Edição 507 | 19 Junho 2017

A força política da Indigineidade

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Ricardo Machado

O kaingang Josme Fortes, Konhko, aluno do curso de Pedagogia da Unisinos, aposta na garantia e acesso à educação como fortalecimento dos integrantes de sua aldeia e de seus modos de vida


Quando Josme Fortes anda pelos corredores da universidade de calças jeans, tênis e jaqueta é tão notado quanto qualquer outro aluno do campus. Quem o vê sentado à classe de uma das disciplinas do curso de Pedagogia nem mesmo imagina que há apenas seis anos ele vivia em uma aldeia indígena Kaingang no interior do Rio Grande do Sul, em Nonoai, e sequer falava português.  Em pouquíssimo tempo,  Josme ou Konhko, como é chamado no idioma de sua etnia, aprendeu a falar português, entrou para a universidade e planeja se formar em 2019. “Quando eu saí da minha aldeia eu não sabia falar português e mesmo uma de minhas professoras aqui na universidade me perguntou como eu aprendi a falar português. Essa é uma dificuldade que eu ainda tenho porque na minha aldeia eu fui alfabetizado em kaingang, mas eu pretendo ir aprimorando o português para poder levar o conhecimento que eu adquiro aqui para a minha comunidade”, conta Josme.

O intenso e radical avanço dos fazendeiros nas terras indígenas onde os Kaingang viviam e vivem levou à escassez, considerando seus modos de subsistência tradicionais. “Quando eles [os fazendeiros] vão para lá,  derrubam o mato para colocar boi e jogam veneno no rio, que é de onde tirávamos os peixes para nossa alimentação. Quando eu era bem pequeno era só mato por tudo que era lado, mas quando saí era só fazenda”, explica. Josme foi o último filho de sua família a sair da aldeia, ficou lá até a morte de sua mãe. “Nós viemos para esta aldeia urbana porque em nossa aldeia grande não tinha mais como nos sustentarmos. Depois que meu pai e minha mãe faleceram eu vim para cá”, complementa.

Ainda que a vida próxima aos centros urbanos reconfigure os modos de subsistência das comunidades indígenas, diante do cenário de devastação de seus locais tradicionais acaba se tornando uma opção digna de sobrevivência material e cultural. “Na nossa aldeia são mais de 50 famílias, sem contar os novos casamentos, o que vai deixando o espaço menor. Todo o caso, estamos vivendo bem lá porque podemos cultivar nossa cultura”, comemora. Ao contrário do que o senso comum acredita, Josme não entrou para a faculdade para se tornar “branco”, mas para garantir que sua indigineidade permaneça e que seus descendentes possam ter mais força política de viver e manter suas tradições. “Eu não quero que os integrantes mais novos da minha aldeia passem pelas mesmas dificuldades que eu, porque tenho muitas dificuldades, mas vou levando com a ajuda dos meus colegas”, pontua. “Eu penso que para o futuro o que precisamos é de pessoas qualificadas para entender e atender as culturas diferenciadas. Nós como professores, educadores, precisamos conhecer as culturas para saber trabalhar com elas”, sustenta.

Josme Fortes – Konhko – é kaingang, estudante do curso de Pedagogia PARFOR - Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos e morador da aldeia Kaingang Por Fi Ga.

ERRATA: Na versão impressa desta entrevista foi informado que Josme Fortes era estudante de Pedagogia. A informação correta é que Josme Fortes está vinculado ao curso de Pedagogia PARFOR - Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que caminhos levaram sua vida de indígena aldeado em Nonoai, no interior do RS, a encontrar a vida de indígena aldeado na região metropolitana de Porto Alegre?
Josme Fortes - Konhko – Sou natural de Nonoai e quando tinha 36 anos saí de lá porque não tem mais mata, pois os fazendeiros derrubaram todos os matos e poluíram tudo. Quando eu era menor, morava no meio da floresta e ali nós pegávamos frutas, caçávamos e pescávamos, de modo que quando eu cheguei por volta dos 30 anos não existia mais essa natureza viva. Então nós viemos para esta aldeia urbana porque em nossa aldeia grande não tinha mais como nos sustentarmos. Depois que meu pai e minha mãe faleceram eu vim para cá.

Antigamente, em São Leopoldo, havia às margens da Rodovia BR-116 um terreno destinado pela prefeitura às famílias indígenas, mas era muito arriscado porque tem as crianças e era perigoso. Agora tem outra área no bairro Feitoria, retirado do centro da cidade, que para nós é mais confortável, sobretudo por conta das crianças.

IHU On-Line – Essa área que a prefeitura destinou para as famílias indígenas era da prefeitura? Como está a situação?
Josme Fortes - Konhko – A terra em que estamos era da prefeitura, mas foi passada à União e é reconhecida como território indígena. Eu não sei exatamente o número de crianças que moram na aldeia, mas são mais de 50 famílias, sem contar os novos casamentos, o que vai deixando o espaço menor. Todo o caso, estamos vivendo bem lá porque podemos cultivar nossa cultura.

IHU On-Line – Como foi aprender português e como está sendo a experiência como estudante na Unisinos?
Josme Fortes - Konhko – Eu estou fazendo Pedagogia aqui na Unisinos. Quando eu saí da minha aldeia eu não sabia falar português e mesmo uma de minhas professoras aqui na universidade me perguntou como eu aprendi a falar português. Essa é uma dificuldade que eu ainda tenho porque na minha aldeia eu fui alfabetizado em kaingang, mas eu pretendo ir aprimorando o português para poder levar o conhecimento que eu adquiro aqui para a minha comunidade. Eu não quero que os integrantes mais novos da minha aldeia passem pelas mesmas dificuldades que eu, porque tenho muitas dificuldades, mas vou levando com a ajuda dos meus colegas, porque assim como tem professores que nos ajudam, tem professores que não são assim. Eu comecei o curso no ano passado e minha previsão de formatura é para 2019.

IHU On-Line – Como se chama e como é a vida na comunidade indígena de que tu faz parte?
Josme Fortes - Konhko – A comunidade se chama Por fi Ga, que significa “Tovaca”, que diz respeito a um tipo de madeira que tem na região da aldeia, uma espécie de palmeira. Nós não temos muitas dificuldades na aldeia porque seguimos nossas tradições, e à medida que vamos aprendendo com os brancos eles também aprendem conosco.

Aqui na universidade eu sempre comento com as professoras que eu estou aqui para aprender com elas, mas elas também têm que aprender comigo. Digo isso porque tem umas que não querem aprender comigo porque acham que são doutoras e que não têm nada a aprender. Mas eu vou vencer e vou ir até o fim.

IHU On-Line – Como é a escola das crianças na aldeia?
Josme Fortes - Konhko – Lá na escola, que fica dentro da aldeia, eles aprendem kaingang e português. A aula dentro da aldeia funciona do primeiro ao quinto ano, todos juntos, mas com certeza conseguiremos ampliar para outras séries. Eu trabalho com o quarto e quinto ano e tem o professor Dorvalino, da Universidade Federal do Rio grande do Sul - UFRGS, que trabalha com o primeiro, o segundo e o terceiro ano.  Lá, as crianças são alfabetizadas em duas línguas desde o primeiro ano, em kaingang e português. Na verdade eles já saem alfabetizados da família, o que eles aprendem na escola é a escrever.

IHU On-Line – Como é a organização da aldeia de vocês?
Josme Fortes - Konhko – Todos os anos, na semana do índio, nós preparamos um evento em que fazemos rituais. As escolas do município vão participar, as universidades como a UFRGS e a Feevale sempre participam, exceto a Unisinos, o que não deixa de ser estranho porque é a universidade onde estou estudando que não foi. Integrantes da minha aldeia sempre vêm fazer palestra aqui [na Unisinos] e pedi para a minha professora para ela liberar a turma para assisti-la e ela não liberou, mas isso é importante porque os meus colegas que não são índios têm que saber sobre a minha cultura. Eu conheço minha cultura porque vivo na minha comunidade, mas quem tem que aprender sobre ela são os outros que não são índios.

IHU On-Line – De onde vem o sustento dos integrantes da aldeia?
Josme Fortes - Konhko – O principal recurso vem da venda de nossos artesanatos e cada família recebe uma cesta básica de alimento todo o mês, mas parece que essa doação continuará somente até o final do ano, depois vão tirar.

IHU On-Line – E a vida próximo à cidade é melhor do que a vida na aldeia em Nonoai?
Josme Fortes - Konhko – Aqui é melhor porque conseguimos vender nossos artesanatos e isso é importante para nossa sobrevivência. Lá na aldeia, em Nonoai, a cidade fica muito longe, então se não temos dinheiro para pegar o ônibus para o centro da cidade não tem como vender, por isso aqui é melhor. Vivendo mais próximo das zonas urbanas conseguimos não só vender nossos artesanatos, como comprar alimentos e roupas quando chega o inverno.

IHU On-Line – Como se caracteriza o avanço dos fazendeiros na região que tu morava?
Josme Fortes - Konhko – Principalmente devido à pecuária e às granjas. Quando eles vão para lá, derrubam o mato para colocar boi e jogam veneno no rio, que é de onde tirávamos os peixes para nossa alimentação. Quando eu era bem pequeno era só mato por tudo que era lado, mas quando saí era só fazenda.

IHU On-Line – Os teus pais ainda estão vivos?
Josme Fortes - Konhko – Não. Ambos faleceram. Eu fiquei lá porque estava cuidando da minha mãe, era o único filho dela que continuava na aldeia. As raízes desta aldeia em São Leopoldo (na região metropolitana de Porto Alegre, RS) foram plantadas pela minha família, foram eles que vieram para cá vender artesanato e acamparam às margens da BR-116. A prefeitura percebeu que eles estavam em situação de risco e conseguiram essa terra onde moramos. Depois que minha mãe faleceu e eu fiquei sozinho, o meu irmão me trouxe para cá.

IHU On-Line – Como tu olhas para o futuro?
Josme Fortes - Konhko – Essas coisas que estão acontecendo, de enchentes e coisas assim, somos nós quem provocamos. Nós provocamos a natureza e agora ela cobra de nós. Eu penso que para o futuro o que precisamos é de pessoas qualificadas para entender e atender as culturas diferenciadas. Como sempre falo, nós somos discriminados até com um olhar, até mesmo uma palavra é capaz de machucar uma pessoa. Por isso sempre digo que nós como professores, educadores, precisamos conhecer as culturas para saber trabalhar com elas. Quando eu converso com meu colega que estudou na UFRGS ele comenta que também passou por isso lá e eu não acreditava nele, mas quando entrei aqui senti o que ele sentia.

A gente precisa não olhar para a diferença e discriminar, precisamos saber trabalhar com culturas diferentes e entender que não é fácil, porque se eu levar um branco para a minha aldeia e querer que ele fale como índio ele também não vai conseguir, também terá dificuldade. Um dos problemas é que quando eu chego aqui [na universidade] querem que eu aprenda na marra as coisas. O educador tem que se colocar nos dois lados. ■

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