Edição 505 | 22 Mai 2017

Nenhum sistema político funciona sem o elemento glorioso

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Márcia Junges | Edição: Vitor Necchi| Tradução: Henrique Denis Lucas

Para Fabián Ludueña, ritos políticos contemporâneos estão se transformando e é preciso entender sua dinâmica

Em O reino e a glória, Agamben mapeia a assinatura teológica que se mantém como paradigma da política contemporânea. Para o filósofo Fabián Ludueña, o debate não é novo, mas o esforço empreendido pelo pensador italiano permitiu uma reatualização. “O século 20 foi marcado, em diferentes períodos, por uma consideração da importância do teológico-político para definir as características mais particulares dos sistemas políticos contemporâneos. Poderíamos dizer que a obra de Agamben tem permitido uma nova sistematização das premissas deste debate para as quais o filósofo italiano adicionou seu próprio diagnóstico e novos insights acerca das maneiras como a ciência política ainda fala de acordo com um vocabulário que herdou da teologia”, afirma em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Para Ludueña, a partir das pesquisas de Agamben, é “verdadeiramente importante entender que nenhum sistema político conhecido, do passado ou do presente, pode funcionar sem a presença de um elemento ‘glorioso’”. E acrescenta: “A compreensão dos dispositivos de aclamação do nosso mundo atual implica preliminarmente um questionamento acerca de quais sentidos podemos falar hoje de democracia, como os modernos conceberam esta forma de exercício do poder político. Se o ecossistema midiático-digital transforma o povo em uma mera entidade de exercício virtual da soberania reduzida às circunstâncias esporádicas do voto, as formas reativas de política podem emergir de novas formas. Por este caminho, o próprio conceito de democracia está sofrendo mudanças talvez irreversíveis”.

Fabián Ludueña é licenciado em Sociologia pela Universidade de Buenos Aires - UBA, mestre e doutor em História da Civilização pela École des Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris - EHESS. É autor de Homo Oeconomicus. Marsilio Ficino, la teología y los misterios paganos (1433-1499) (Madri: Miño y Dávila Editores, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as principais liturgias aclamatórias da soberania divina?
Fabián Ludueña – A vida dos cristãos (e especialmente a dos padres e monges) é definida, em sua totalidade, pela temporalidade e pela ortopráxis da liturgia. Neste caso, a soberania divina é celebrada, por exemplo, no Ocidente, através de uma diversidade de cantos litúrgicos, entre os quais o Te Deum destaca-se como o principal. Neste ponto, é oportuno observar a importância do canon missae e dos cantos associados, como é o caso de Kyrie, Gloria, Sanctus ou Agnus Dei. Os cânticos litúrgicos têm, cada um em sua complexa história, a função de ressaltar aspectos diversos da soberania divina e sua relação teológico-política com o mundo humano.

Por outro lado, não devemos esquecer que entre os cânticos eclesiásticos e as fórmulas aclamatórias de soberania profana sempre existiu uma interação recíproca que demonstra a maleabilidade dos limites e, o que é mais importante, que a aclamação litúrgica se destina, em última instância, à exaltação da soberania enquanto tal, independentemente de esta pertencer a uma ordem temporal ou eclesiástica.

IHU On-Line – Quais são seus significados para os dispositivos políticos?
Fabián Ludueña – Em primeiro lugar, devemos lembrar que a liturgia está profundamente relacionada com a esfera política desde os primeiros registros do termo no mundo grego. No âmbito da pólis grega, a palavra “liturgia” servia para designar um conjunto heterogêneo de serviços (leitourgiai) que poderiam ser realizados por alguns cidadãos em prol da comunidade política como um todo. Posteriormente, sem perder a sua espessura política, a noção foi tangenciando-se até adquirir um significado que implicava no culto às divindades. Desta maneira, com a sua validade política e religiosa, foi recebida pelo Cristianismo que, em latim, utilizou uma terminologia ampla que vai do ministerium até o officium, acentuando ainda mais explicitamente o tom político do termo. Assim, a liturgia constitui-se no dispositivo por excelência que instaura o rito político da Igreja cristã, tanto no Oriente quanto no Ocidente, com todas as suas variantes. Tanto nos modelos estritamente teológicos quanto nos secularizados, a liturgia política permitirá as atividades constituintes de todas as formas de poder em sua relação com a comunidade. A liturgia se constituirá exatamente em um instrumento privilegiado para introduzir uma dinâmica politizadora, no seio de uma multidão, para conferir-lhe caráter de um corpo político.

IHU On-Line – Como analisa as liturgias aclamatórias na democracia em nosso tempo?
Fabián Ludueña – Como sabemos, a tese de Agamben sustenta que nas democracias contemporâneas prevalece o government by consent, ou seja, uma economia política destinada a conduzir a vida dos homens de acordo com os desígnios dos meios de comunicação que regulam todos os aspectos da existência social. Esta tese precisa ser complexificada atualmente, pois o aspecto aclamatório nos sistemas políticos contemporâneos (e não apenas nos sistemas democráticos) são uma combinação sofisticada e intrincada que constituem um tecido que abarca desde as formas de reconhecimento público tradicionais com multidões presentes até a desmaterialização completa da presença do organismo público e sua translação in toto às esferas dos mundos digitais.
De certa forma, podemos dizer que hoje assistimos a uma nova forma de êxodo político, massivo e planetário, cujo destino é verificado no completo esvaziamento do espaço político das cidades para transferência ao próprio meio das redes sociais e do ciberespaço como um todo (o processo, no entanto, não é identificado nem resolvido unicamente no paradigma de representação imaginária). Os ecossistemas cibernéticos, neste ponto, constituem-se nos substitutos da política tradicional e, ao mesmo tempo, ainda interagem com ela. Deste ponto de vista, a compreensão das liturgias aclamatórias contemporâneas requer a tarefa prévia de tentar desvendar a nova sociologia do espaço político virtual e, consequentemente, a multiplicação das formas de exercício da liturgia. Finalmente, é possível dizer que liturgias completamente novas surgem sobre o chão do nosso presente e apenas estão sendo identificadas como tal. Assim, a crise do capitalismo tardio contemporâneo implica, ao mesmo tempo, em crises que substituem as liturgias políticas tradicionais e de seus meios de transmissibilidade.

IHU On-Line – Até que ponto podemos dizer que a democracia se legitima hoje principalmente através de dispositivos de aclamação?
Fabián Ludueña – Justamente pelo que expressei anteriormente, hoje há uma necessidade de desenvolver uma nova taxonomia de dispositivos de aclamação, pois existem formas inteiramente novas de configuração do político. As mutações são, até certo ponto, mais profundas do que os elementos fundamentais da concepção democrática, como, por exemplo, a própria noção de “povo”, que sofre transformações inesperadas não apenas por parte das novas e crescentes divisões em seu interior, mas especialmente porque as novas antropotecnologias cibernéticas estão produzindo uma autêntica translatio imperii a partir das formas de política moderna (com seus sistemas de partido ou o peso dos meios de comunicação tradicionais derivados da imprensa) até as plataformas digitais que envolvem uma mudança decisiva na experiência humana do seu entorno. Portanto, a compreensão dos dispositivos de aclamação do nosso mundo atual implica preliminarmente um questionamento acerca de quais sentidos podemos falar hoje de democracia, como os modernos conceberam esta forma de exercício do poder político. Se o ecossistema midiático-digital transforma o povo em uma mera entidade de exercício virtual da soberania reduzida às circunstâncias esporádicas do voto, as formas reativas de política podem emergir de novas formas. Por este caminho, o próprio conceito de democracia está sofrendo mudanças talvez irreversíveis.

IHU On-Line – Em que medida essa característica aclamatória aproxima a democracia liberal de nossos dias à democracia pura, ao modelo formulado por Carl Schmitt ?

Fabián Ludueña – Eu diria que, na verdade, é impossível encontrar uma “democracia pura”. Se por este termo entendemos a herança política do mundo grego, devemos admitir que a democracia moderna já tem uma experiência secular maior do que a própria democracia ateniense, que não durou mais do que dois séculos. Além disso, o caráter “representativo” não estava totalmente ausente dessa forma democrática antiga, e os problemas constitutivos que trazia consigo, por exemplo, a estase ou a guerra civil, a transformaram em um modelo inviável. A democracia moderna (que, aliás, não deveríamos chamar de liberal, em primeira análise) tem um componente aclamatório muito mais pronunciado do que a democracia antiga. Carl Schmitt localizou este novo elemento na “opinião pública”, pedra de toque da democracia moderna. No entanto, este conceito tem se tornado cada vez mais opaco, pois Schmitt ainda pensava nas formas de opinião pública derivadas do mundo da imprensa escrita, enquanto testemunhava a grande mutação comunicacional do século 20. Entretanto, o nosso mundo técnico é, em muitos sentidos, radicalmente diferente do mundo conhecido por Schmitt e exigirá, portanto, uma nova concepção acerca do que devemos entender pela função aclamatória na pós-democracia contemporânea. De fato, a ontologia social dos seres falantes está mudando tanto que a opinião pública é hoje indissociável, por exemplo, de um império de novas formas de ciber-iconologias políticas cujo significado recém estamos começando a vislumbrar.

IHU On-Line – A partir dessa perspectiva, quais são as possíveis aproximações entre aclamação, democracia e totalitarismo?
Fabián Ludueña – Como sabemos, em muitos casos Agamben tende a aproximar características paradigmáticas comuns que diversos sistemas políticos podem compartilhar. Este poderia ser o caso da aclamação em regimes democráticos e totalitários. A tese não é nova e já havia sido adiantada por Kantorowicz . Apesar da enorme pertinência dessa abordagem, penso que é verdadeiramente importante entender que nenhum sistema político conhecido, do passado ou do presente, pode funcionar sem a presença de um elemento “glorioso”. No entanto, a “ritologia” política contemporânea está transformando suas formas, e somente poderemos entender a dinâmica dos ritos políticos se conseguirmos nos perguntar sobre seus profundos significados antropotécnicos. Sabemos que os ritos podem desempenhar papéis análogos em diferentes sistemas políticos, já que suas propriedades são transferíveis. Portanto, o essencial muitas vezes não passa por enfatizar unicamente as continuidades das formas aclamatórias, mas começa por constituir uma nova filosofia dos ritos políticos nas formas mais diversas que o mundo contemporâneo nos apresenta.

IHU On-Line – Em que sentido essa democracia pura pode fundamentar uma democracia de massas?
Fabián Ludueña – Se entendemos por “democracia pura” o modelo ateniense, pode-se dizer que as relações com a democracia moderna são bastante escassas. No entanto, não me parece que este seja um fato para lamentar. Os modernos construíram sistemas políticos que dependem de um evento que os antigos não desconheciam por inteiro, mas certamente ignoravam as dimensões adquiridas para nós. Refiro-me ao evento revolucionário. Portanto, uma tarefa pertinente que devemos abordar consiste em perguntarmo-nos sobre as razões que determinaram que se possa falar de uma “democracia das massas”. Se as “massas” substituíram o sujeito político do “povo”, então estamos diante de um demos transformado em ochlos (massa). E talvez a característica do nosso tempo seja o advento de uma “oclocracia”, definida de acordo com um entorno tecnocientífico que produz uma terceira ruptura: não mais a democracia antiga, não mais a democracia moderna, mas o problema de compreender o novo rosto da “oclocracia” contemporânea.

IHU On-Line – Qual é a influência de Peterson e Kantorowicz na arqueogenealogia sobre a aclamação realizada por Agamben em O reino e a glória?
Fabián Ludueña – A pesquisa genealógica da aclamação realizada por Giorgio Agamben depende inteiramente dos grandiosos trabalhos não apenas de Erik Peterson e Ernst Kantorowicz, mas também de Andreas Alföldi . Em certa medida, a obra de Agamben consistiu em uma releitura desses clássicos esquecidos da teologia política. Basta pensar, neste ponto, na obra monumental de Peterson, Heis Theós, e as dívidas teóricas aparecerão em plena luz. No entanto, a genealogia da aclamação que Agamben leva adiante tem também Carl Schmitt como interlocutor privilegiado, um profundo conhecedor das obras dos três estudiosos mencionados.

IHU On-Line – Qual é a novidade e a importância do diagnóstico realizado por Agamben sobre a assinatura teológica que continua a ser o paradigma da política contemporânea?
Fabián Ludueña – Agamben permitiu a reatualização de um debate que não é novo. O século 20 foi marcado, em diferentes períodos, por uma consideração da importância do teológico-político para definir as características mais particulares dos sistemas políticos contemporâneos. Poderíamos dizer que a obra de Agamben tem permitido uma nova sistematização das premissas deste debate para as quais o filósofo italiano adicionou seu próprio diagnóstico e novos insights acerca das maneiras como a ciência política ainda fala de acordo com um vocabulário que herdou da teologia.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum outro aspecto?
Fabián Ludueña – Quanto a sua pergunta anterior, um exame cuidadoso da obra de Agamben nos permite também vislumbrar certos limites, porque a aposta não consiste, do meu ponto de vista, em interrogar unicamente pela continuidade do dispositivo teológico-político nos sistemas que governam o mundo em uma escala planetária. Sem dúvida, esta é uma investigação necessária. A partir daí, não há continuidade, no entanto, de que o caminho do futuro deva ser simplesmente uma “profanação” da política cujos contornos nunca chegam a se enunciar senão como um horizonte metafórico e incerto. Certas hesitações da filosofia política de Agamben residem, talvez, no fato de que o teológico-político não é apenas uma figura historicamente articulada, mas também um dispositivo antropotecnológico fundamental talvez imprescindível, mas cujo último significado ainda está para ser desvendado. A transformação completa que a política contemporânea exige para tornar-se genuinamente emancipadora ainda exigirá novos esforços de compreensão de nossa parte.■

Leia mais


- Vontade antropotécnica e biopolítica. Entrevista com Fábian Ludueña, Revista IHU On-Line, edição no. 344, 21-9-2010.

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