Edição 505 | 22 Mai 2017

Oikonomia trinitária enquanto paradigma da máquina governamental

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Márcia Junges | Edição: Vitor Necchi| Tradução: Luísa Flores Somavilla

Adam Kotsko destaca que, para Agamben, economia moderna trabalha com o princípio da mão invisível, versão secularizada da mão de Deus

O teólogo e professor Adam Kotsko analisa que “o que é singular em O reino e a glória não é sua narrativa em geral ou a conexão da Trindade com a política, mas os detalhes da análise de Agamben”. Ele acredita que “a sua ligação entre Trindade e a doutrina da providência representa uma grande mudança de paradigma para se pensar o desenvolvimento do pensamento cristão”.

Kotsko acrescenta: “o ponto de conexão não é a própria Trindade, mas o seu desenvolvimento no paradigma da providência”. “Essa doutrina retrata o governo ou a gestão que Deus faz do mundo como fundamentalmente econômica, o que significa que Deus prefere usar meios indiretos para alcançar seus objetivos. Deus não nos obriga a nada. Em vez disso, Deus opera pelo nosso livre arbítrio, que Ele indiretamente manipula para atingir seus objetivos. É assim que, supostamente, a economia moderna trabalha, já que todas as nossas escolhas contribuem para um resultado positivo devido à intervenção da mão invisível (que, na verdade, é uma versão secularizada da mão de Deus, como Agamben argumenta no apêndice de O reino e a glória)”, analisa em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Adam Kotsko é teólogo, professor assistente de Ciências Humanas no Shimer College, em Chicago, Estados Unidos. Entre suas publicações, destacamos mais recentes destacamos Agamben’s Coming Philosophy. Finding a New Use for Theology (Editora Rowman & Littlefield International, 2015), Politics of Redemption: The Social Logic of Salvation (Cambridge, James Clarke and Co, 2010), Awkwardness (Ropley: Zero Books, 2010) e Why We Love Sociopaths: A Guide to Late Capitalist Television (Ropley: Zero Books, 2012).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A partir da perspectiva de Giorgio Agamben em O reino e a glória, você poderia explicar o que é a oikonomia trinitária?
Adam Kotsko – A abordagem de Giorgio Agamben da doutrina da Trindade é singular. Ao invés de destacar os diversos debates que levaram à formação da ortodoxia trinitária, ele traça o percurso de uma palavra-chave específica: oikonomia, o termo grego para "economia". Oikonomia inicialmente se referia à gestão da casa, mas passou a abarcar outras formas de gestão, mais improvisadas, como a gestão das emoções do público em um discurso político, por exemplo, ou a gestão de conflitos em um império multicultural. Agamben argumenta que quando os teólogos cristãos, incluindo os "hereges", utilizavam essa linguagem, eles estavam fazendo referência ao mesmo conceito geral. Deus tem que "administrar" sua relação com a Criação, o que significa, primordialmente, "administrar" a relação de Deus com o próprio Deus. A vida interior de Deus – a trindade – tem a sua própria "economia", que permite que Ele administre a "economia da salvação".

IHU On-Line – Qual é a novidade desta ideia e sua contribuição para o debate da teologia política e da teologia econômica?
Adam Kotsko – Agamben não é o primeiro a dar consequências políticas à Trindade. Ele aponta para o trabalho de Erik Peterson , que argumentou, opondo-se a Schmitt , que uma teologia política cristã era impossível por causa da Trindade. O raciocínio de Peterson foi que a teologia política de Schmitt dependia de uma analogia entre Deus e um governante terreno, mas a Trindade nos mostra que Deus é radicalmente diferente de qualquer outra coisa na criação – na verdade, Ele não pode ser concebido em nossos termos terrenos normais (como é que um pode ser três, por exemplo?). Antes de Peterson, Karl Barth fez uma afirmação semelhante, diminuindo qualquer ligação entre Deus e as autoridades terrenas. Para ambos, a Trindade demonstra que Deus é radicalmente transcendente e está além de qualquer coisa que possamos conceber. Por isso, nenhuma autoridade terrena poderia reivindicar nossa fidelidade.


Outros teólogos, já no século XX, também fizeram declarações políticas sobre a Trindade, muitas vezes argumentando – em oposição a Barth e Peterson – que a Trindade fornece um modelo para formas humanas de comunidade, que devem incluir o mesmo tipo de igualdade na diversidade que vemos entre Pai, Filho e Espírito Santo. Um livro muito bom que recentemente investigou e questionou profundamente esta tendência na teologia é God and Difference (Deus e Diferença), de Linn Tonstad .

Agamben também está longe de ser o primeiro a fazer a distinção entre política e economia, que já foi feita por Aristóteles e, mais recentemente, foi adotada por Arendt . As raízes teológicas da economia moderna também não são totalmente desconhecidas, pois Foucault empreendeu uma genealogia parecida. Na verdade, enquanto Agamben estava trabalhando em O reino e a glória, Dotan Leshem estava trabalhando em seu próprio estudo da história da oikonomia na teologia cristã, recentemente publicado como The origins of Neoliberalism (As origens do Neoliberalismo).

O que é singular em O reino e a glória não é sua narrativa em geral ou a conexão da Trindade com a política, mas os detalhes da análise de Agamben. Mais especificamente, acredito que a sua ligação entre Trindade e a doutrina da providência representa uma grande mudança de paradigma para se pensar o desenvolvimento do pensamento cristão.

IHU On-Line – Em que sentido a oikonomia trinitária torna-se um paradigma da máquina governamental ocidental?
Adam Kotsko – O ponto de conexão não é a própria Trindade, mas o seu desenvolvimento no paradigma da providência. Essa doutrina retrata o governo ou a gestão que Deus faz do mundo como fundamentalmente econômica, o que significa que Deus prefere usar meios indiretos para alcançar seus objetivos. Deus não nos obriga a nada. Em vez disso, Deus opera pelo nosso livre arbítrio, que Ele indiretamente manipula para atingir seus objetivos. É assim que, supostamente, a economia moderna trabalha, já que todas as nossas escolhas contribuem para um resultado positivo devido à intervenção da mão invisível (que, na verdade, é uma versão secularizada da mão de Deus, como Agamben argumenta no apêndice de O reino e a glória).

IHU On-Line – Qual é a importância da oikonomia para o paradigma da biopolítica e o triunfo da economia e do governo?
Adam Kotsko – Neste ponto eu gostaria que Agamben fosse mais explícito e direto. Às vezes parece que a sua análise em O reino e a glória não está intimamente ligada ao resto dos livros Homo Sacer, e sua tentativa de assimilá-la a outros livros na conclusão de O uso dos corpos não é totalmente convincente na minha opinião. Uma maneira de tentar preencher essas lacunas é traçar um paralelo entre o paradigma econômico – que considera a sociedade como um ambiente doméstico – e a tentativa biopolítica de trazer a "vida comum" para a esfera política, sendo que, na verdade, "pertence" à esfera doméstica.

A partir desta perspectiva, podemos ver que Agamben está preparando o terreno para sua análise da oikonomia em sua discussão do direito do pai em Homo Sacer, ou em como o Império Romano tornou-se a casa do imperador em Estado de Exceção. Ambas são narrativas sobre como a família invade o âmbito propriamente político, com consequências terrivelmente destrutivas. E aqui eu acho que a abordagem de Hannah Arendt do político e do econômico no livro A Condição Humana influencia-o profundamente – algo que ele mesmo anuncia nas páginas iniciais de Homo Sacer, mas depois não toca mais no assunto. A abordagem de Agamben é radicalmente diferente da de Arendt, principalmente por basear-se na genealogia foucaultiana, mas as preocupações básicas de ambos são bastante semelhantes.

IHU On-Line – Que relações podem ser estabelecidas entre economia e glória?
Adam Kotsko – A tradição teológica torna esta ligação muito direta através da atribuição de direitos econômicos aos anjos, que existem principalmente para glorificar a Deus. E, claro, toda a economia da salvação, em última instância, existe para trazer glória a Deus, reivindicando-o como o Senhor e Salvador de toda a criação. Para Agamben, esta ligação parece inicialmente intrigante, porque a glória é mais associada ao soberano, ou seja, à esfera política. Ele dedica um capítulo inteiro à glória do imperador, que tem suas próprias liturgias públicas e refere-se ao ressurgimento de cerimônias políticas sob movimentos fascistas do século XX.

Mais ao fim do livro, ele também sugere que o que chamamos de esfera pública ou de opinião pública – circulação de doxa (expressão grega que significa opinião e glória) no "mercado das ideias" – é uma versão secularizada da combinação cristã entre economia e glória. Para mim, esta análise parece apontar novamente à sua afirmação no final de O Sacramento da Linguagem, que diz que um mundo que se torna exclusivamente oikonomia está condenado a falar sempre em vão. Sem uma esfera propriamente política, nossas palavras não têm significado real, mas simplesmente circulam como marcadores de popularidade ou pertencimento, sem consequências políticas.

IHU On-Line – Você pode voltar à origem do conceito estoico da providência e explicar sua ligação com a noção moderna de economia e governo da vida? Quais são os aspectos fundamentais da reformulação, pela cristandade, da estoica providência-destino para uma providência-liberdade?
Adam Kotsko – Agamben mostra como os pensadores cristãos utilizam-se de conceitos estoicos da providência, que funcionam de maneiras muito semelhantes – Deus age indiretamente, etc. A diferença que eu vejo é que o cristianismo enfatiza muito mais a liberdade, e os teólogos cristãos continuam insistindo no livre arbítrio, mesmo quando também aceitam a predestinação. Para mim, isso mostra a diferença fundamental entre a visão de mundo estoica e a cristã. O objetivo do estoicismo é proporcionar ao indivíduo uma aceitação de seu destino através do desapego emocional e da contemplação. O objetivo do cristianismo, no entanto, é o julgamento moral do mundo e de todos os seus indivíduos. Os dois convergem na prática moderna da "teodiceia" – que significa justificar o status quo do nosso mundo em termos teológicos –, como assinala Agamben no apêndice do livro.

IHU On-Line – Do que se trata o governo indireto no cristianismo e na Modernidade, considerando o paradigma do ato de governar? Qual é o "dano colateral" da Providência?
Adam Kotsko – Em ambos os paradigmas, não é um governo diretamente coercitivo. Deus não desce dos céus e força as pessoas a fazerem o que é certo, e o governo não coloca uma arma na cabeça de ninguém para forçar a pagar impostos, por exemplo. Intervenções diretas podem acontecer, mas são exceções à regra – no cotidiano, o governo depende que as pessoas "voluntariamente" sigam as leis. E nós continuamos seguindo enquanto percebemos que o sistema está nos beneficiando ou enquanto essa seja uma alternativa mais plausível.

Assim, tanto Deus quanto o governo nos controlam através do nosso livre arbítrio. E em ambos os paradigmas, as nossas escolhas às vezes são ruins – e este é o "efeito colateral" do sistema. No sistema teológico, Deus faz uso do dano colateral para extrair o bem do mal. Já o sistema secular de governo pode utilizar certos tipos de "danos colaterais" (por exemplo, o modus operandi do capitalismo, que, por vezes, deixa as pessoas carentes e sem-teto) como um estímulo a uma maior obediência e produtividade das pessoas que temem tornar-se "danos colaterais" a si mesmos.

IHU On-Line – A quebra entre teologia e oikonomia ou, em outras palavras, entre ser e agir, é a explicação de Agamben para a práxis livre e anárquica. A ação política que resulta dessa configuração baseia-se, portanto, não em ser, mas em agir. Poderíamos dizer que esta é a raiz administrativa lógica que permeia a política ocidental? Por quê?
Adam Kotsko – Esta é uma das partes mais difíceis da discussão de Agamben. Acredito que ele esteja querendo dizer que o paradigma econômico, que privilegia o agir sobre o ser, acaba exigindo ações só por exigir, mesmo sendo ações inúteis, sem sentido, infindáveis. Nós queremos agir de forma eficiente – e este conceito é explorado por ele mais extensamente no Opus Dei – sem questionar para quê. Queremos utilidade, mas esquecemos que a utilidade só pode existir no contexto de um objetivo mais abrangente – a utilidade não pode ter um fim em si mesma. Aqui, assim como em muitos lugares, eu acredito que ele está reelaborando ideias de Arendt em A Condição Humana, traçando seu próprio caminho na tradição intelectual ocidental, a fim de aprofundar e problematizar a sua narrativa.■


Leia mais

- Agamben e o repensar da teologia a partir de seus fundamentos. Entrevista com Adam Kotsko e Colby Dickinson, reproduzida nas Notícias do Dia de 15-9-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

- Žižek e a tentativa radical de repensar a tradição cristã. Entrevista com Adam Kotsko publicada na IHU On-Line, número 431 de 4-11-2013.

- A revelação da “morte de Deus” e a teologia materialista de Slavoj Žižek. Cadernos Teologia Pública número 92.

- Política e perversão: Paulo segundo Žižek. Cadernos Teologia Pública número 88.

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