Edição 507 | 19 Junho 2017

Ecos da crítica de Pasolini à modernidade no pensamento de Benjamin

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Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos| Tradução: Vanise Dresch

Alain Naze analisa perspectivas em comum nos dois pensadores, que veem o passado revestido de uma força revolucionária capaz de irromper a homogeneidade do presente

Assim como Pier Paolo Pasolini, Walter Benjamin era um pensador que não renegava o passado em benefício do presente. Como se o presente, por ser mais novo, representasse a vanguarda, o moderno por essencial. É com essa perspectiva que o filósofo Alain Naze aproxima a produção cinematográfica de Pasolini aos escritos benjaminianos. Para ele, embora em abordagens distintas, “para os dois autores, o passado reveste-se de uma força revolucionária”. O que é diferente de um pensamento saudosista ou conservador, pois compreende que ambos não resgatam “um passado idêntico, já vivido”, e sim fazem “ressurgir no presente o que vem justamente do passado sem nunca ter sido vivido”. “Para Benjamin e Pasolini, é por causa de uma marcha impiedosa do ‘progresso’ na história que são rejeitados como restos os elementos do passado tidos como ultrapassados, os quais os autores consideram ser capazes de interromper a catástrofe”, completa.

Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Naze ainda destaca que os pensadores não fazem uma espécie de crítica reacionária à modernidade. Emitem, segundo ele, uma “crítica à concepção progressista da história que a caracteriza, segundo a qual o passado seria sinônimo de obscurantismo”. “A concepção do tempo em que se assenta essa modernidade é, de fato, uma concepção linear e vazia, segundo a qual o tempo é apenas o receptáculo onde se inserem os acontecimentos”, completa. O filósofo lembra que os riscos, muitas vezes, em uma perspectiva historiográfica, é que se conte apenas a história dos vencedores. “Em consonância com uma concepção benjaminiana da história, Pasolini recusa que as lutas de emancipação tomem as formas de uma história dos vencedores”, compara.

Alain Naze é professor de Filosofia na North High School, em M’tsangadoua, em Mayotte (departamento ultramarino francês, situado entre o Oceano Índico e o Canal de Moçambique, na porção mais oriental do Arquipélago das Comores). Entre seus livros publicados, destacamos Temps, récit et transmission chez W. Benjamin et P.P. Pasolini (L'Harmattan, 2011), Jacques Demy. L'enfance retrouvée (L'Harmattan, 2014). Il a aussi dirigé un ouvrage collectif: Walter Benjamin. Politiques de l'image (L'Harmattan, 2015). Agora em 2017 lança seu novo livro: Manifeste contre la normalisation gay, Editions La Fabrique.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importância da obra cinematográfica de Pasolini  no contexto do cinema italiano e europeu?
Alain Naze – É difícil julgar a influência efetiva de Pasolini no cinema de sua época, seja no cinema italiano ou, de modo mais geral, no cinema europeu. De fato, a grande diversidade de seus filmes nos impede de ter uma visão unificadora de sua obra. A sucessão de “períodos” está ligada ao fato de que Pasolini não parava de questionar suas próprias posições teóricas e, indissociavelmente, suas posições técnicas. Isso não significa que ele renegasse suas realizações anteriores, mas apenas considerava que o momento de realização de um filme era capital: do ponto de vista de sua própria pesquisa (ele confessa, assim, lamentar ter filmado Mamma Roma (1962), porque, segundo ele, esse filme seria apenas uma repetição de Accatone (1961)), mas também, e sobretudo, em função da época de sua realização.

Sabemos o quanto foi importante sua “abjuração” dos filmes que formavam a Trilogia da Vida : o gesto de abjurar esses três filmes foi totalmente comandado pela evolução da sociedade italiana. Naquele momento, ele considerava que a “falsa tolerância” concedida pelo poder havia tornado inútil a luta pela liberação sexual que ele pretendia travar com esses três filmes. Portanto, não é uma recriminação cinematográfica que ele faz à Trilogia da Vida, mas uma recriminação política.

Não há, então, uma forma cinematográfica ideal (e como se fosse atemporal) que, em Pasolini, buscaria progressivamente abrir um caminho conforme evoluções que às vezes beirariam inversões, mas sim a busca de um cinema capaz de produzir efeitos no presente. Para resumir, o cinema de Pasolini visa a provocar uma irrupção possivelmente messiânica do passado em nosso presente. E todo o problema da época para ele se deve ao fato de que os meios dessa intrusão do passado são sempre ameaçados de serem digeridos pelo tempo presente e, assim, anulados por homogeneização.


A assinatura de Pasolini

Isso não significa que não possamos dizer nada a respeito das escolhas cinematográficas que permeiam o conjunto do cinema de Pasolini e que constituem, por assim dizer, sua assinatura. É evidente, por exemplo, que a ruptura que ele introduz em relação ao neorrealismo é crucial e impregna toda a sua filmografia – principalmente depois de seus dois primeiros filmes, que ainda devem muito a uma estética neorrealista. Desse ponto de vista, Pasolini desenvolve um cinema da montagem, em oposição a um cinema do plano-sequência. Essa escolha se origina em sua rejeição absoluta do naturalismo: ele rejeita a ideia de uma reprodução fluida da realidade, substituindo-a pelo corte operado pela montagem.

Como sempre, em Pasolini, essa escolha técnica está ligada à sua concepção global da realidade. Contra o recurso ao plano-sequência, Pasolini privilegia o close up, os ângulos frontais, que constituem, para ele, uma maneira de reforçar a dimensão sagrada da realidade. Os corpos são, assim, sacralizados, como no caso de Accatone. Porém, a preocupação de Pasolini era mesmo com a realidade em si, e não com uma ortodoxia em suas escolhas técnicas, como transparece claramente no seu modo de filmar O Evangelho segundo São Mateus (1964). Nesse caso, na verdade, a matéria a ser filmada não eram os subúrbios de Roma, mas uma espécie de realidade em si sagrada. Assim, Pasolini afastou-se de sua maneira – poder-se-ia dizer – religiosa de filmar, no caso de Accatone, para adotar um estilo mais épico, menos hierático, e evitar uma espécie de pleonasmo cinematográfico.

A dificuldade de avaliar a importância de Pasolini quanto à sua influência sobre este ou aquele cinema, como se vê, deve-se, primeiramente, ao fato de que ele não faz escolhas técnicas definitivas, estas sendo sempre subordinadas à realidade a ser filmada, à época considerada (tanto a da trama quanto a da recepção do filme) etc. Resta, então, o gesto pelo qual o cineasta se lançou na luta, demonstrando um cinema capaz de agir sobre a realidade, mas não pelo desvio de uma ideologia laboriosamente posta em imagens – bem pelo contrário, por intermédio de um cinema capaz de produzir efeitos políticos por meios estritamente cinematográficos (e estritamente adaptados à época considerada). Nesse sentido, parece-me que ele inaugurou um cinema em que as forças políticas são intrinsecamente cinematográficas. No contexto francês, um cineasta como Lionel Soukaz , por exemplo, parece ter sido capaz de retomar esse gesto pasoliniano, inclusive em sua dimensão provocativa.

IHU On-Line – Em suas pesquisas, o senhor faz uma aproximação da cinematografia e da poesia de Pasolini com a obra de Benjamin . Que diálogo se estabelece entre essas duas figuras tão marcantes do século XX?
Alain Naze – Na verdade, no âmbito de uma tese realizada na Universidade Paris VIII sob a orientação de Alain Brossat , mas também nos dois volumes publicados que resultaram desse trabalho universitário (Temps, récit et transmission chez W. Benjamin et P.P. Pasolini, Paris, L’Harmattan, 2011), tentei estabelecer verdadeiras “passagens” entre Benjamin e Pasolini – “passagens” no sentido que Benjamin confere a esse termo em seu texto Paris, capitale du XIXe siècle. Não se tratava de uma abordagem comparatista, que teria tentado estabelecer semelhanças e diferenças entre esses autores, proximidades e distâncias. Tratava-se bem mais de conceber de maneira antidisciplinar o que podia se constituir como um dispositivo ao longo desse trabalho, um dispositivo Benjamin/Pasolini. Em outras palavras, foram justamente “passagens” que tentei estabelecer entre eles, com o objetivo, antes de mais nada, de fazer com que cada um dos dois entrasse em um processo de alteração, de tornar-se outro. A intenção dessa pesquisa era mesmo que Pasolini e Benjamin pudessem afetar-se reciprocamente.

Foi então nesse contexto geral que logo percebi que a ligação mais profunda entre Benjamin e Pasolini dizia respeito à linguagem. Ambos levantavam a questão de uma origem da linguagem, o que geralmente os fazia fugir da disciplina “linguística”, tomando a forma, em Benjamin, da questão da linguagem adâmica e, em Pasolini, aquela do “grito”. Suas abordagens certamente não eram idênticas, mas me pareciam consonantes no sentido de que ambas desembocavam numa forma de pensamento da história. Para simplificar, eu diria que Benjamin e Pasolini se opunham a uma linguagem cuja função essencial fosse a comunicação.

Para Pasolini, a linguagem é antes de mais nada expressividade, e é nesse aspecto que não haveria diferença de natureza entre a língua (oral) e a corporeidade, o que explicaria essa forma limítrofe da língua (limítrofe por ser estritamente oral, “hipótese de laboratório”, dirá Pasolini) que seria o grito. Em seu interesse pelas línguas locais (em oposição ao italiano padrão), encontra-se o seu interesse pelos corpos pobres, não “homologados”, ainda não tornados horrendos pelo avanço do consumismo. Assim, o “genocídio cultural”, que leva as línguas locais e os corpos de camponeses e subproletários a uma destruição comum, encontraria um limite na sobrevivência dos sotaques, nas pronúncias – haveria nestes um passado persistente que ainda conseguiria se manifestar e que seria como o vestígio subterrâneo de uma história dos vencidos. Por debaixo da língua oficial, normatizada, ainda brilhariam faíscas do passado, trazendo com elas fragmentos deste.

Podemos encontrar essa mesma dimensão messiânica da língua, mas de uma forma muito diferente, em Benjamin, mais especificamente na questão da tradução. Para Benjamin, de fato, a linguagem adâmica se perdeu, fragmentou-se; e, assim como Pasolini, que não postula um retorno ao mesmo desaparecido (para este, as sobrevivências têm uma dimensão espectral), Benjamin também não visa à reconstituição da língua original. A “tarefa do tradutor”, segundo ele, consistiria em “fazer germinar, na tradução, a semente da linguagem pura” (WB, “La tâche du traducteur “, in Œuvres 1, Paris, Gallimard, 2000, p.255), o que significa, na verdade, traçar um horizonte messiânico no qual a tradução, sem reconstituir qualquer língua original, seria capaz de fazer ressoar, precisamente em seu eco, uma complementaridade não totalizável das diferentes línguas.

Passado e presente

Não é possível reproduzir aqui todas as mediações pelas quais esse trabalho teve de passar, mas essa introdução sobre a linguagem já pode dar uma ideia da forma como um pensamento da história pode emergir do dispositivo Pasolini/Benjamin. Dos dois lados do dispositivo, trata-se de reavivar as potencialidades de um passado perdido, para trazê-las para a nossa atualidade. Em outras palavras, para os dois autores, o passado reveste-se de uma força revolucionária, desde que não se queira resgatar um passado idêntico, já vivido (na forma da lembrança voluntária em Proust ), mas, sim, fazer ressurgir no presente o que vem justamente do passado sem nunca ter sido vivido (a lembrança involuntária em Proust).

Seria então na forma de promessa messiânica que as duas vertentes do dispositivo encontrariam a maior consonância, sendo isso que as situa na lógica de uma história dos vencidos. Para Benjamin e Pasolini, é por causa de uma marcha impiedosa do “progresso” na história que são rejeitados como restos os elementos do passado tidos como ultrapassados, os quais os autores consideram ser capazes de interromper a catástrofe, pelo menos se fizermos com que desempenhem um papel anacrônico em nosso presente (toda a obra de Pasolini é permeada por anacronismos). É nesse sentido que podemos dizer que ambos são “catadores da história”.

IHU On-Line – De que forma ambos os autores, Pasolini e Benjamin, colocam em causa certa apologia à modernidade como um processo absolutamente positivo?
Alain Naze – A resposta anterior já aborda um pouco essa questão, identificando o “progresso” (histórico) como “catástrofe”. Na verdade, nem Pasolini nem Benjamin emitem uma crítica reacionária à modernidade, mas essencialmente uma crítica à concepção progressista da história que a caracteriza, segundo a qual o passado seria sinônimo de obscurantismo. A concepção do tempo em que se assenta essa modernidade é, de fato, uma concepção linear e vazia, segundo a qual o tempo é apenas o receptáculo onde se inserem os acontecimentos. Nessas condições, o passado é imediatamente ultrapassado, ou seja, findo. O passado, de certa forma, constituiria a pele morta do presente, e seu único mérito seria tornar possível o nosso presente – o passado, portanto, só teria valor pelo que constitui sua superação, sendo esta sistematicamente concebida como progresso.

É esse desprezo pelo passado que Pasolini e Benjamin rejeitam, mas nenhum dos dois defende a posição de que “antes era melhor”. Trata-se, antes, de considerar a heterogeneidade das temporalidades que a concepção progressista da história ignora. Em nome do quê, por exemplo, poder-se-ia sustentar que uma sociedade laica é preferível a uma sociedade estruturada pelo religioso? Em nome do quê, a não ser em nome de uma modernidade centrada no ocidente? Foi esse desprezo pelo passado que Pasolini vivenciou, na Itália, no momento em que o neocapitalismo se instalava, vindo suplantar os modos de existência e os costumes culturais tradicionais – esse desprezo se estendia até os primeiros envolvidos, e Pasolini falava daqueles operários que preferiam se apresentar como estudantes. No advento dessa modernidade econômica e cultural, o que se impõe é uma história dos vencedores, provocando o desaparecimento (“genocídio cultural”, dirá Pasolini) de tudo aquilo que tem a forma do passado, tido como necessariamente obsoleto, findo, por ser passado.

Nessas condições, é a partir de uma concepção descontinuísta da história que um salvamento do passado (uma recondução ao seu status de sobrevivência) pode ser pensado. Isso se encontra na concepção da história em Benjamin, com o papel central da “imagem dialética”, que permite que o passado se constitua nesse “outrora” que surge em nosso “agora”, ou seja, que ele se atualize em nosso presente; isso se encontra também, mutatis mutandis, em Pasolini, em seu uso do anacronismo. O passado é assim reconduzido à sua vitalidade, tornando-se capaz de inquietar nosso presente.

Ora, é por intermédio do cinema que Pasolini vai realizar essas experiências de anacronismos, sobretudo, fazendo surgir, em filmes como As Mil e Uma Noites (1974), fisionomias que não existiam mais em nosso mundo moderno, ou seja, usando um meio de comunicação especificamente moderno. Do mesmo modo, Benjamin reconhecerá que o cinema e a técnica de modo geral podem se tornar meios de emancipação. Nesse aspecto, considerando, por exemplo, que o cinema constitui a forma de uma estética do choque em adequação com a nossa época, Benjamin se situa no antípoda do antimodernismo tecnofóbico de Heidegger . No entanto, essa adequação não leva o meio cinematográfico a ser absorvido pela modernidade adotando os valores desta, uma vez que, pelo contrário, é a compreensão dos mecanismos modernos da subjetivação que nos permite agir sobre eles. Assim, ao mesmo tempo em que percebe bem os efeitos da propaganda especificamente moderna que o cinema torna possível (ele vê diante dele o exemplo do uso que o nazismo faz do cinema), Benjamin compreende também a possibilidade de agir no sentido da emancipação. Encontramos aqui a ideia que mencionei anteriormente (falando então do cinema de Pasolini) das forças políticas próprias do cinema como sendo intrinsecamente corporais.

IHU On-Line – De que maneira as formas de vida apresentadas na ficção, especialmente na obra de Pasolini, tensionam as formas de vida positivistas hegemônicas que se estabeleceram no século passado?
Alain Naze – De modo geral, as formas de existência dominantes em nossa modernidade são incomodadas, no cinema de Pasolini, pela simples ruptura com sua hegemonia sem reserva. Em outras palavras, é na maioria das vezes com a simples presentificação de formas anacrônicas de existência que o cineasta consegue romper a uniformização consumista. Pensem no elogio da preguiça feito por Accatone, numa época em que o trabalho – repete-se isso sem parar – se tornou um “valor”; pensem também nos sorrisos desdentados que permeiam as aventuras de Mil e Uma Noites, rompendo com os nossos hábitos ocidentais e modernos de percepção do corpo asséptico do outro; pensem, por fim, na doméstica de Teorema, em contato com um mundo que ainda era rico em milagres (a cena da levitação) etc.

Vemos, então, que Pasolini aposta essencialmente na força do anacronismo para nos descolar das formas de vida dominantes em nossa época. Assim, em Pocilga (1969), a personagem objetivamente mais escandalosa (a personagem representada por Pierre Clémenti, que se entrega ao canibalismo em um mundo sem tempo) causa talvez menos efeitos no espectador do que o pequeno burguês (representado por Jean-Pierre Léaud) que se sacrifica à sua paixão devoradora pelos porcos. Porque essa conduta, justamente por escapar à normatização burguesa, produz um efeito de anacronismo, fazendo surgir o heterogêneo em nosso presente, enquanto a conduta do quebrador de tabus, nas encostas do Etna, aparece mais como uma forma de vida pertencente a uma época finda – e, neste caso, o passado não tem efeito, está desvitalizado, perdeu sua força revolucionária.

IHU On-Line – De que modo as contradições do século XX aparecem na cinematografia de Pasolini?
Alain Naze – Não sei se podemos falar de “contradições do século XX” no traçado do cinema de Pasolini, porque essa expressão com cheiro marxista daria a entender a possibilidade de uma superação (dialética?) de tais contradições, ao passo que Pasolini me parece manter irresolutas, no mais das vezes, as oposições, a fim de conservar a eventual fecundidade destas. Parece-me que, em relação ao século XX, o que ele mais mostra é justamente certa homogeneidade que consiste em evacuar o diferente, o heterogêneo. Compreende-se, assim, por que, num texto como Escritos Corsários, ele pode ter a visão anacrônica de uma Europa sobre a qual paira a sombra de uma suástica – o que ele vê é um pouco uma Europa submetida ao paradigma do campo, não sem refletir certas posições contemporâneas de Giorgio Agamben .

Nessas condições, se existe uma contradição na modernidade, ela reside justamente no fato de apresentar como formas de libertação aquilo que, na verdade, são apenas processos de normatização. Pasolini presenciou isso no que diz respeito à suposta “liberação sexual” dos anos 1960, mostrando que muitas vezes ela tomou a forma de uma “injunção ao coito”. Hoje, pode-se presenciar uma contradição comparável em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, apresentado tantas vezes como o apogeu das lutas pela liberação homossexual, ao passo que corresponde bem mais a uma normatização das formas de vida gay dentro das condições de um mundo ocidental centrado na heterossexualidade. Encontramos aqui exatamente aquela lógica de exclusão (tendo em pano de fundo uma lógica inclusiva, poderíamos dizer no caso do casamento gay) que Pasolini havia evidenciado. No presente caso, as sociedades que não adotarem o casamento entre pessoas do mesmo sexo é que serão consideradas em breve como homofóbicas, ou então aquelas e aqueles que se recusarem a praticar o coming out é que serão acusados de covardia. Ora, não estamos vendo, novamente, que as sociedades modernas ocidentais querem o triunfo de suas normas no mundo inteiro? Pasolini falava de uma “homologação consumista” para designar esse devir uniforme do mundo.

IHU On-Line – Como a obra de Pasolini manifesta um feminismo crítico? De que ordem é esse feminismo?
Alain Naze – A pergunta me remete imediatamente a uma cena de Accatone, em que a personagem Madalena é espancada por rapazes. Pasolini volta a falar dessa cena nas Cartas Luteranas, qualificando essa violência como “idílica”. O que ele quer dizer com isso?

Não violento, Pasolini não está fazendo obviamente a apologia da violência exercida contra as mulheres. O que ele quer dizer, na verdade, é muito simples: essa violência faz parte da estrutura de uma cultura determinada, e é isso que lhe dá um significado. Numa sociedade rural tradicional, esse tipo de cena podia acontecer; e, então, se a violência ali adquiria um sentido, era por estar estruturalmente ligada a todo um complexo cultural, regulando principalmente as relações entre os sexos. Essas formas de violência tornaram-se inaceitáveis para quem não pertence a essa cultura e logo foram consideradas “bárbaras”, no sentido de que precediam o advento de uma humanidade mais educada, mais civilizada. Pasolini evita reagir assim, e o adjetivo “idílico” contém todo o teor expressivo da distância que ele mantém em relação a qualquer juízo superior que poderia emitir dessa cultura popular em vias de extinção.

Pasolini percebe que essas culturas tradicionais eram rudes, violentas, mas, apesar de tudo, suas formas de violência se mantinham enquadradas num conjunto que lhes dava um sentido. O desaparecimento dessas culturas em proveito de uma civilização mais policiada torna esses comportamentos inaceitáveis, com certeza, mas isso não significa que a violência contra as mulheres vá desaparecer. Ao contrário, não mais enquadrados culturalmente, essas práticas de violência correm o risco de cair na desmedida e de se tornarem hiperviolência. As Cartas Luteranas testemunham esses transbordamentos por parte dos indivíduos de cultura pequeno-burguesa.

Feminismo “crítico” de Pasolini

Portanto, é por não poder fazer seu um feminismo especificamente moderno – que leva logicamente a fazer dos séculos passados épocas de sujeição e de infelicidade das mulheres e que equivaleria a uma condenação do passado enquanto tal – que chamei de “crítico” o feminismo de Pasolini. De fato, é a partir de uma concepção moderna da liberdade, da felicidade, da existência, que o feminismo vai lançar suas reinvindicações, notadamente nos anos 1970. No entanto, se, por um lado, Pasolini compreende bem o desejo de emancipação das mulheres, por outro lado, ele quer evitar que tais reivindicações se façam em detrimento da tradição, ou seja, condenando como detestáveis condições de existência que, no tempo destas, podem ter sido consideradas desejáveis, talvez até mesmo idílicas. Mais uma vez, vemos a mesma recusa de julgar a tradição e o passado a partir de uma posição especificamente moderna – pelo fato de que, com a possibilidade de emitir tal juízo, nega-se o caráter incomensurável dos dois universos considerados.

Em consonância com uma concepção benjaminiana da história, Pasolini recusa que as lutas de emancipação tomem as formas de uma história dos vencedores. Porém, para ele, muitas posições adotadas pelas feministas com as quais entra em discussão (em polêmica) provêm precisamente de uma lógica progressista, segundo a qual é incontestável que determinada condição feminina passada seja uma forma de opressão – quando é a distância cultural em relação a esse período que torna incompreensível para os modernos o significado que pode ter tido então essa condição feminina. No fundo, é uma recusa da violência contra os tempos passados, portanto, também contra os seres que viviam nesses tempos, que leva Pasolini a reconhecer a existência de um conflito cultural, que impossibilita emitir um juízo de valores acerca de um mundo que nos é profundamente estranho. Essa também é uma forma de justiça, que consiste em não fechar os ouvidos para a pretensão de que o passado pesa sobre a “fraca força messiânica” de que disporíamos.■

Leia mais

- Pier Paolo Pasolini. Um trágico moderno e sua nostalgia do sagrado. Revista IHU On-Line, número 504, de 8-5-2017.

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