Edição 209 | 18 Dezembro 2006

“A fé cristã é um confiar-se a Deus que se revela no Cristo”

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IHU Online

O teólogo italiano Rosino Gibellini respondeu algumas questões por e-mail para a IHU On-Line, refletindo sobre as razões que ainda lhe fazem ser cristão. Rosino Gibellini, doutor em Teologia e Filosofia, dirige as coleções Giornale di Teologia e Biblioteca de teologia contemporânea da Editora Queriniana de Brescia, Itália.

O estudioso é autor, entre outros livros, de A teologia do século XX. São Paulo: Edições Loyola, 1998. Ele já concedeu várias entrevistas para a revista IHU On-Line, disponíveis na página www.unisinos.br/ihu. Uma delas foi sobre o teólogo Karl Rahner, na edição 102, de 24 de maio de 2004, e outra na edição número 161 da IHU On-Line, de 24 de outubro de 2005, sobre a conjuntura eclesial.

As razões para ainda ser cristão

A ciência e a técnica são uma explicação do mundo no qual vivemos, mas não esgotam a totalidade da realidade e deixam aberto o caminho ao mistério que nos transcende. A palavra de Jesus também atrai o homem contemporâneo, porque nos revela, como explicava Karl Rahner , que o mistério que nos envolve não é um mistério tremendo, mas um mistério santo que nos acolhe. Jesus infunde-nos a confiança necessária para enfrentar a vida com coragem e esperança.

É verdade que a sociedade moderna é uma sociedade secularizada, mas uma secularização radicalizada torna-se desestabilizante (entgleisend) da vida também em nossas sociedades democráticas baseadas no consenso, como o reconheceu recentemente o grande filósofo da política Habermas , que fala, agora, de sociedade pós-secular, enquanto se mostra disposta, na distinção das tarefas, a acolher a contribuição de valores que o cristianismo e a religião podem dar. A pós-modernidade, que caracteriza o nosso tempo, introduz o conceito de pluralidade e mostra-se mais tolerante nos confrontos do discurso religioso. A relação entre razão e fé precisa, por isso, ser reformulada após as contraposições exasperadas da modernidade. 

Por que crer em Jesus?

A fé cristã é um confiar-se a Deus que se revela no Cristo, e é, assim, um inserir a própria história pessoal numa história maior, que transcorre da criação à escatologia, que se chama história da salvação e que dá sentido às nossas pequenas histórias. Por isso, a teologia contemporânea recuperou a narratividade bíblica. Crer é um sair do isolamento existencial, pertencer a uma grande comunidade a caminho, é inserir-se numa tradição hermenêutica que atualiza o Evangelho, repensando os dogmas e as verdades da fé. Isso é um conceito bem-ilustrado por um teólogo hermeneuta, como David Tracy . E, através da hermenêutica, pode-se dar uma versão proponível das verdades da fé também ao homem da modernidade e da pós-modernidade. Consideremos alguns exemplos. Deus como Trindade diz referência a Deus como comunhão – a Deus como o poder da relação. A ressurreição é promessa de um futuro além do tempo, de um futuro absoluto, e o ingresso numa dimensão da realidade diversa da dimensão espaço-temporal. A segunda vinda de Cristo é precisamente o ingresso na nova dimensão da realidade, que dá cumprimento à nossa breve história terrena. É tarefa da teologia e, em particular, da teologia hermenêutica, dialogar e interpretar, e nem sempre os cristãos conhecem aquilo em que crêem. Há alguns anos, o escritor Umberto Eco e o cardeal Martini dialogaram num belo volumezinho que tinha por título Em que coisa crê quem não crê; mas também se pode levantar a questão: em que coisa crê quem crê. Baste isso para sublinhar que o nosso tempo é, para o cristão, tempo de convicções e de decisão.

Os valores do cristianismo para um mundo mais humano

O cristianismo funda-se sobre o “Princípio amor”, como bem o ilustrou o teólogo Joseph Ratzinger  em sua obra principal Introdução ao cristianismo, de 1968; pensamento que retomou em sua primeira encíclica Deus caritas est  (2006), que tem sido universalmente bem-recebida pela essencialidade do tema e do tratamento. Poder-se-ia dizer que o gênio do cristianismo é a caridade. E a caridade se faz solidária com todas as pobrezas do mundo: aqui a teologia contemporânea, em particular, a nova teologia política e a teologia da libertação escreveram páginas iluminadas.

Também se pode recordar a teologia ecológica, que se interroga sobre a solidariedade com a natureza. Uma longa tradição interpretou o mandato bíblico como “domínio sobre a terra”; com a nova teologia da criação passa-se da categoria de Verfügung, ou seja, de uma natureza que está à completa disposição do ser humano como material manipulável e tecnicizável, à categoria de conservação e salvaguarda do criado, e de cooperação com o criado. Aqui se pode recordar a contribuição dada por Moltmann , pelo último Leonardo Boff  e pela teologia feminista. A teologia e a igreja são hoje chamadas a distanciar-se daquilo que poderia ser definido como “olvido da criação”, e a desenvolver todo o potencial teológico e eclesial, mas também cultural e político, da fé na criação.

Os desafios do cristianismo para o século XXI

Os desafios são muitos, porque vivemos no tempo da complexidade, bem-representada pelas novas teologias da comunicação. O principal desafio para o cristianismo é como mover-se entre fundamentalismo e secularismo.

O fundamentalismo é uma patologia da religião, é a afirmação de uma identidade cultural e religiosa exclusiva e agressiva, mas a religião autêntica afirma: “Quem calca aos pés o homem, calca o próprio Deus”. Trata-se de elaborar e de viver um cristianismo relacional, que afirma a própria identidade, mas a vive e constrói na relacionalidade, ou seja, no diálogo e na cooperação, em ordem à paz, justiça e salvaguarda do criado.
Em confronto com o secularismo, o cristianismo não pode aceitar ser relegado à esfera privada, porque a sua mensagem tem relevância pública. A fé, embora baseando-se sobre uma revelação, possui um patrimônio de sapiência e de verdade, que é fonte de inspiração para todos. Trata-se, portanto, de estabelecer uma nova relação, e mesmo uma aliança entre razão e fé, na distinção, mas não na contraposição. Gostaria de citar aqui o princípio enunciado pelo teólogo Joseph Ratzinger em confronto com o secularismo: “Não há paz no mundo sem uma justa paz entre fé e razão”; princípio a ser integrado com o princípio enunciado por Hans Küng  no confronto das religiões mundiais: “Não há paz entre os povos sem paz entre as religiões, e não há paz entre as religiões sem um ethos universal e compartilhado”.

 

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