Edição 505 | 22 Mai 2017

Agamben é parte de uma espécie em extinção

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Márcia Junges | Edição: Vitor Necchi| Tradução: Walter O. Schlupp

Bernd Ternes afirma que é equivocado analisar o conceito do filósofo italiano sob prisma político

Para o filósofo alemão Bernd Ternes, não é adequado compreender em uma perspectiva de categorialidade política o debate promovido por Giorgio Agamben acerca da comunidade que vem. Isso porque Agamben “não consegue apresentar um agente, um ‘model’, um sujeito que possa reunir em si a tensão paradoxal de ‘ser’ tanto a pessoa humana a se achar ainda em desnuda forma identitária humana, mas que também já se livrou das políticas e semânticas identitárias”. Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Ternes menciona que tal comunidade que vem se daria, isto sim, num “mundo pós-lei (nach dem Gesetz)”. Partidário da dialética negativa, estaria Agamben praticamente “sozinho na paisagem”. Assim, argumenta, a importância do projeto Homo sacer para a filosofia política atual é “muito pequena”. “O quanto vejo, pelo menos na reflexão universitária das ciências humanas, Agamben é parte de uma espécie em extinção.”

Bernd Ternes é sociólogo, filósofo e politólogo. Foi aluno de Dux, Habermas e Kamper. Em 2003, recebeu habilitação com o tema Exzentrische Paradoxie pela Freien Universität Berlin, onde atualmente leciona. É autor de, entre outros, Buchveröffentlichungen (Auswahl): Soziologische Marginalien, Bd.1-7 (1999-2013), Invasive Introspektion (1999), Exzentrische Paradoxie (2003), Technogene Nähe, Bde 1 und 2 (2007/2011), Karl Marx (2008), Materielle Avatare unter sich (2013).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - A partir da filosofia política de Giorgio Agamben, como compreender o conceito de “comunidade que vem”? E em que consiste o “paradoxo excêntrico”?
Bernd Ternes – Como sempre no caso de conceitos abrangentes, pode-se entendê-lo de diversas maneiras. Uma maneira que eu salientaria é encarar o conceito de comunidade de Agamben primeiramente como entendimento otimista do futuro do indivíduo socializado, como forte alternativa para formas tribalistas, segmentadas e até anômicas de organização da “massa ser-humano”. Essas últimas “formações sistêmicas”, no fundo, são reativas e reacionárias, adialéticas e fascistas, além de presas numa relação edipiana com o grande veículo de socialização chamado “Estado”, ou seja, continuam sob o coercitivo sistema binário “senhor-servo”. Já o conceito de comunidade em Agamben não se refere à organização parasitária a aproveitar e explorar a desintegração de sociedades (como, por exemplo, máfias em sociedades pós-catastróficas, clãs em sociedades pós-estatais); penso também que ele não se refere à reanimação da dicotomia comunidade-sociedade, como ela foi criada com grandes consequências por Ferdinand Tönnies há quase 130 anos e que veio a ser crucial para a crítica conservadora contra a Modernidade e seus valores próprios. Ao invés, Agamben tenta arrancar a formação histórica da formação humana da Europa, a subjetivação, de todas as formas de produção de política identitária e de reconhecimento do homo sapiens como pessoa. Olhando de uma perspectiva hodierna de mainstream, essa pessoa futura numa sociedade vindoura teria que ser descrita como depravada, excluída, despersonalizada, alienada, em suma: como marginalizada, “afastada”, “radicalmente outra”, no ostracismo. Entretanto, Agamben torna todos esses atributos e substantivações como plausíveis para o centro material e ideal da situação das sociedades capitalistas de hoje (comparável à tese pós-moderna de que o que há de menos esclarecido é o próprio Esclarecimento [Iluminismo]); assim, a atribuição acaba se invertendo: o ser humano despersonalizado, material e ideologicamente não formado em lutas de identidade e de reconhecimento, passa a ser ponto de fuga – mesmo que não para a salvação, para a redenção ou para o guardião de uma verdade antropológica que há muito já estaria destruída no funcionamento social normal (comparável à convicção que Foucault teve por breve tempo, de que “os débeis mentais” seriam guardiões do humano numa sociedade.)

Em termos de história conceitual, o conceito de singularidade em Agamben localiza-se antes na estética da existência em Foucault. A comunidade de Agamben fecha a porta para o projeto do Iluminismo (enquanto projeto de auto-autorização com a “central de comando” racionaloide que seria a consciência de si); e também fecha a porta para o projeto da modernidade (enquanto projeto da ubiquidade do sujeito empreendedor); porém também não transpõe o limiar daquela porta atrás da qual se pratica uma renaturalização, uma recriaturalidade (vulgo “ser humano”). O conceito de comunidade em Agamben deve encontrar-se, penso eu, entre a caracterização de objeto por Ranulph Glanville em termos de filosofia da observação (de forma tal que o objeto não observa nem é observado), e a tecnologia social a se perfilar atualmente sob a designação “Big Data”, na qual todos os modos de apresentação [Erscheinungsweisen] de grupos sociais são traduzidos em [grupos] estatísticos; assim, parecem prescindir de um conceito de sociedade (quando muito, [usam] o conceito de dromologia e do acidental).

Agamben certamente compartilhava a concepção de Hans Peter Weber “de que o ser humano, enquanto unidade de todas as atribuições dadas por uma ciência clássica-categorial das ciências humanas e/ou do sujeito, sempre já foi o fantoma por excelência” ; mas isso não implica rejeitar toda crítica de base humanística. Por outra, também não implica acatar toda e qualquer crítica centrada no humano só por corresponder a nosso atual estado de percepção, avaliação e valoração e por estar sendo atacada, atualmente, por adversários que preferimos ver bem longe . Johann Gottfried von Herder disse: “Nossa humanidade é mero exercício preliminar, botão de futura flor. [...] O estado atual dos seres humanos provavelmente é o elo entre dois mundos” ; se acompanharmos Agamben, isso precisaria ser modificado no sentido de se conceber o ser humano como “estado” de um elo ligado de dois ou muitos mundos. A pessoa humana desligada numa comunidade desligada, entretanto, não mais poderá dispor uma história integrada [Geschichtsverband]; tampouco se vislumbra um anjo da história a fazer o retrospecto. Mas ambos podem aprender, segundo Agamben, a se esquivar da coação para a quantificação política, sociológica, jurídica, econômica da vida, sem produzir novas negações éticas. Primeiras formas preliminares para tanto são as idiossincrasias (principalmente do corpo), as quais Agamben redignifica depois de a industrialização capitalista as ter definido como pura incomodação. Neste aspecto seria interessante ler Agamben em conjunto com Rudolf Heinz , que no conceito de patognóstico mantém, a bem dizer no limite do dizível e estruturável, um ente de nome homo sapiens, cujo vir-a-ser ainda não é história.

IHU On-Line – E em que consiste, então, o paradoxo excêntrico na formulação de Agamben?
Bernd Ternes – Justamente nisto: o vir-a-ser daquilo que chamamos de homo sapiens deve ser pensado em termos históricos e somente históricos; já a historicidade do pensamento é um suplemento da tecnologia do escrever e do veículo livro: tanto a tecnologia quanto o veículo produzem (em retrojeção) o anseio por um núcleo/agente não comprometido pelo tempo (cronologia), de nome ente (“natureza humana”, “Deus”, teleologias políticas de todos os tipos). O próprio Agamben verga essa “atração” e tenta voltar sua energia para desenvolver coerentemente um entendimento de que a pessoa humana não pode ser definida. Assim ele se localiza no terreno de uma Antropologia Histórica, que em seus extremos sempre já tentou negativar mais uma vez a antropologia negativa, sem cair em positividade.

IHU On-Line – É adequado dizer que Agamben analisa a questão da comunidade como categoria política? Por quê?
Bernd Ternes – Penso que aqui é preciso confirmar e também negar.
a) É adequado porque Agamben não recorre a discursos sociobiológicos, de teoria de sistemas ou de ontologia fundamental para daí formar conceitos politizados ou derivativos. Agamben sustenta a percepção de que pessoas humanas, principalmente aquelas organizadas em sociedade e comunidade, precisam ser capazes de atualidade [gegenwartsfähig], ou seja, a elas se pode aplicar o tempo. Já o tempo é mais que mera cronologia ou cronometria, ele precisa de evento, da possibilidade de presença, que por sua vez é premissa de o futuro ser incerto (ou seja: não pode ser plenamente genealogizado). Enquanto para o ente psicossocial que é a pessoa humana o conceito de sentido [Sinnbegriff] possibilita essa dimensão de futuro, para a pessoa socializada é o aspecto político que delineia essa abertura. A pergunta de Agamben pela forma futura de comunidade do gênero humano herda, por isso, a meu ver, tanto a visão de Marx sobre a ainda persistente “história inautêntica [uneigentliche] da pessoa humana” enquanto a forma de produção e de reprodução obedecer a um regime capitalista, como também a visão de Heidegger do “esquecimento do ser” do ente das pessoas.

b) Ao mesmo tempo, não é adequado dizer que a discussão de Agamben sobre o conceito de comunidade se encontra numa categorialidade política, uma vez que ele (compreensivelmente) não consegue apresentar um agente, um “model”, um sujeito que possa reunir em si a tensão paradoxal de “ser” tanto a pessoa humana a se achar ainda em desnuda forma identitária humana, mas que também já se livrou das políticas e semânticas identitárias. A meu ver, trata-se da mesma constelação interpretável em Foucault: o rastro humano na areia sendo apagado pelas ondas – quem estará em condições de detectá-lo: a pessoa desaparecida? Ou somente Nietzsche (o Über-Mensch, não o Super-Mensch)? Mas resta dizer que, em última análise, Agamben não deixou de argumentar politicamente com seu conceito de comunidade, uma vez que ele deixa de desenvolvê-lo teoricamente no agente do conceito [Begriffs-Agens], deixando o vindouro a cargo da práxis da historização negativa (mais ou menos como Marx, nos Grundrisse [der Kritik der politischen Ökonomie], insiste que “o” comunismo não pode ser antecipado teoricamente, mas precisa sintetizar-se na prática).

IHU On-Line – Nesse aspecto, em que medida o esforço filosófico de Agamben se dá no sentido de encontrar categorias para uma filosofia política inovadora?
Bernd Ternes – Günther Anders disse, certa vez, que em determinadas ocasiões o pensamento se aproxima mais da realidade verdadeira quando exagera exorbitantemente – justamente porque a realidade não se atém a limites, nem mesmo os da teoria da distinção ou da semântica linguística/do alcançar [Einholung] (à la Tractatus Logico-Philosophicus, de Wittgenstein ). Vejo a filosofia política de Agamben nessa tradição de Anders ou mesmo de Baudrillard . Só que sua inovação eu enxergaria menos no alargamento de horizonte do pensamento categorial; ao invés, vejo em suas texturas, análises de profundidade e interferências uma formação de horizonte que, uma vez aceita, oferece mais ou menos o quanto a psicanálise de Freud proporcionou como nova “moeda” epistemológica: percepção da sindromática e sintomática ainda mais complexa da constituição de pessoas organizadas – e com isso um exame mais difícil de todas as ideias e visões políticas a visarem libertação, emancipação, humanificação da pessoa.

IHU On-Line – O quanto esta ideia de “comunidade que vem” tem conexão com a “política que vem” e a ideia de profanação?
Bernd Ternes – Da forma como entendo o conceito de profanação, trata-se de outra designação do fato de, na formação das sociedades modernas, se privatizarem tópoi, símbolos, práticas que antes constituíam poder, comunidade e sanção. A secularização é, penso eu, uma das mais eminentes dimensões da profanação: a riqueza mítica do elemento religioso permanece acessível em privado ao mesmo tempo que se volatiliza o sagrado na sociedade (ou, se quisermos formular criticamente: juntamente com a transferência do sagrado para os invólucros do cientificismo). Agamben vai além desse eminente candidato com seu conceito “profanação”; também aqui vejo paralelos com o projeto freudiano de reescrever a conditio humana. Mas a sociedade vindoura de Agamben teria que (no meu entendimento) ter-se liberado, independentizado a tal ponto do próprio passado/dos próprios passados, que profanações, a rigor, só teriam mais dignidade voluntarista ou estocástica. Quando muito, podem assumir a função de laranja [Platzhalter] na posição órfã que antes se encarregava da historização: ganhar independência (culturalmente adequada) do seu próprio passado e também, respectivamente, fazer-se dependente do próprio passado de ganhar independência do passado (a partir do século 20).

IHU On-Line – Por outro lado, podemos compreender a “comunidade que vem” como aquela onde somos capazes de nos dar a nossa própria “forma-de-vida”? Por quê?
Bernd Ternes – Suponho que a forma agambeniana da comunitariedade vindoura deveria “possuir” uma forma como aquela que Vilém Flusser sempre voltava a exprimir indiretamente: como um existencial efêmero, instantâneo, imanente, a insinuar mais o ser caminho [Wegsein] que o existir [Dasein]. A meu ver, isto proíbe presumir uma característica intrínseca [Eigenheit] da forma do ser humano. Agamben, em última análise, embute [hebt auf] a infinitude do ser humano no fato de ele, quando muito, não passar do vir-a-ser. O human being efetivamente se refere estritamente à nossa constituição psicossocial e também psicopolítica atual; penso que Agamben também procura conceber um human becoming [humano em formação] para essas formas/invólucros da pessoa humana. A coisa muda de figura quando se considera as formas de organização das relações entre as pessoas. Aí parece haver formas finais de evolução humana (como, por exemplo, “a justiça” no sentido de Derrida , ou também o “indivíduo como pertencente a uma espécie”, de Marx).

IHU On-Line – Qual é a importância dos escritos de Paulo de Tarso para a construção da ideia “comunidade que vem”?
Bernd Ternes – Na versão de Jacob Taubes , que ressalta a crítica à lei na carta de Paulo aos Romanos, a importância não é grande. A meu ver, a dimensão da lei como policy, o direito, deve ser vista antes como anomalia: já agora podemos observar que a crítica à lei está perdendo cada vez mais terreno para a comunidade de mercado puramente capitalista e para as condições técnicas herméticas de comunicação via coisificação de necessidades que, em última análise, podem ser negociadas. A comunidade que vem estará num mundo pós-lei [nach dem Gesetz] (também se poderia dizer: após a morte do pai e do filho vêm então as filiais [“Tochtergesellschaften”, “subsidiárias”]).
Na dimensão da “internalização negativa” do messianismo enquanto profanação fracassada, a bem dizer suprema, que evacua “inicialmente em caráter temporário” a realização/resgate/redenção para a dimensão da abstinência, não realização, não expressão, permanência no negativo, a teologia política de Paulo poderia, a meu ver, ser ventilada como referência para uma orientação referencial de formação vindoura de comunidade. Eu pessoalmente não conseguiria ver aí uma contribuição de monta.

IHU On-Line – E qual é a influência de Walter Benjamin nas ideias de comunidade e messianismo que perpassam a filosofia de Agamben?
Bernd Ternes – Na minha leitura, não é significativa. Com o conceito cabalista tikkun, Benjamin se refere à restauração e reparo das coisas/veículos/luz espatifados, tarefa messiânica que cabe não ao anjo da história, mas que persiste como tarefa messiânica ante o ponto de partida que é a catástrofe do mundo espatifado, uma vez que o passado, diz Benjamin, porta em si um índice temporal a apontar para a redenção. Assim sendo, fica-lhe evidente que o ser humano como integrante de uma espécie porta, em seu tempo, uma força messiânica que permite que o não quitado do passado efetivamente seja referência do presente – queiramos ou não. Mas em Agamben, penso, o messianismo é de maior dignidade decisória; aí, a meu ver, se reflete a integração de filosofia de direita por Agamben (principalmente dos nazistas Heidegger e Schmitt ). A comunidade de Agamben continua (se é que se pode formular assim) na destruição (como premissa catastrófica da redenção), a qual adquire um estado de agregação ontológico diferente: o da dispersão. Penso que o perfil do conceito prospectivo de comunidade de Agamben não provém do universo de ideias de Benjamin.

IHU On-Line – A partir da análise filosófico-política de Agamben, como compreender a proximidade indisfarçável entre totalitarismos e democracia?
Bernd Ternes – Em termos simplificados: releia-se, para tanto, Luciano Canfora , “La democrazia. Storia di un’ideologia” (em alemão: Kurze Geschichte der Demokratie. Von Athen bis zur EU), de 2004. Ele e Agamben demonstram, via história do materialismo e filosofia política, que não existe distinção material entre poder democrático e não democrático. O que existe é a margem que a democracia proporciona: demos [grego: “povo”] enquanto projeto para se configurar as condições de vida de modo não violento, sem opressão, e para estabelecer abertura como estrutura da constituição de sociedade como atrator da semântica social e então principalmente jurídica (o que foi o último campo de Jürgen Habermas ). Numa leitura esquerdista, Agamben e Canfora insistem que é justificada a provocação de Carl Schmitt, de que com o instituto dos direitos humanos se poderia fazer política ainda mais bestial do que sem o mesmo. Só que o horizonte dos dois não é o fascismo, como em Schmitt, mas a insistência em que a atual forma em que se apresenta a organização social, com sofrimento, injustiça e dominação, deve ser entendida como forma que deve ser arrancada fora – ainda que de modo extremamente complexo. (Também aqui se pode detectar uma reverência a Marx, que de certa forma usou esse motivo do arrancar fora na questão de como o proletariado poderia passar da sua forma humana coisificada para o reino liberto da vivência solidária.)

Resumindo: Agamben conduz para a questão central se no “paradigma” da democracia enquanto ideia existe algo que não precise ser entendido como derivado da forma mais perfeita de dominação (em comparação com a sociedade disciplinar, vide Guy Debord ); algo, portanto, que, em termos muito abstratos, permita disponibilizar como presente o não quitado do passado, presente esse que não pode vir a ser passado, mas chega a si no evento. Nisso, a contradição omnidominante é que essa textura “temporal” já está ocorrendo há muito, isto é, no caráter social do capitalismo, a ser decifrado psicanaliticamente, [caráter social esse] para o qual todo presente sempre só pode ser simulação de um passado que, em si mesmo, nunca foi presente (aqui estaríamos chegando no suplemento de Derrida).

IHU On-Line – Qual é a importância do projeto Homo sacer e também da obra de Agamben como um todo para o debate da filosofia política em nosso tempo?
Bernd Ternes – A meu ver, a importância é muito pequena, infelizmente. O quanto vejo, pelo menos na reflexão universitária das ciências humanas, Agamben é parte de uma espécie em extinção. O “terror” exercido pelo pragmatismo/neopositivismo, pela orientação obsessiva para a aplicação, pelas soluções rápidas, deslegitima um pensamento que consegue intuir em eixos temporais realmente abrangentes o que, quem e como pessoas humanas não são. Justamente numa época em que muitos apoiam com naturalidade um sacrifício intelectual (à la Napoleão: com ele se encerraria a época do romance e começaria a época da história), portanto, em sentido invertido da “traição” segundo Julien Benda , é mais importante do que nunca demorar-se no negativo. Para todos que trabalham na atual “emancipação da sociedade em relação ao ser humano” deveria ser leitura obrigatória o estupendo panorama de Agamben sobre a negativação do nada (valor intrínseco da civilização europeia, segundo Virilio ), ou seja, o desvelamento, desnudamento “do ser humano” descrito pelos invólucros de textura do Iluminismo e da Modernidade, e que bem por isso acabou sendo despido (em duplo sentido). Mas este é um desejo utópico.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Bernd Ternes – Com Agamben, ficou mais fácil acompanhar o pensamento de que o aspecto social entrementes resvalou para uma “posição de derivação”. Com isso me refiro a um deslocamento dos mecanismos fundamentais de formação de sociedade, ou pelo menos maior complexidade da mesma. Expressando-o na linguagem do idealismo alemão e do marxismo: não é mais a coisa morta [das Tote] (mundo analisado, em Hegel , trabalho morto, em Marx) que entra no foco da perspectiva da vida (“vida do espírito”, trabalho vivo), e sim esse[s] último[s] [são focalizados] pela perspectiva da coisa morta – que é o destilado [Kondensat] objetificado, coisificado, abstrato de trabalho, tempo, atos, sofrimento passados. Parece uma loucura; mas poderá ser destrinçado quando se aceitar o conceito de inércia [Leblosigkeit] como “nova” dimensão existencial da paradoxal constituição excêntrica da sociedade, conceito este que despreza a noção de ser-para-a-morte, sem dela conseguir se esquivar; assim, em formulação hiperbólica, ele tem por axioma o enunciado de Viktor von Weizsäcker : vida significa estar apaixonadamente não morto. Essa “filosofia de vida” negativa segue a antropologia negativa, que por sua vez continua devendo sua orientação à dialética negativa. Partidário desta ainda é, quase que sozinho na paisagem, Agamben.■

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