Edição 209 | 18 Dezembro 2006

Manter viva a chama interior, desafio do cristianismo

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IHU Online

O renomado teólogo brasileiro da ordem dos franciscanos, Leonardo Boff, contribui com o tema de capa da edição especial de Natal da revista IHU On-Line, refletindo sobre as razões que ainda o motivam a ser cristão nos dias de hoje.

Boff foi um dos criadores da Teologia da Libertação e, em 1984, em razão de suas teses a ela ligadas e apresentadas no livro Igreja: carisma e poder – ensaios de eclesiologia militante. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1982, foi submetido a um processo pela ex-Inquisição em Roma, na pessoa do cardeal Joseph Ratzinger, hoje Papa Bento XVI. Em 1985, foi condenado a um ano de "silêncio obsequioso" e deposto de todas as suas funções. Dada a pressão mundial sobre o Vaticano, retornou a elas em 1986. Em1l992, sendo outra vez pressionado com novo "silêncio obsequioso" pelas autoridades de Roma, renunciou às suas atividades de padre. Continuou como teólogo da libertação, escritor e assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais. Desde 1993, é professor de Ética, Filosofia da Religião e Ecologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  É autor de mais de 60 livros nas áreas de teologia, espiritualidade, filosofia, antropologia e mística, entre os quais citamos Ética da Vida (Rio de Janeiro, Sextante, 2006); Igreja: carisma e poder. Ensaios de uma eclesiologia militante (São Paulo: Record, 2006); e Virtudes para outro mundo possivel II: convivência, respeito e tolerância (Petrópolis: Vozes, 2006). Eis o que Boff falou à IHU On-Line, por e-mail, sobre o cristianismo hoje.

O cristianismo, bem como as religiões, não quer substituir a ciência e a técnica. Estas atendem a necessidades nossas, mas são mudas e cegas quando se trata de definir o sentido da vida. O cristianismo nisso é forte. Ele afirma que estamos na palma da mão de Deus. A vida é chamada para a vida e não para a morte. Mas não qualquer vida, senão a vida transfigurada e ressuscitada, permitindo-nos viver numa profunda comunhão com Deus. Como dizem os místicos: seremos também Deus por participação.

A crença em Jesus

Jesus é uma antecipação, uma pequena miniatura daquilo que será realidade para todos na plenitude dos tempos. Nele aconteceu uma revolução no processo de evolução. A ressurreição o transfigurou totalmente e o levou ao ponto ômega da história. Como ele é nosso irmão, participaremos também deste destino.

Os valores do cristianismo

O Cristianismo nos oferece um outro olhar sobre toda a realidade. Não a vê como algo morto e sem sentido. Mas como uma criatura que nasceu do coração do Criador. Tudo é sacramento, fala de Deus, remete a Deus, vem penetrado de Deus. Assim tudo se faz templo sagrado, a formiga do caminho, o pobre da esquina, o Papa em Roma e cada um de nós. Esse olhar nos convida a sentirmo-nos filhos e filhas do Pai e Mãe celestes e irmãos e irmãs uns dos outros. Devemos tratar os outros como se Deus estivesse nascendo de dentro deles.

As relações entre fé, razão e o discurso da ciência

A ciência diz como o mundo é. A fé se admira pelo fato de que existe mundo e não o nada. A ciência traz utilidades, atende a demandas da vida e da razão. A fé responde às questões que sempre estão na agenda das pessoas. Pouco importa sua idade: de onde venho? Para onde vou? Qual o meu lugar neste mundo, no conjunto dos seres? Que posso esperar depois desta vida? A fé se especializou na resposta a estas questões para as quais a ciência tem pouco a dizer. E responde positivamente. Nós temos futuro, a vida continua e a eternidade nos espera, caindo nos braços do Deus, que é Pai e Mãe de infinita ternura.

Paulo de Tarso e os ensinamentos de Jesus Cristo

Paulo é o maior gênio teológico do cristianismo. Ele fez a ruptura necessária da matriz hebraica e criou a matriz helênica. Hoje vivemos destas duas heranças. Ele atualizou para o mundo moderno daquele tempo a mensagem de Jesus, criando uma teologia que vai muito mais longe do que é dito nos evangelhos. Por isso, ele é o príncipe da liberdade e da criatividade cristã.

Os desafios do cristianismo no século XXI

O primeiro desafio é a (des)ocidentalização do Cristianismo. Mais e mais o Ocidente é um acidente na história mundial. O cristianismo não pode ligar seu destino apenas ao Ocidente. Ele deve poder ser assimilado pelas culturas mundiais a partir de suas matrizes próprias, fazendo suas sínteses como nós fizemos.

O segundo desafio é de ordem organizacional. O cristianismo de versão católica é ainda tributário a usos e costumes medievais e das cortes européias. Ele não incorporou os valores da experiência democrática da modernidade que supõe pessoas participativas, livres, adultas. Ele ainda infantiliza demais os fiéis, marginaliza as mulheres e rebaixa os leigos. Esse é um dos motivos por que tantos estão emigrando da Igreja Católica.

Entretanto,  o maior desafio é como conseguir que os seres humanos mantenham viva a chama interior, sagrada, da presença de Deus, da sacralidade de cada coisa que existe, da veneração pela grandiosidade e complexidade do universo e de respeito pelo mistério de cada pessoa humana. Se perdemos esta dimensão, corremos o risco de afundar e de se perverter o que existe de mais importante no ser humano: sua dignidade e sua capacidade de transcendência.

 

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