Edição 508 | 07 Agosto 2017

De política vibrante a instrumento de governança

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João Vitor Santos | Tradução: Luís Marcos Sander

David Howarth analisa de que forma Laclau, através de seu populismo, explora o “primado da política” na sociedade sem cessar a pluralidade em detrimento da representatividade

Partindo da ideia de que populismo, segundo Laclau, é algo que emerge de desejos coletivos que se insurgem contra um poder hegemônico e institucionalizado, podemos pensar que o movimento populista é algo organizado. No entanto, a desordem é parte essencial ao populismo. O professor David Howarth faz questão de destacar que manifestações dessa ordem são múltiplas, como a Primavera Árabe. “As várias concretizações da Primavera Árabe, cada uma diferente, exibem muitas das marcas do populismo”, destaca. São, segundo o professor, movimentos da política de hoje com demandas plurais e interesses em comum que materializam o conceito de democracia radical.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Howarth explica que “Laclau sustenta que a democracia radical denota um conjunto de dimensões”, as quais devem ser articuladas entre si. Do contrário, uma dessas perspectivas se sobressai, e o populismo, enquanto movimento contra-hegemônico, cai no erro de elencar apenas demandas que homogeneízam os movimentos. “Ele [o populismo] não pode ser fixado por apenas uma única forma e um único conjunto de instituições.” Logo, produz uma tensão entre as formas de representação.

Afinal, como fazer com que permaneça múltiplo algo que necessita ser representado? Eis, na visão de Howarth, uma das grandes provocações de nosso tempo. “Um dos maiores desafios com que se defrontam novos movimentos populistas de tendência esquerdista na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina é como se transformar de uma política vibrante de protesto em um instrumento eficaz, plural e democrático de governança”, sem se institucionalizar. Para ele, é preciso manter a capacidade de preservar “seus aspectos radicais e democratizantes” ao mesmo tempo.

David Howarth é professor do Departamento de Governo e codiretor do Centro de Estudos Teóricos da Universidade de Essex, no Reino Unido. Trabalha com teorias pós-estruturalistas da sociedade e da política, concentrando-se especialmente no estudo empírico das ideologias e discursos políticos. Atualmente está trabalhando em dois projetos de livros: um sobre as temáticas pós-estruturalistas de teoria social e política – Poststructuralism and After (Londres: Palgrave) – e outro sobre governança de aeroportos no Reino Unido – The Politics of Sustainable Aviation (Manchester: Manchester University Press).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compreender o pensamento de Laclau a partir de sua teoria política pós-marxista alicerçada na teoria materialista do discurso? E quais as contribuições de Mouffe?
David Howarth – A preocupação de todos os escritos teóricos de Laclau era desenvolver uma abordagem marxista da política e da ideologia que pudesse evitar os problemas do determinismo econômico e do reducionismo de classe. Expressando-o em termos simples, ele procura, assim, contestar e reformular a ideia de que uma base econômica, governada por leis e lógicas econômicas precisas, determina ou estrutura formas políticas – como o Estado e suas intervenções (decisões, políticas etc.), por exemplo –, bem como as ideias e formas de consciência dominantes na sociedade. Ele também questiona a ideia de que todas as formas de subjetividade humana – nossa identidade e capacidade de agir – são decisivamente moldadas por nossa localização na estrutura de classe das sociedades, onde esta última é determinada unicamente pela posse e controle da propriedade, bem como pelo acesso diferenciado aos meios de produção.

Entretanto, esses esforços produziram fases diferentes, com ênfases diferentes. Dizendo-o de modo muito simples, suas várias contribuições ao desenvolvimento da teoria marxista podem ser divididas em três fases básicas. Primeiro, em textos como Politics and Ideology in Marxist Theory [Política e ideologia na teoria marxista] (1977) , ele procurou elaborar uma teoria não reducionista da ideologia e da política confrontando-se com a obra de Antonio Gramsci e Louis Althusser , e outros proponentes da escola althusseriana, incluindo Étienne Balibar e Nicos Poulantzas . Laclau sustenta que nem todos os elementos ideológicos têm “uma pertença de classe necessária” (Laclau, 1977, p. 159), mas que certos apelos e interpelações – p. ex., referentes à nação, ao povo, à raça ou à religião – podem ser conectados com projetos políticos radicalmente diferentes.

Depois, em Hegemony and Socialist Strategy [Hegemonia e estratégia socialista] (1985) , escrito em coautoria com Chantal Mouffe, e em New Reflections on the Revolution of Our Time [Novas reflexões sobre a revolução de nosso tempo] (1990) , ele articulou uma teoria claramente pós-marxista da hegemonia e da política que incorpora diferentes aspectos da filosofia pós-estruturalista (p. ex., dos escritos de Derrida , Foucault e Lacan ). Essa abordagem rompe decisivamente com o determinismo e essencialismo residual do paradigma marxista ao elaborar uma concepção distintiva de discurso e hegemonia. Rejeitando uma abordagem puramente linguística ou cognitiva da análise de discurso, Laclau e Mouffe definem o discurso como uma prática articulatória que conecta elementos contingentes – linguísticos e não linguísticos, naturais e sociais – em sistemas relacionais, em que a identidade dos elementos é modificada em decorrência da prática articulatória.

Uma condição-chave dessa abordagem é que todos esses elementos são contingentes e não fixos, de modo que seu sentido e sua identidade só são parcialmente fixados por práticas articulatórias. Sistemas incompletos de sentido e prática são os resultados de tais práticas. E, finalmente, em textos como Emancipation(s) [Emancipação e diferença] (1996) e On Populist Reason [A razão populista] (2005) , ele refina mais ainda essa abordagem pós-marxista da análise política através de uma confrontação mais profunda com a filosofia desconstrucionista e a interpretação da psicanálise freudiana proposta por Lacan.

Construção e representação

Cada um desses desdobramentos teóricos se vincula grosso modo com uma série de questões prementes na política contemporânea: a construção e representação de demandas da classe trabalhadora e demandas populares em um projeto expandido para a transformação socialista; o desenvolvimento de um projeto para a democracia radical como maneira de articular as demandas e identidades associadas com os novos movimentos sociais; e, finalmente, uma ênfase na criação de novas formas de “universalismo contingente” face a uma preocupante fragmentação da política radical causada pela ascensão de novas formas de particularismo e identidade/diferença.

Mas, embora seja possível delinear e mapear essas mudanças na abordagem do estudo da ideologia e da política por parte de Laclau, também há continuidades significativas. Cada uma das diferentes fases nos textos de Laclau é moldada pela busca de uma explicação antiessencialista e não reducionista de relações e práticas sociais. Portanto, todas as suas intervenções procuram dar mais espaço para o papel relativamente autônomo da política e da ideologia na explicação de processos sociais. E, em cada estágio de seus escritos, ele explora e às vezes integra correntes não marxistas de pensamento em sua abordagem.

IHU On-Line – Qual o conceito de hegemonia para Laclau? Como constitui esse conceito a partir da leitura de Antonio Gramsci?
David Howarth – A hegemonia, no pensamento de Laclau, não tem a ver apenas com a dominação ou liderança política, concebidas em termos estreitos. E tampouco tem a ver apenas com o Estado moderno e as lutas pelo poder estatal, que muitas vezes só envolvem relações de força e coerção. Radicalizando a obra de Antonio Gramsci ao desconstruir seus compromissos residuais com um núcleo econômico decisivo e a reafirmação de uma classe social fundamental como o agente principal da mudança social, Laclau se refere, antes, à construção de projetos e ajuntamentos amplos que possam desenvolver e instituir novos valores e relações sociais, bem como políticas públicas e formas de governança.

Assim, o conceito de hegemonia elucida a criação e reprodução de sistemas sociais ao enfocar a maneira como demandas, identidades e grupos são entretecidos em projetos animados por um discurso comum. Esse discurso comum se mantém unido por sua oposição a um conjunto nomeado de práticas, ideias e políticas. A oposição é, assim, cristalizada em significantes que vinculam esses elementos. “Para os muitos, e não para os poucos” – o slogan do Partido Trabalhista na recente eleição geral no Reino Unido – é um bom exemplo desse tipo de representação. Em termos técnicos, tais slogans funcionam como “significantes vazios”, que resultam de um processo em que uma demanda ou sinal particular passa a significar o que é universal nas diferentes demandas que são unidas umas com as outras. A unidade e identidade são produzidas por meio de sua oposição a um outro comum. Os significantes vazios salientam a importância da retórica, pois invocam os tropos da catacrese e da sinédoque e, portanto, o papel central do ato de “nomear” – tanto a si mesmo quanto ao outro –, bem como a maneira como uma “parte” pode representar o “todo”.

Entretanto, dentro de tais coalizões ou ajuntamentos se dá espaço para graus de autonomia e respeito pela diferença. Temos, então, as lógicas interagentes de equivalência e diferença. Equivalências entre demandas e identidades diferentes são criadas ao se nomear outros – ou um “Outro” no singular – que bloqueiam sua consecução. Assim, os valores da igualdade e solidariedade são reafirmados dessa maneira. Contudo, as diferenças não são completamente obliteradas na criação de um projeto ou coalizão mais universal, pois elas precisam ser respeitadas e valorizadas. Portanto, a liberdade e o pluralismo também são valorizados e endossados.

Mas há perigos à espreita. As equivalências podem se dissolver e dissipar depois que vitórias parciais sejam alcançadas. E todas as vitórias nessa abordagem são, até certo ponto, parciais, mesmo que sejam substanciais – não há uma emancipação última, mas apenas uma série de emancipações. As diferenças podem facilmente se solidificar em novas formas de hierarquia e divisão social, depois que um projeto alcança certo grau de poder e hegemonia. Demandas equivalenciais podem ser desconectadas e absorvidas em sistemas de poder, e sua radicalidade pode ser, assim, mitigada. Em suma, os jogos de equivalência e diferença são estrategicamente necessários em um mundo sem regras fixas ou parâmetros nítidos, mas eles são sempre arriscados e perigosos.

Concepções de hegemonia

No desenvolvimento da teoria de Laclau, a categoria de hegemonia foi um dispositivo central para juntar os diferentes elementos e conceitos de sua abordagem. Entretanto, há formulações e ênfases diferentes nos escritos dele nesse tocante. Em Hegemonia e estratégia socialista, a hegemonia é um tipo de prática que une diferentes demandas e identidades na construção de projetos hegemônicos. Essa prática articulatória, por sua vez, pressupõe o caráter incompleto e aberto do social, acoplado à presença de forças antagonísticas e à instabilidade das fronteiras que as separam. Nessa concepção, é só a presença de uma vasta área de elementos flutuantes e a possibilidade de sua articulação em formações opostas que torna possível uma prática hegemônica. Sem equivalência e sem fronteiras, é impossível falar rigorosamente de hegemonia.

Em seus textos mais recentes, a noção de hegemonia está estreitamente ligada ao funcionamento dos significantes vazios. Em A razão populista, por exemplo, a hegemonia é descrita como uma operação em que “uma diferença [...] assume a representação de uma totalidade incomensurável”, de modo que na consequente interação entre universalidade e particularidade, onde a totalidade encarnada é um objeto impossível, a identidade hegemônica assume a forma de um significante vazio.

IHU On-Line – Quais os limites e as potencialidades do conceito de populismo, segundo Ernesto Laclau, para compreendermos a política de nosso tempo?
David Howarth – Os conceitos de discurso e hegemonia são as pedras angulares da abordagem teórica de Laclau, e o projeto para a democracia radical é a alternativa de Laclau e Mouffe para o neoliberalismo e o capitalismo irrestrito. Mas é o populismo que constitui o foco substantivo central de sua obra.

Logo de início, é importante acentuar que a abordagem do populismo de Laclau difere de teorias rivais em aspectos fundamentais. Em termos teóricos, ele rejeita propostas ecléticas que atribuem uma falsa unidade à política populista subsumindo movimentos e práticas extremamente diversos sob sua bandeira. Ele também contesta abordagens que reduzem a política populista a impulsos irracionais e retrógrados, ou a interesses e localizações de classe dados previamente. O populismo não é uma fachada que bloqueie ou distorça as lutas da classe trabalhadora ou autoafirmações nacionalistas, como pretendem algumas pessoas.

Em vez disso, com base em sua teoria do discurso e da hegemonia, Laclau sustenta que o populismo mostra um modo distintivo de articular identidades políticas e de construir coalizões. As lutas populistas colocam em primeiro plano a dimensão política na sociedade – a divisão da sociedade em dois campos – e implicam a junção de demandas expressas por aqueles que estão marginalizados e excluídos dos sistemas e discursos dominantes. Além disso, líderes carismáticos podem encarnar essa oposição comum fornecendo pontos com os quais as pessoas podem se identificar e nos quais podem investir. Dessa maneira, identidades políticas populares e vontades coletivas podem ser forjadas e ativadas, e novas relações e práticas sociais podem ser instituídas.

Portanto, Laclau contesta a concepção de que os líderes populistas são sempre demagogos de direita ou que os partidos e movimentos populistas são inerentemente antidemocráticos. Ele sustenta, pelo contrário, que o populismo é um ingrediente essencial das sociedades democráticas modernas, porque funciona para representar a voz marginalizada dos oprimidos na sociedade. Isso, por exemplo, é precisamente o que os líderes de Podemos , Syriza e outros movimentos populistas vêm reivindicando e tentando fazer atualmente. Para muitos, eles agora simbolizam as esperanças das pessoas que foram excluídas e deixadas para trás em decorrência da política de austeridade, bem como daquelas que aspiram a algo novo e diferente.

A estratégia teórica de Laclau nos ajuda a elaborar conceitos que podem elucidar toda uma gama de manifestações populistas. Tomando-a por base, podemos distinguir entre várias formas e práticas, caracterizando algumas como populistas e outras não. Por exemplo, um demagogo populista que apela consistentemente para “o povo”, ou um partido político que faz afirmações e intervenções ambíguas e distorcidas, mas não estabelece equivalências entre demandas heterogêneas, não pode ser considerado populismo nesse esquema.

Inconvenientes em potencial

Contudo, também há inconvenientes em potencial, especialmente quando Laclau retorna aos fenômenos empíricos armado com as categorias que foram elaboradas. Neste ponto, sustento que há uma ambiguidade produtiva (ainda que potencialmente problemática). Populismo é tanto o nome e representante da própria política quanto um tipo de discurso ou objeto político, o que se evidencia, por exemplo, na exposição de Laclau a respeito de variações populistas, seja o peronismo na Argentina ou o People’s Party nos Estados Unidos, que podem ser examinados em termos empíricos.

Isso exige um esclarecimento conceptual adicional do populismo e de sua aplicação. Assim, proponho distinguir entre: 1) populismo como ideologia ou dimensão ideológica de discursos e relações sociais; 2) formas equivalenciais e institucionais da política (que podem ser distribuídas em um espectro limitado por esses dois ideais reguladores); e 3) formas autoritárias e excludentes da política equivalencial, por um lado, e política equivalencial popular-democrática e/ou democrática radical, por outro.

IHU On-Line – Partindo do conceito de Laclau, é possível se constituir a ideia de populismo de direita e populismo de esquerda? Por quê? Como?
David Howarth – Laclau acentua que o populismo assume formas múltiplas. Ele pode ser facilmente vertido em uma política de direita que culpa os imigrantes e outros bodes expiatórios pelo desemprego, estagnação econômica e piora dos serviços públicos. Não precisamos olhar muito longe para ver esse tipo de política na Europa de momento. Mas a reafirmação de um populismo progressista por parte de Laclau também implica um compromisso forte com a democracia, ainda que em um sentido mais radical do que nossos arranjos neoliberais atuais. Embora Laclau provenha da tradição marxista, sua teoria política pós-marxista apoia resolutamente os valores da democracia, igualdade e liberdade política. Com efeito, o que ele e Chantal Mouffe chamam de projeto para a “democracia radical e plural” exige a ampliação e aprofundamento de valores como igualdade e liberdade para além das instituições formais do Parlamento e do Estado.

Portanto, tanto Laclau quanto Mouffe se referem às diferenças entre populismo “de direita” e “de esquerda”. Mas, falando em termos rigorosos, isso não é algo que possa ser derivado ou deduzido de sua abordagem teórica. Para eles, com efeito, o populismo não é absolutamente um objeto político ou uma entidade política – um movimento, partido, ideologia etc. –, e sim uma dimensão de todas as relações sociais. Assim, se tomarmos Laclau ao pé da letra, populismo de esquerda e de direita é mais ou menos sinônimo de política de esquerda ou de direita (embora isto, naturalmente, implique perguntas a respeito dessa distinção).

Em vez disso, portanto, em minha interpretação da obra deles é possível isolar e extrair a ideia de que formas e apelos populistas podem ser ligados a projetos políticos e movimentos sociais radicalmente diferentes. Pressupondo isso, o que se poderia chamar de lutas “popular-democráticas” ou “democráticas radicais” podem, portanto, ser contrapostas a estilos mais autoritários, hierárquicos ou excludentes de política. As lutas popular-democráticas, por sua vez, podem ser distinguidas de outros tipos de política, incluindo campanhas intensas em torno de um único assunto, assim como formas mais institucionais e pragmáticas de política, que muitas vezes implicam o fechamento de acordos e soluções conciliatórias (embora todas essas formas políticas possam ter em comum algumas “semelhanças de família”, para usar a terminologia de Wittgenstein).

IHU On-Line – Qual a importância do contexto (e história) político(a) da América Latina para compreender o conceito de populismo para Laclau? E quais as distinções da experiência política latina com a de países da Europa?
David Howarth – É evidente a partir de seus escritos iniciais que toda a teoria política de Laclau foi fortemente moldada por suas experiências sociais e políticas na América Latina, particularmente de sua terra natal, a Argentina. Em palestras, conversas e textos publicados, o caso do peronismo , especialmente na década de 1950 – o momento, disse-me ele certa vez, em que os significantes começaram a “flutuar” –, ocupa algo assim como um status paradigmático na elaboração de seu pensamento. É claro que os contextos variam consideravelmente, e Laclau estava atento a essas particularidades.

Em alguns escritos, ele fez uma divisão tendencial entre lutas “democráticas populares” e “democráticas radicais”, que, em certo sentido, refletia as diferenças entre a América Latina e a Europa, falando em termos amplos: a América Latina marcada em muitos casos pelo surgimento de formas autoritárias e clientelistas de política, e a Europa pelo desenvolvimento mais gradativo e desigual de instituições e práticas democráticas mais liberais. Ele também mostrou como diferentes demandas “liberais”, como, por exemplo, a luta por direitos humanos básicos em países latino-americanos durante as décadas de 1970 e 1980, puderam se tornar demandas populares e, assim, passar a fazer parte da identidade popular.

Por fim, Laclau também insiste em pluralizar nossa compreensão de formas democráticas modernas, de modo que as instituições democráticas liberais não esgotem – e não deveriam esgotar – nosso conceito e compreensão de democracia.

IHU On-Line – Como, a partir da perspectiva do populismo de Laclau, compreender os chamados novos movimentos sociais, como os que derivam da Primavera Árabe , Occupy Wall Street , entre outros?
David Howarth – Em geral, deveríamos observar que a explicação do populismo proposta por Laclau é sinônimo de suas tentativas de entender a lógica da mobilização coletiva e da construção de identidades populares. Com efeito, ele às vezes junta esses aspectos em sua compreensão do próprio conceito de política. Quanto aos casos específicos mencionados na pergunta, eles são, é claro, mobilizações e intervenções muito diferentes, embora o contexto global mais amplo – a ascensão e consolidação do que se poderia chamar de “neoliberalismo global” e os desdobramentos geopolíticos associados com essa era – forneça efetivamente algumas conexões frouxas entre eles.

Laclau não escreveu muita coisa diretamente sobre esses novos acontecimentos e processos, embora seus alunos e alunas na Escola de Análise do Discurso de Essex tenham feito isso. As várias concretizações da Primavera Árabe, cada uma diferente, exibem muitas das marcas do populismo: o entretecimento de várias demandas articuladas e dirigidas a elites e regimes (muitas vezes) corruptos e escleróticos por movimentos e campanhas, pacíficos e às vezes violentos. Também é possível ver o movimento Occupy nesses termos.

IHU On-Line – Desde a perspectiva de Laclau, como compreender o que se tem chamado de retomada da direita nos governos de países da América Latina, como na Argentina e no Brasil, e até mesmo ascensão de líderes conservadores na Europa e a própria eleição de Donald Trump nos Estados Unidos?
David Howarth – Como observei, Laclau distingue entre populismo de esquerda e de direita, e entre projetos hegemônicos insurgentes, que operam por meio da lógica equivalencial, e formas mais institucionais de política, que são marcadas pela preservação de sistemas dominantes, mostrando muitas vezes lógicas complexas de diferença na construção e reprodução do poder. A ascensão de Donald Trump e o sucesso de outros partidos de direita na Europa, como, por exemplo, o UKIP de Nigel Farage no Reino Unido e a FN de Marine Le Pen na França, podem ser caracterizados como concretizações variáveis de estilos autoritários e excludentes de populismo.

Embora exibam uma postura anti-establishment, bem como um modo equivalencial de associar diferentes demandas – p. ex., demandas anti-imigração e anti-União Europeia, acopladas com conclamações a um maior protecionismo das indústrias nacionais e serviços públicos etc. –, a função delas tem sido primordialmente defender elementos importantes do status quo, especialmente a lógica dominante do crescimento econômico, bem como toda uma gama de interesses próprios no Estado, na economia e na sociedade como um todo.

IHU On-Line – O conceito de populismo é uma forma de Laclau explorar o “primado da política” na sociedade. Mas em que medida sua metodologia de análise tensiona o modelo de política representativa? Como ele trata a chamada “crise de representatividade”? E como vislumbra a “democracia ideal”?
David Howarth – Essas são perguntas complexas e difíceis, que levantam questões-chave para a política radical atualmente. Nos escritos de Laclau e Mouffe, elas podem ser abordadas por meio do conceito de democracia radical, que é em si mesmo rico e multiforme. Mas no tempo e espaço limitados que tenho à minha disposição, não tenho condições de explorar todas elas detalhadamente. Em vez disso, irei me concentrar em uma tensão produtiva que surge na obra de Laclau.

Em uma linha de pensamento, Laclau sustenta que a democracia radical denota um “conjunto de dimensões”, cada uma das quais carece de algo, e, quando tomadas em conjunto, elas não se encaixam perfeitamente. As três concepções são democracia como regime político, isto é, um sistema universal de regras institucionais (p. ex., liberdade e igualdade para todos); democracia como forma particular de subjetividade democrática – a constituição de “o povo”, por exemplo – que Laclau identifica como “populista”; e a conexão entre democracia radical e pluralismo, em que a noção de universalidade é questionada em nome da diferença e da particularidade (Laclau, 2005b, p. 259-261).

Cada uma dessas dimensões é assolada por dificuldades: os princípios e regras da democracia liberal na concepção formal de democracia são estreitos e tênues demais. Eles são, portanto, compatíveis com várias desigualdades na sociedade civil, ao mesmo tempo que também ocultam relações de dominação e hierarquia em nome do universalismo. Uma democracia puramente populista corre o risco de identificar a comunidade com uma seção particular dela, excluindo, assim, o pluralismo e a “interação democrática”. E, finalmente, se a democracia radical fosse equiparada com a simples reafirmação do pluralismo e da diferença, ela privaria o conceito de uma ordem simbólica comum dentro da qual essas reivindicações e queixas pudessem ser reafirmadas.

Assim, Laclau sustenta que a democracia radical necessita de uma articulação política entre essas três dimensões, e não de uma mediação lógica entre elas, ou da lógica da subsunção de duas delas sob uma concepção dominante. Isso deixa uma concepção de democracia e de democracia radical como um conjunto heterogêneo de elementos em tensão mútua, deixando, assim, espaço para articulações contingentes por parte de diferentes atores e forças.

Democracia e liberalismo

Isso é um conjunto de observações sobre a democracia radical. Mas há outra linha de fuga, que é mais proeminente na obra de Laclau intitulada A razão populista. Aqui ele traça uma forte ligação entre populismo e democracia. Isso se deve ao fato de que “a democracia se fundamenta apenas na existência de um sujeito democrático, cujo surgimento depende da articulação horizontal entre demandas equivalenciais” (Laclau, 2005a, p. 171; grifo meu). Uma implicação disso é que a articulação entre democracia e liberalismo é contingente. Isso é assim porque, em primeiro lugar, “outras articulações contingentes também são possíveis, de modo que há formas de democracia fora do marco simbólico liberal (o problema da democracia, visto em sua verdadeira universalidade, torna-se o da pluralidade de marcos que tornam possível o surgimento de um ‘povo’)”, e, em segundo lugar, “visto que o surgimento de um ‘povo’ não é mais o efeito direto de qualquer marco particular, a questão da constituição de uma subjetividade popular se torna parte integrante da questão da democracia” (ibid., p. 167).

Temos, então, duas ênfases diferentes, e as duas contestam a imagem e o modelo tradicionais da democracia representativa, encarnada nas instituições e práticas centrais das democracias liberais modernas. Em ambas, a versão mais “bagunçada” da democracia, e na concepção que enfatiza a dimensão populista acima de outras, o ideal da democracia se torna mais contingente e variável: ele não pode ser fixado por apenas uma única forma e um único conjunto de instituições.

Finalmente, é importante sublinhar que um dos maiores desafios com que se defrontam novos movimentos populistas de tendência esquerdista na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina é como se transformar de uma política vibrante de protesto em um instrumento eficaz, plural e democrático de governança, ao mesmo tempo que mantêm seus aspectos radicais e democratizantes. Expresso nas palavras de Hegemonia e estratégia socialista: como é possível para novas forças populistas negociar “a diferença entre o que poderia ser chamado de uma ‘estratégia de oposição’ e uma ‘estratégia de construção de uma nova ordem’?” (Laclau; Mouffe, 1985, p. 189). Como pode o mito de um novo início – o fim da austeridade e da dívida causadora do próprio fracasso – ser transformado em um novo imaginário social coletivo que possa fornecer uma alternativa genuína e viável para os atuais arranjos neoliberais?

IHU On-Line – Quais os pontos que se aproximam e quais os que afastam o pensamento de Laclau, no campo da política, ao de outros pensadores contemporâneos como Judith Butler , Slavoj Žižek e Antonio Negri ?
David Howarth – Em seus textos e em sua vida acadêmica, Laclau lidou com muitos teóricos contemporâneos, incluindo diálogos importantes com Judith Butler, Slavoj Žižek e Antonio Negri. Uma análise cuidadosa e intensa desses diálogos seria um empreendimento frutífero, principalmente porque eles contribuíram – tanto positiva quanto negativamente – para o desenvolvimento geral do pensamento dele. Entretanto, no pouco tempo que temos, é difícil, se não impossível, oferecer uma leitura comparativa detalhada e exaustiva de Laclau ao lado de Butler, Žižek e Negri, bem como das diferentes tradições teóricas que moldam esses diferentes conjuntos de obras.

Talvez seja melhor salientar a contribuição decisiva da obra de Laclau em relação a esses pensadores. O que é completamente distintivo em sua abordagem? Aqui eu diria que é a radicalização da obra de Gramsci através de uma confrontação com a filosofia e teoria francesa moderna e “pós-moderna” entendida em termos amplos, especialmente com a obra de Jacques Derrida, Michel Foucault e Jacques Lacan. Essa confrontação se beneficiou, por sua vez, por uma apropriação e articulação cuidadosa dos modelos linguísticos elaborados por Ferdinand Saussure , Louis Hjelmslev , Emil Benveniste e outros nas tradições linguística e semiótica.

O resultado dessa articulação complexa foi um foco no “primado da política”, onde a política foi distinguida do social e do econômico e conceptualizada em termos da contestação de relações sociais em diferentes locais, e da instituição de novas normas, valores e regras. O primado da política se concentra, assim, nos processos distintivos da atividade política – contestação e instituição – dando a tais processos e práticas uma prioridade ontológica. A política como arena ou espaço, como o Estado, por exemplo, e a busca de determinantes causais e estruturais fora do político – sejam infraestruturas econômicas ou ação racional – foram, assim, relegadas a um status secundário, embora sua consideração não seja tida como irrelevante.■

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