Edição 507 | 19 Junho 2017

Escolas precisam debater equidade de gêneros

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Vitor Necchi

Jane Felipe de Souza defende que qualquer tema seja discutido em aula, pois nem sempre as famílias conseguem lidar com todos os assuntos

A ação de segmentos conservadores e religiosos para que temáticas relacionadas a gênero, sexualidade e respeito à diversidade não sejam incluídas nos planos de educação é um fenômeno que preocupa a professora Jane Felipe de Souza. Para ela, isso mostra o quanto esses grupos estão organizados e conquistando postos importantes de decisão. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ela ressalta que esses grupos têm por lastro “concepções muito estreitas, baseadas apenas no senso comum”, o que indica falta de conhecimento técnico e teórico a respeito da homossexualidade e da transexualidade, além de um profundo e preocupante desrespeito às identidades que fogem ao padrão heteronormativo. “Tal quadro demonstra o quanto é necessário discutirmos esses temas nas escolas.”

As perspectivas, no entanto, não são animadoras. A começar pela formação docente, processo no qual a discussão sobre gênero e sexualidade é precária. Souza defende que, desde cedo, a escola debata esses temas na formação continuada. “A educação, em todos os níveis de ensino, deve se pautar pelo respeito às diferenças e pelo combate a toda e qualquer forma de preconceito e discriminação.”
Ao contrário do que versa o senso comum, sexualidade e gênero não são prerrogativas exclusivas das famílias. “Todo e qualquer tema pode ser discutido em aula”, destaca a professora, pois nem sempre as famílias conseguem lidar com todos os assuntos, por isso existe a escola: “para ampliar esses conhecimentos e criar cidadãos éticos, que respeitem os direitos humanos fundamentais”.

Jane Felipe de Souza é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Tem graduação e licenciatura plena em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestrado em Educação pela Universidade Federal Fluminense - UFF e doutorado em Educação pela UFRGS. Atualmente coordena a pesquisa internacional intitulada Violências de gênero, amor romântico e famílias: entre idealizações e invisibilidades, os maus-tratos emocionais e a morte.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – No ambiente familiar, é comum que o patriarcado e a violência de gênero se reproduzam de geração a geração, e muitas mulheres acabam introjetando o papel submisso que lhes é atribuído. Nesse sentido, qual a importância das políticas públicas para se combater a violência de gênero?
Jane Felipe de Souza – As políticas públicas devem investir na área de saúde, segurança (justiça) e educação. Os postos de saúde e hospitais precisam estar preparados para notificar corretamente os casos de violência e oferecer tratamento psicológico e assistencial às vítimas. Em especial, promover programas de combate à violência pensando nas crianças que vivem em lares violentos e presenciam esse tipo de comportamento entre os adultos. Em relação à segurança, os postos de atendimento, incluindo aqui as delegacias da mulher, precisam ter uma infraestrutura adequada. O Estado deveria garantir casas de abrigo àquelas mulheres e crianças que saem de suas casas por conta da violência sofrida. O pessoal que atua nas delegacias precisa ser bem preparado para essa acolhida, em um momento tão delicado, de extrema fragilidade.

No que se refere à educação, desde cedo é preciso que a escola, através de sua equipe técnica (professoras/es, direção, coordenação pedagógica e demais funcionários), possa debater esses temas na formação continuada, de modo que possam atuar de forma competente nas salas de aula. A literatura infantil, os livros didáticos e paradidáticos, os brinquedos e brincadeiras, as músicas, os filmes, as atividades propostas etc. devem primar pela equidade de gênero. A educação, em todos os níveis de ensino, deve se pautar pelo respeito às diferenças e pelo combate a toda e qualquer forma de preconceito e discriminação.

IHU On-Line – Em um estado laico como o Brasil, qual a influência das religiões nas escolas, fundamentalmente as públicas?
Jane Felipe de Souza – Nas escolas, mesmo nas públicas, é possível observar alguns sinais de que o ensino não é tão laico quanto deveria: o uso de crucifixo nas salas, a imagem de santos, o hábito de rezar ou ainda quando a professora impõe sua confissão religiosa aos demais alunos. Tal situação é desrespeitosa para aqueles que não professam religião. É preciso repensar tais práticas no âmbito escolar.

IHU On-Line – Como respeitar a religiosidade das famílias e, ao mesmo tempo, preservar o caráter laico da educação pública?
Jane Felipe de Souza – No PPP [projeto político pedagógico] da escola deveria haver um item reafirmando que uma das principais atribuições da escola é ampliar o conhecimento dos/as alunos/as, portanto, não deve haver tema proibido na escola, e as famílias precisam saber disso. Cabe também ao corpo docente respeitar a religião das famílias, jamais desconstituir qualquer credo religioso. Uma estratégia muito interessante é propor uma pesquisa para a turma, sobre história das religiões, quais as concepções de masculino e feminino que apresentam, como encaram a sexualidade, os relacionamentos afetivo-sexuais, a visão que possuem de família etc. Estabelecer um debate sobre as diferenças entre religião e religiosidade, por exemplo.  

IHU On-Line – Temas como sexualidade e gênero são prerrogativas exclusivas das famílias ou as escolas devem discuti-los?
Jane Felipe de Souza – Todo e qualquer tema pode ser discutido em aula. O que vemos atualmente é uma confusão conceitual, em que se confunde scripts de gênero com sexualidade. O conceito de gênero discute as expectativas sociais, culturais e históricas em torno das masculinidades e feminilidades. Já as identidades sexuais dizem respeito aos nossos desejos afetivo-sexuais, o modo como os direcionamos. Nem sempre as famílias conseguem dar conta de todos os temas, por isso existe a escola: para ampliar esses conhecimentos e criar cidadãos éticos, que respeitem os direitos humanos fundamentais.

IHU On-Line – E na formação docente, como esses temas são discutidos?
Jane Felipe de Souza – Em geral, não são discutidos em profundidade. Há uma pesquisa da Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] que aponta tal problema na formação. Em mais de 2 mil cursos de Pedagogia existentes no país, apenas pouco mais de 30 têm em seus currículos alguma menção a gênero e sexualidade. E, mesmo assim, aqueles cursos que tratam desses temas em sua grade curricular muitas vezes são em disciplinas eletivas, o que significa dizer que o/a aluno/a pode passar todo o tempo da sua formação sem ter visto nada sobre esses temas, o que pode comprometer a qualidade do seu trabalho diante da turma, quando ocorrer alguma situação que exija, por parte do/a professor/a, conhecimento para abordar de forma correta e sem discriminações as questões que envolvem gênero e sexualidade.

IHU On-Line – A escola é reflexo da sociedade, de um tempo? Como garantir no processo educacional o ensino de princípios consagrados pelos direitos humanos e fundamentais?
Jane Felipe de Souza – A escola não está à parte da sociedade, ela (re)produz, por exemplo, os preconceitos nela existentes. Portanto, educar cidadãos éticos e voltados para a empatia, a solidariedade, dentro dos princípios dos direitos humanos fundamentais, nem sempre é tarefa fácil. Para tanto, é preciso ter uma equipe muito bem preparada e conectada com esses temas, de modo a poder atuar de forma eficiente e aprofundada. Fazer também um trabalho com as famílias torna-se fundamental.

IHU On-Line – Segmentos conservadores e religiosos vêm conseguindo influenciar diferentes instâncias legislativas para que não incluam nos planos de educação orientações de valorização e respeito à diversidade sexual, assim como de superação das desigualdades de gênero. Qual sua avaliação desse processo?
Jane Felipe de Souza – Tal movimento mostra o quanto os grupos conservadores estão organizados, galgando postos importantes de decisão. A confusão conceitual que demonstram revela um profundo desconhecimento, aliada a inúmeras estratégias de disseminação de ódio e preconceito. O fato de cooptarem muitos outros grupos e a sociedade em geral, a partir de concepções muito estreitas, baseadas apenas no senso comum, sinalizam, por sua vez, a falta de conhecimento técnico/teórico a respeito da homossexualidade e da transexualidade, além de um profundo e preocupante desrespeito às identidades que fogem ao padrão heteronormativo. Tal quadro demonstra o quanto é necessário discutirmos esses temas nas escolas.

IHU On-Line – Como a educação infantil deve ser pensada e praticada em tempos de retrocesso?
Jane Felipe de Souza – Em primeiro lugar, investir na formação docente, tanto inicial quanto continuada. As escolas, os municípios e os Estados deveriam ter essa vontade política de incentivar seu corpo docente a se qualificar cada vez mais, além de fornecer materiais adequados nas salas referência. Em segundo lugar, ter um ótimo acervo literário, além de filmes, livros didáticos e paradidáticos que contemplem as temáticas de gênero, sexualidade, questões étnico-raciais, inclusão, diversidade. Por último, promover o debate sobre esses temas com alunos/as, família e toda a comunidade escolar.

IHU On-Line – Nos lares, crianças são vítimas indiretas, e até mesmo diretas, de maus-tratos emocionais e violência psicológica infringidos a mulheres. Qual o papel da escola e dos professores em relação ao amparo, à acolhida e à educação dessas crianças fragilizadas?
Jane Felipe de Souza – É preciso entender que o papel da escola é limitado, pois quase sempre não é possível resolver o problema da violência. Mas a escola tem um papel importante nessa acolhida, acompanhamento e também na tarefa de detectar o problema. É muito importante ter um olhar atento para a criança, ouvir o que ela quer dizer, pois muitas vezes ela não tem quem a escute. Mas, na escola, ela poderá expressar seu sofrimento, angústia, caso ela perceba tal acolhimento e solidariedade.

IHU On-Line – Em suas pesquisas, a senhora opera com o conceito de pedofilização com prática social contemporânea.  Pode explicá-lo? Que processos contribuem para a erotização de corpos infantis e quais os malefícios da sexualização precoce?
Jane Felipe de Souza – Em 2002, quando comecei a utilizar este conceito, resolvi desdobrá-lo em dois aspectos que me pareciam fundamentais. O primeiro deles chamava atenção para o fato de termos leis de proteção à infância e à adolescência (Estatudo da Criança e do Adolescente, 1990) e, por outro lado, convivermos ao mesmo tempo com o incentivo constante à erotização dos corpos infantis e juvenis, como se disséssemos: desejem esses corpos, vejam como eles podem ser tão desejáveis. Dentro de uma sociedade de espetacularização do corpo e da sexualidade, em que a lógica do consumo se faz presente em todas as esferas, nada como visibilizar também os corpos infanto-juvenis. Vários trabalhos demonstraram esse fenômeno, inclusive na nossa linha de pesquisa Educação, sexualidade e relações de gênero, destacando o trabalho de Dinah Beck, sobre a erotização dos uniformes escolares, a pesquisa de Bianca Guizzo, sobre a erotização das crianças, em especial das meninas, a construção das masculinidades, de Alexandre Bello, dentro outros (ver os trabalhos completos em www.lume.ufrgs.br).

Desse modo, o primeiro aspecto do conceito de pedofilização refere-se à exposição dos corpos infantis, colocados como objetos de desejo e consumo, interferindo nas formas de se vestir, de se maquiar, de andar, de se comportar (FELIPE, 2008).

O segundo aspecto refere-se à exploração do universo “infantil” como potencialmente erótico, em que a infância é usada como como fetiche para temática de sedução (infância = ingenuidade). Desse modo, objetos característicos do mundo infantil são acionados como cenários erotizados (ensaios fotográficos sensuais de modelos usando bichinhos de pelúcia, uniformes colegiais, brinquedos etc.). Também na publicidade, na moda, nos sites de jogos para crianças é possível perceber esse processo.

O terceiro aspecto do conceito de pedofilização refere-se à ideia de que ele funciona como preparação, uma espécie de preâmbulo para o assédio sexual, a violência/abuso e exploração sexual. Ou seja, uma vez que a pedofilização está calcada na erotização dos corpos infantis, ela alicerça, alimenta e naturaliza o assédio,  banalizando assim a cultura do estupro. Portanto, podemos dizer que a pedofilização é uma forma de violência contra as meninas (e também contra os meninos, porque os educa a ter um determinado tipo de olhar e de prática que promove o desrespeito às meninas e às mulheres).

As estatísticas trazem dados alarmantes, mostrando que em 2011, por exemplo, 10.425 crianças e adolescentes foram vítimas de violência sexual e que, de todas elas, cerca de 83,2% era do sexo feminino. A maior incidência ocorreu na faixa etária dos 10 aos 14 anos (23,8 notificações/100 mil crianças e adolescentes). Entre 15-19 anos, 93,8%. Foram 16,4 atendimentos para cada cem mil (Fonte: Sistema de Informações de Agravos de Notificação – SINAN/MS). Esses dados mostram o quanto precisamos discutir essas questões e o quanto as escolas precisam abordar esses temas.

IHU On-Line – Uma pergunta de natureza pessoal: quão frustrante é para a senhora, que pesquisa gênero, educação e infância, acompanhar a crescente intromissão de pensamentos conservadores, fundamentalistas e moralistas nas escolas?
Jane Felipe de Souza – É triste constatar que vivemos em uma sociedade conservadora, hipócrita e ignorante, em que as pessoas têm uma compreensão muito rasa do que vem a ser gênero e sexualidade, ainda que sejam pessoas com grau de instrução elevado. Ainda assim, muitas dessas pessoas demonstram grande desconhecimento a respeito desses conceitos, que são diferentes e complexos. Lamentavelmente muitos/as professores/as não conseguem compreender a importância de tratarem desses temas nas escolas. Tal onda conservadora começa agora a policiar livros de literatura infantil, por exemplo, vendo problemas em tudo. Parece que estamos numa onda persecutória, em que páginas de livros são arrancadas, autores são praticamente colocados na “fogueira”. ■

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