Edição 507 | 19 Junho 2017

Os gêneros são apenas efeitos de verdade

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Vitor Necchi

Adolfo Pizzinato destaca a emergência de várias possibilidades identitárias que devem ser historicizadas

Desde o final do século 20, intensificou-se a discussão acerca do campo sexo/gênero e “houve uma renovação de vários debates de cunho político identitário sobre quem somos e as razões e contrarrazões dessas configurações existenciais”, afirma o psicólogo e professor Adolfo Pizzinato. “A fragmentação do ‘sujeito moderno’ e a emergência dos estudos sobre o campo das identidades e das identificações na atualidade não são fenômenos deslocados ou isolados em alguma área do conhecimento.” Ao mesmo tempo em que ocorre um declínio da noção de indivíduo como construto unificado, percebe-se “a emergência de várias possibilidades identitárias que devem ser historicizadas”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Pizzinato diz que “é muito limitado, nas formas de vida atuais, conceber uma pessoa nuclear (de características essencializadas e não conflitivas)”. Ele considera que “qualquer analista social minimamente implicado identifica diversas possibilidades de contradições, e multiplicidades de identificação atuais, em todos os coletivos sociais”.

Em relação às pesquisas sobre o tema, Pizzinato observa que “a perspectiva de leitura interseccional permite identificar as particularidades e tensões a que são submetidos determinados grupos, assim como compreender uma pluralidade de agenciamentos possíveis, relacionados à experiência de pessoas em situações de subordinação/insubordinação”.

Não há dúvida de que a violência de gênero deveria ser eliminada ou radicalmente transformada, afirma o psicólogo. “Porém, a forma que propomos de contribuir para o debate é ir além de atrelamentos dicotômicos, tais como: bom-mau, homem-mulher, agressor-ofendida”. Isso decorre do fato de que “os homens estão colocados no contexto da violência em diferentes lugares, inclusive muitas vezes como produto-alvo de padrões de subjetividade orientados por modelos de gênero e de relações hierárquicas de poder que definem a dominação masculina sobre as mulheres”.

Adolfo Pizzinato é psicólogo e mestre em Psicologia Social e da Personalidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e doutor em Psicologia pela Universitat Autònoma de Barcelona. É professor dos programas de Pós-Graduação em Psicologia e em Serviço Social da PUCRS.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Existe um conceito que vem crescendo em importância, que é o de interseccionalidade, ou seja, a análise de uma situação a partir da articulação das diferenças e das desigualdades. É possível tratar gênero sem articulá-lo com outras categorias como raça, sexualidade e classe?
Adolfo Pizzinato – Possível é e é constantemente feito por boa parte das análises sociais de campo majoritário. Entretanto, teóricos e teóricas defendem a perspectiva interseccional como forma de complexificar tais análises tradicionais e resgatar certa materialidade, ao mesmo tempo em que as práticas de campo discursivo são integradas. Utiliza-se a noção de interseccionalidade como forma de localizar sócio-historicamente as manifestações que produzem e reiteram sistemas de dominação, seja por meio da reflexão sobre os marcadores sociais de diferença como categorias em articulação, bem como dos posicionamentos sociais envolvidos nos meandros do cotidiano. Dentro dos Estudos de Gênero, esta perspectiva permite que diversos marcadores sociais sejam interpretados de forma articulada, fomentando que se reflita acerca dos espaços de agenciamento, de diferenças e desigualdades que situam as pessoas no tecido social. O campo de análise interseccional, derivado das tensões provocadas pelo feminismo negro estadunidense, põe em pauta uma multiplicidade de questões sociais vistas sob uma perspectiva integrada, na qual não se procuram generalizações, ainda que se trate de um mesmo grupo ou setor em análise. Este vetor de análise não compreende, portanto, um somatório de operadores de dominação – ou simplesmente o reconhecimento de sistemas opressivos que operam a partir das noções de gênero, etnia/raça, escolaridade, idade, classe, sexualidade etc. –, mas sim questiona a hierarquização destes eixos relacionados a sistemas assimétricos de poder, dando ensejo para diversas abordagens e suas respectivas articulações inclusive com movimentos sociais.

A perspectiva de leitura interseccional permite identificar as particularidades e tensões a que são submetidos determinados grupos, assim como compreender uma pluralidade de agenciamentos possíveis, relacionados à experiência de pessoas em situações de subordinação/insubordinação. Estes processos não se dão deslocados de relações estruturantes, como é o caso de fenômenos como racismo e sexismo. Nesta concepção, diferentes homens em contextos específicos podem se situar em espaços de exclusão e possibilidades de articulação e identificação, contestando um suposto modelo hegemônico de homem universal, por exemplo, por meio do entendimento de que as identidades sexuais e de gênero são fragmentadas, históricas, instáveis e nutridas por um investimento produtivo dos sujeitos calcado em relações de poder.

IHU On-Line – Por que, nos últimos anos, a discussão em torno das questões de gênero se tornou mais presente na sociedade?
Adolfo Pizzinato – Não apenas o campo sexo/gênero, mas desde o final do século 20 houve uma renovação de vários debates de cunho político identitário sobre quem somos e as razões e contrarrazões dessas configurações existenciais. Ainda que a gama de teorias a respeito seja imensa, os consensos são virtuais. O que sim me parece evidente é que a necessidade de aproximação às discussões relativas aos processos identitários é sintomática, como já definia Stuart Hall . A fragmentação do “sujeito moderno” e a emergência dos estudos sobre o campo das identidades e das identificações na atualidade não são fenômenos deslocados ou isolados em alguma área do conhecimento. O declínio da noção de indivíduo como construto unificado, típico da Modernidade, acompanha a emergência de várias possibilidades identitárias que devem ser historicizadas. É muito limitado, nas formas de vida atuais, conceber uma pessoa nuclear (de características essencializadas e não conflitivas). Qualquer analista social minimamente implicado identifica diversas possibilidades de contradições, e multiplicidades de identificação atuais, em todos os coletivos sociais. As formas de organização do capitalismo, o impacto das TICs [Tecnologias da Informação e Comunicação] e os demais processos de globalização incrementam o contato com a diversidade que acaba por questionar os padrões normativos de outrora, particularmente nos domínios de maior possibilidade, como os de sexo/gênero. O possível e o impossível nesse campo se cruzam afetiva e simbolicamente nos modos de cada pessoa ser e (se) reconhecer.

IHU On-Line – Gênero é uma construção social?
Adolfo Pizzinato – Mais uma vez, o panorama é complexo e contraditório em termos teóricos, mas, neste ponto, há pouca argumentação realmente crítica que defenda algum essencialismo biologizante nesse campo. Entretanto, há questões de ordem epistemológica e analítica, com variação nos modos de inscrever gênero na cultura. Por exemplo: a tradição ocidental dos sistemas binários e de sexo/gênero opera uma tentativa de hegemonia heterossexual para modelar questões sexuais e políticas, fazendo com que o gênero se “naturalize”, ancorando-se na legitimidade dos saberes biológicos diferenciadores de homens e mulheres. Porém, se, conforme Judith Butler , os atributos de gênero são performativos, produzindo inclusive a ilusão de uma identidade preexistente, a postulação de um verdadeiro sexo ou de uma verdade sobre o gênero revela-se antes uma ficção reguladora.

Os conceitos de gênero e sexo consolidam certa desconstrução do sujeito da Modernidade e apresentam novas possibilidades de subversão. Retomando a questão dos modos pelos quais a identidade, sobretudo a de gênero/sexual, é construída no e pelo discurso, Butler postula um sujeito como sempre em processo, que se constrói no discurso pelos atos que executa. Assim, a identidade de gênero é conceituada como uma sequência de atos sem ator ou autor preexistentes. A identidade, por exemplo, de mulher, é um devir, um construir sem origem ou fim. A identidade, portanto, está aberta a certas formas de intervenção e de ressignificação contínuas, porquanto seja uma prática discursiva.

Quando sacada de uma análise biologista e trazida uma discussão ontológica humanística (e linguística), passa-se a poder encarar o gênero como um conjunto de atos repetidos no interior de um quadro regulatório, onde a identidade de gênero seria constituída pelas próprias expressões que supostamente são seus resultados. A performatividade – outro conceito chave na obra de Judith Butler – seria um ato que faz surgir o que nomeia e constitui-se na e pela linguagem. Apropriando-se do modelo foucaultiano  de inscrição, Butler estabelece toda identidade de gênero como uma forma de paródia produzida nas relações de poder. Essa norma seria incorporada e, como consequência, são produzidos corpos que significam essa lei sobre o corpo e através do corpo. Logo, os gêneros são apenas efeitos de verdade. O conceito de performatividade torna possíveis encenações de gênero que chamem atenção para o caráter construído de todas as identidades, sobretudo aquelas mais estáveis. Algumas dessas encenações são mais paródicas que outras, como o drag, que revela a natureza mimética de todas as identidades de gênero.

Outras pensadoras e pensadores vão além, como Paul B. Preciado , que defende que gênero não é simplesmente performativo (ou seja, um efeito das práticas culturais linguístico-discursivas) como queria Judith Butler. O gênero seria antes de tudo protético, ou seja, não se daria senão na materialidade dos corpos, puramente construído e ao mesmo tempo inteiramente orgânico. Escapa das falsas dicotomias entre o corpo e a alma, a forma e a matéria. O gênero se assemelharia ao vibrador. Porque os dois ultrapassam a imitação. Sua plasticidade carnal desestabiliza a distinção entre o imitado e o imitador, entre a verdade e a representação da verdade, entre a referência e o referente, entre a natureza e o artifício, entre os órgãos sexuais e as práticas de sexo. O gênero poderia ser uma tecnologia sofisticada que fabrica corpos sexuais.

IHU On-Line – Em que contextos o controle dos homens sobre as situações fica mais evidente? Ambientes familiares, profissionais, sociais ou em qualquer espaço?
Adolfo Pizzinato – A assimetria entre as condições de possibilidades existenciais entre homens e mulheres é um importante indicador da normalização do controle dos homens sobre as mulheres. Tal discussão torna-se mais intensa quando se apresentam dados sobre as violências sob o prisma de gênero. Ao nos dedicarmos ao estudo de situações em que homens cometem violência contra mulheres, nos deparamos com dados e práticas discursivas que fomentam e sustentam as posições antagônicas de “agressor” e “agredida”, mesmo que muitas vezes sem problematizarmos os jogos discursivos que constituem essa relação no campo contextual.

Obviamente nem todas as práticas são exclusivamente discursivas. O assassinato, a violência física, psicológica e moral são acontecimentos passíveis de investigação criminal que vai em busca de uma verdade, por meio de provas materiais e testemunhais. Porém, não cabe à Psicologia uma análise que defina “a verdade dos fatos”, deixemos isso para a polícia e as instituições jurídicas. O foco da psicologia social poderia estar na linguagem como prática social, historicamente datada e contextualizada, que possibilita a circulação de conteúdos, produz efeitos e gera posicionamentos. Nosso foco então poderia ser na linguagem em uso, ou seja, nas práticas discursivas.

Não temos dúvida de que a violência de gênero se trata de uma situação que deveria ser eliminada ou radicalmente transformada. Porém, a forma que propomos de contribuir para o debate é ir além de atrelamentos dicotômicos, tais como: bom-mau, homem-mulher, agressor-ofendida. Os homens estão colocados no contexto da violência em diferentes lugares, inclusive muitas vezes como produto-alvo de padrões de subjetividade orientados por modelos de gênero e de relações hierárquicas de poder que definem a dominação masculina sobre as mulheres. Ou seja, o mesmo sistema de poder que autoriza os homens a agirem de modo agressivo e fazer valer os seus direitos sobre as mulheres em nome da honra é o mesmo sistema de poder que os coloca em situação de vulnerabilidade, tanto no campo privado, como no público.

IHU On-Line – Por que há homens que se sentem legitimados a adotarem condutas violentas contra mulheres? A violência é uma expressão de poder?
Adolfo Pizzinato – As relações entre as formas de viver a masculinidade e a cultura da violência podem ter como parâmetro a ressignificação de valores de longa duração que estruturam a cultura ocidental patriarcal, no que pesquisadores e pesquisadoras como Lia Zanotta Machado  denominam como valores da atualidade, correspondendo às mudanças da conjuntura atual, sem necessariamente apresentarem uma ruptura estrutural. A concepção do masculino como sujeito da sexualidade e o feminino como seu objeto é um valor de longa duração da cultura ocidental. Na visão arraigada no patriarcalismo, o masculino é ritualizado como o lugar da ação, da decisão, da chefia da rede de relações familiares e da paternidade como sinônimo de provimento material: é o “impensado” e o “naturalizado” dos valores tradicionais de gênero. Da mesma forma e em consequência, o masculino é investido significativamente com a posição social (naturalizada) de agente do poder da violência, havendo, historicamente, uma relação direta entre as concepções vigentes de masculinidade e o exercício do domínio de pessoas, das guerras e das conquistas. O vocabulário militarista erudito e popular está recheado de expressões machistas, não havendo como separar um de outro. Levando em conta o caso brasileiro, típico da cultura ocidental e ao mesmo tempo específico em sua historicidade, comentarei três situações: a do estupro, a da violência contra a mulher na condição de cônjuge e a do homicídio cometido por homens contra homens.

No caso das relações conjugais, a prática cultural do “normal masculino” como a posição do “macho social” apresenta suas atitudes e relações violentas como “atos corretivos”. Por isso, em geral, quando acusados, os agressores reconhecem apenas “seus excessos” e não sua função disciplinar da qual se investem em nome de um poder e de uma lei que julgam encarnar. Geralmente quando narram seus comportamentos violentos, os maridos (ou parceiros) costumam dizer que primeiro buscam “avisar”, “conversar” e depois, se não são obedecidos, “batem”. Consideram, portanto, que as atitudes e ações de suas mulheres (e, por extensão, de suas filhas) estão sempre distantes do comportamento ideal do qual se julgam guardiões e precisam garantir e controlar. A associação da mentalidade patriarcal que realiza e reatualiza o controle das mulheres e a rivalidade presumida entre homens estão sempre presentes nas agressões por ciúme (medo da perda do objeto sexual e social) cujo ponto culminante são os homicídios pelas chamadas “razões de honra”.

IHU On-Line – O homossexual considerado afeminado é mais vulnerável à violência, em comparação aos não afeminados? Por quê?
Adolfo Pizzinato – Poder e subjugação do associado ao feminino. Os estudos sobre homossexualidade masculina no Brasil têm mostrado que sua apreensão, dentro e fora dos circuitos de homossociabilidade, encontra-se fortemente estruturada nas personagens homem/macho e bicha, as quais sinalizariam, respectivamente, masculinidade e feminilidade, bem como atividade e passividade sexual, balizadas pelo fato de o primeiro penetrar o segundo. Tal apreensão reedita o sistema de sexogênero mais amplo e inscreve a quebra do tabu da homossexualidade na inteligibilidade heteronormativa, em termos foucaultianos. Esse sistema ou matriz opera na confluência de três dimensões corpóreas, pautadas pelos valores conferidos a atributos humanos, apreendidos em classificações hierárquicas sociossexuais, nos termos propostos por Gayle Rubin : (a) o agenciamento de entonação vocal e lexical, gestuais e adereços nas performances públicas; (b) fontes privilegiadas de prazer corporal (pênis/anus/boca); e (c) posições sexuais (insertivo/receptivo). Essas três dimensões são articuladas caso a caso pelos homens e servem de elementos diacríticos para a realização de leituras de gênero: masculino e feminino. A posição passiva anal joga o homem para a esfera do feminino, inferiorizando-o, ataca e destrói o ideal da masculinidade viril tradicional. Ainda que as práticas homossexuais sejam condenadas pela moral sexual do senso comum, em muitos contextos há certa licença para o homem que se coloca na posição de ativo. Como macho, ele pode penetrar todos, mulheres e bichas. As performances de masculinidade que figuram em vários circuitos sociais (como bares, festas, esportes…) são manifestadas como reiteração constante de corpos masculinos e viris, dotados de certa estética que figura na interação com e para as mulheres e para os outros homens. São corpos que importam à exibição e que, dentro deste movimento, tornam-se inteligíveis, desejáveis, idealizados ou invejados, marcados pelo exercício da masculinidade nos moldes majoritários cujo uso hiperbólico referencia a heterossexualidade.

IHU On-Line – Como o debate acerca das questões de gênero está muito em voga, há controle e disputa sobre o vocabulário empregado. A discussão semântica é necessária, mas não está ocorrendo cerceamento e estigmatização de pessoas pouco habituadas ao linguajar próprio desse tema?
Adolfo Pizzinato – Certamente os embates sociais muitas vezes geram exageros ou conflitos pelo emprego ou não de uma determinada palavra, algumas vezes fetichizada, inclusive. Entretanto, apesar dessas situações pontuais, que podem ter características mais ou menos essencialistas, inclusive (por exemplo, a despeito dos argumentos ou termos usados, um discurso pode ser automaticamente descredibilizado apenas pelo sexo ou cor do emissor ou da emissora do mesmo), tais posições não são generalizáveis. Ao contrário, os efeitos de tais embates discursivos tendem a ser positivos a médio prazo, uma vez que questionam regimes de verdades sobre ‘os outros’, ou seja, sobre os coletivos mais estigmatizados ou excluídos das condições de existência. Esses embates também ilustram que esse processo de questionamento dos cerceamentos de poder entre coletivos está ativo e, portanto, promovendo mudanças nas práticas discursivas tradicionais de reprodução das relações de poder marcadas pela heteronormatividade e pelo machismo.■

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