movimento Revolucionário na Bolívia .

Quando realiza o pulo para a história da América Latina recente, no século XXI, Laclau considera que há a combinação de duas tradições: os regimes nacionalistas e populares agora se associam ao Estado liberal – o que tem traços do populismo ‘inaugural’ latino-americano. E isso dificulta o antagonismo de forças, porque provoca certo consenso. Laclau disse, para trazer para nosso contexto, que o lulismo elaborava um equilíbrio entre uma nova participação de massas e a transformação do Estado, mas considerava Lula um populista ‘parcial’. Ao mesmo tempo, afirmava que o kirchnerismo era um representante do populismo de esquerda na América Latina, pois os atores que impulsionavam as mudanças constituíam um amálgama de grupos heterogêneos.

IHU On-Line – Desde a perspectiva psicanalítica, como compreender líderes políticos de nosso tempo com orientações tão distintas, como por exemplo o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o papa Francisco? Em que medida podemos afirmar que são figuras populistas? O que os distingue e o que os aproxima?
Patrícia Ferreira – A compreensão da liderança em psicanálise está associada à ideia de ‘Um unificante’, homogeneizante, e não faz diferença se as orientações são distintas, porque o que está em cena é a posição de assujeitamento ao líder e também a identificação com os seus semelhantes. Portanto, esse ‘Um’ opera em formações coletivas clássicas, associando-se às identificações com o ideal do eu e o eu ideal. Por isso, estruturalmente, não poderíamos diferenciar Donald Trump e o papa Francisco. O que poderia os tornar (e os torna, claro) distintos são suas propostas, aquilo que defendem e a maneira como constroem seus argumentos.

Trump pode ser compreendido como representante do populismo de direita. Ele reforça a cisão entre ‘nós’ e ‘eles’, foca-se no populismo étnico, utiliza a pauta da imigração, ao mesmo tempo em que critica políticas comerciais das elites que impactam diretamente os empregos nos Estados Unidos às custas de enriquecerem as grandes empresas etc. Nesse sentido, ele funciona como aglutinador de demandas, serve como o ancoradouro de demandas e, com isso, faz existir uma ‘identidade popular’.

O papa Francisco pode até ter um jeitão que nos instigaria a considerá-lo ‘populista’ (e no sentido vulgar do termo a tendência é tomá-lo assim) e, muitas vezes, parece ter potencialidade em condensar demandas. Mas, ao que tudo indica, as identificações que se estabelecem com seus posicionamentos tendem a cair muito mais na vertente solidária e talvez não seja, até o momento, o suficiente para a cristalização de cadeias de equivalência. A ver o que está por vir.■

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