Edição 504 | 08 Mai 2017

O poeta livre de amarras

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João Vitor Santos

Maurício Dias analisa texto e estrofes de Pasolini que, segundo ele, não cabem em nenhum modelo

Experimentador. Para o professor de Letras da Universidade de São Paulo - USP Maurício Santana Dias, essa é a melhor palavra que define a obra como um todo de Pier Pasolini. Ele qualifica o artista italiano como “‘ensaiador’ das formas artísticas mais variadas, transitando do poema ao romance, à crítica cultural e literária, ao cinema, ao jornalismo, ao teatro”. Assim, no que diz respeito a estética, é extremamente complicado classificar os movimentos de Pasolini. No que diz respeito à temática de seus poemas, o professor reconhece que até a figura do “poeta civil” não dá conta de definir o italiano. “Percebe-se um profundo mal-estar de Pasolini com a possibilidade de ser fixado numa forma imutável, num rótulo de fácil consumo”, explica Dias.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor explica por que o artista italiano tem sido tão recuperado. “A voz de Pasolini se impõe com muita força em nossos dias”, pontua. “Com sua obra sempre provocadora, muitas vezes no limite do escândalo de tão ousada, soube abrir espaços como poucos artistas do século 20, provocando seus leitores e interlocutores a pensar e a sair de suas posições consolidadas”, completa. E para se ter ideia de tamanha lucidez, vale destacar as preocupações de Pasolini com a vulnerabilidade da própria ideologia – de esquerda – que assumia. “Gramsci é um dos tantos espectros que rondaram Pasolini, e aquele poema elegíaco [As cinzas de Gramsci] está intimamente ligado à crise do pensamento de esquerda, mais especificamente comunista, da Itália de meados dos anos 1950”.

Maurício Santana Dias é professor de Letras Modernas e Estudos da Tradução na Universidade de São Paulo - USP, crítico literário e tradutor. Foi professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Uerj entre 1995 e 1998, jornalista cultural do jornal Folha de S. Paulo entre 1998 e 2003, pesquisador visitante da Georgetown University (Washington, DC) em 2000 e fez pós-doutorados nas universidades La Sapienza, de Roma, e Sorbonne Nouvelle, em Paris. É autor de A Demora: Claudio Magris, Danúbio, Microcosmos (São Paulo: Lumme, 2009), e já traduziu mais de 40 títulos, entre eles textos e poemas de Pasolini. Atualmente prepara uma edição das cartas de Italo Calvino.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor define a poesia de Pier Paolo Pasolini?

Maurício Santana Dias – É uma poesia de difícil definição, porque não pode ser identificada a este ou aquele movimento mais ou menos preciso, a esta ou aquela poética. Pasolini foi antes de tudo um experimentador, um “ensaiador” – no sentido que Galileu deu à expressão – das formas artísticas mais variadas, transitando do poema ao romance, à crítica cultural e literária, ao cinema, ao jornalismo, ao teatro. Essa extraordinária vontade de experimentação pode ser percebida claramente nos sete ou oito livros de poesia que ele publicou ao longo de três décadas, em que ele não só variou de forma, começando muito próximo do lirismo de poetas provençais, de simbolistas franceses, de Giovanni Pascoli e dos herméticos italianos para, a partir de meados dos anos 1960, se abrir a uma quase indistinção entre o verso e a prosa, mas também de problema, incorporando a suas poesias os grandes debates que mobilizaram artistas e intelectuais entre os anos 1940-1970.

E aí me refiro mais especificamente aos debates da esfera pública, em que o lirismo subjetivo vai cada vez mais cedendo espaço a questões políticas e culturais daqueles anos agitados, tanto é que Pasolini acaba criando para si a imagem de “poeta civil”. Essa figura do “poeta civil”, do artista engajado, acabou prevalecendo entre o seu público, ainda que Pasolini se voltasse insistentemente contra essa “identidade” que ele mesmo criou, já que no fim das contas tal imagem obscurecia em grande parte o caráter complexo, ambíguo e contraditório de sua experimentação, sempre em movimento.

IHU On-Line – No que a poesia de Pasolini inspira a pensar nos problemas da sociedade contemporânea?

Maurício Santana Dias – Justamente pela abrangência de formas e ideias que seus poemas mobilizam, pelo seu caráter antidogmático e experimental – sem ser vanguardista –, penso que a voz de Pasolini se impõe com muita força em nossos dias. Quando digo isso não me refiro propriamente a certas ideias que Pasolini lançou e que reverberaram e ainda reverberam, como a noção de “genocídio cultural” das sociedades pré-burguesas ou não burguesas, a “mutação antropológica” que o consumismo e o tipo de vida do capitalismo tardio estariam promovendo, à sua crítica feroz à TV como indutor dessa espécie de homogeneização e administração da vida. Penso sobretudo na abertura que seus versos promovem no sentido de ampliar a experiência de novas formas e ideias que, por aberrantes ou utópicas que sejam, precisam de espaço para que proliferem, e nesse sentido Pasolini, com sua obra sempre provocadora, muitas vezes no limite do escândalo de tão ousada (de uma “desesperada vitalidade”), soube abrir espaços como poucos artistas do século 20, provocando seus leitores e interlocutores a pensar e a sair de suas posições consolidadas. Obviamente ele pagou um preço bem caro por isso, suscitando reações violentas ou simplesmente incompreensão – mas não indiferença.

IHU On-Line – As questões de fundo que inspiram o poeta e o cronista Pasolini são as mesmas? Como elas aparecem nos distintos gêneros literários?

Maurício Santana Dias – Há algumas questões que são recorrentes em Pasolini, como sua atenção à vida dos que estão à margem da sociedade burguesa que, na Itália, foi tomando feições próprias a partir de meados dos anos 1950. Os personagens de seus versos, romances e primeiros filmes são todos ligados ao mundo do subproletariado das grandes cidades, Roma acima de tudo, com sua linguagem, seu modo de pensar, sua fé e sua descrença, suas estratégias de sobrevivência etc. E de fato Pasolini conviveu intensamente com esses grupos, sobretudo a partir de 1950, quando ele se fixou em Roma.

Esses personagens, que num primeiro momento são vistos por Pasolini quase como exilados de um mundo rural e arcaico em extinção, mais tarde passam a integrar plenamente aquela cultura burguesa e a pensar e se comportar segundo seus valores, mas sem deixar de estar à margem, de ser marginal. Os versos e textos em prosa de Pasolini flagram e denunciam essa mutação como poucos, e a retrabalha obsessivamente em várias obras. Mas a cada obra – livro, filme, peça, ensaio – o problema muda, Pasolini sente agudamente a aceleração histórica e, como alguém que faz parte desse processo (e não o assiste confortavelmente de fora), ele mesmo revê incessantemente suas posições, procurando lhe dar novas formas.

IHU On-Line – Que aproximações podemos fazer entre as obras de Pasolini e Cesare Pavese ?

Maurício Santana Dias – Eu diria que, apesar dos inegáveis pontos de contatos entre os dois – a reflexão que ambos fazem sobre o mito, sobre as sociedades arcaicas, sobre figuras marginais do mundo em acelerado processo de aburguesamento, e pendor por uma poesia mais narrativa e discursiva –, as poéticas de Pasolini e Pavese são quase opostas. Numa famosa antologia que o poeta Edoardo Sanguineti lançou em 1969, ambos (além do poeta Elio Pagliarani ) foram reunidos sob a mesma rubrica de “realismo experimental”, o que a meu ver criou muitos mal-entendidos.

Pavese é o poeta da autodisciplina e do controle quase maníacos, que publica um único livro de poemas (Trabalhar cansa) onde tudo é calculado milimetricamente. Seus versos longos e aparentemente informes obedecem a regras estritas que ele mesmo criou para si, e que em boa parte derivam do anapesto grego . O fato de ele ter escrito uma tese sobre Walt Whitman também gerou mal-entendidos entre seus críticos, que leram Pavese como um poeta de versos livres e narrativos. Nada mais distante, como procurei mostrar em meu estudo introdutório que acompanha a tradução de Trabalhar cansa (São Paulo: Cosac Naify, 2009). Natalia Ginzburg faz dele um perfil magistral em Retrato do amigo, que está no livro As pequenas virtudes .

Já Pasolini foi oposto disso: um artista onívoro, voraz, que experimentou de tudo e se transformou incessantemente até a morte.

IHU On-Line – Pasolini pode ser pensado como “poeta das Cinzas de Gramsci” ? Por quê?

Maurício Santana Dias – Tanto o volume publicado em 1957 quanto o longo poema nele incluído, As cinzas de Gramsci , são sem dúvida um momento central da obra de Pasolini – e, a meu ver, onde ele alcançou os resultados mais notáveis como poeta. Mas ele mesmo irá, anos mais tarde, referir-se ironicamente a si como o “poeta das Cinzas de Gramsci”.

Percebe-se um profundo mal-estar de Pasolini com a possibilidade – que sempre acontece, porque é a via mais fácil – de ser fixado numa forma imutável, num rótulo de fácil consumo – justo ele, que era o artista da inquietação e da mobilidade permanente. Nesse sentido, me lembra o problema de uma farsa teatral de Pirandello , “Quando si è qualcuno”, que encena justamente essa transformação do artista vivo e pensante numa estátua de pedra, um monumento sempre igual a si mesmo.

Gramsci é um dos tantos espectros que rondaram Pasolini, e aquele poema elegíaco, longo e magnífico (Italo Calvino , outro escritor muitíssimo diferente de Pasolini, lhe diz numa carta de 1955 que se trata da melhor poesia que estava sendo escrita na Itália daqueles anos), está intimamente ligado à crise do pensamento de esquerda, mais especificamente comunista, da Itália de meados dos anos 1950. Depois sobrevêm outras questões, que merecerão de Pasolini outros tratamentos formais – mas a etiqueta é algo que gruda e não larga mais.

IHU On-Line – De que forma a poesia de Pasolini chega ao cinema? Como a crítica social de seus versos se traduzem para a sétima arte?

Maurício Santana Dias – Pasolini começa a escrever poesia ainda menino, se forma em Letras e publica seu primeiro livro aos 20 anos de idade. É um grande conhecedor de filologia e da tradição da poesia dialetal na Itália, da qual organizou uma importante antologia publicada em 1955.

Quando ele chega ao cinema com Accatone (1961), às vésperas de fazer 40 anos, é um escritor e um intelectual maduro, que já havia elaborado longamente em versos, ensaios, romances e textos jornalísticos vários daqueles núcleos conceituais-imagéticos que ele depois iria desdobrar nos anos 1960 e 1970 até chegar àquela espécie de apocalipse sem revelação que é Salò (1975).

São muito conhecidas as teorizações de Pasolini sobre o “cinema de poesia”, mas não se deve entendê-lo como uma transposição pedestre de um meio, a poesia, para outro meio, o audiovisual do cinema. Com certeza a aposta de Pasolini na arte cinematográfica se vinculava a sua “paixão pelo real”, o desejo de adesão quase imediata às coisas, como se as palavras, desgastadas, já não fossem suficientes para nomear a “totalidade” da experiência. Mas acho importante lembrar que, ao ser assassinado em novembro de 1975, Pasolini estava trabalhando no projeto de um novo longa-metragem (Porno-Teo-Kolossal), tinha um longo e inacabado texto narrativo na gaveta – Petrolio – e militava assiduamente na imprensa italiana. Mas a morte violenta veio coincidir com o “mal radical” de Salò, dando a impressão de que não haveria mais nada depois daquilo.

IHU On-Line – Como foi a experiência de revisitar poemas de diversas fases de Pasolini para a tradução da antologia lançada recentemente pela Cosac Naify ? Quais seus maiores desafios nessa tradução?

Maurício Santana Dias – Quisemos, eu e Alfonso Berardinelli , que organizou a antologia comigo, chegar a uma seleção de textos que, na medida do possível e de nossos incontornáveis gostos pessoais, desse conta da enorme variedade de formas, ideias e imagens que compõem o magma poético de Pasolini. A operação era ainda mais delicada e, em certo sentido, arbitrária (e violenta) por se tratar do primeiro livro de poemas de Pasolini publicado no Brasil. Tivemos sobretudo o cuidado de não oferecer ao leitor brasileiro uma imagem parcial de um poeta tão complexo, mutante e “ensaiador” como Pasolini, o cuidado de não reforçar certos estereótipos ligados à sua figura: o polemista, o militante, o profeta, o apocalíptico. Por isso selecionamos textos de cada um de seus livros de poesia e não só: percebendo um movimento do verso de Pasolini em direção à prosa ensaística, beirando a indistinção entre um e outro em um livro como Trasumanar e organizzar, extrapolamos o “estritamente” poético e incluímos alguns textos muito importantes de seus livros de ensaio Empirismo eretico, Lettere luterane e Scritti corsari, enfatizando justamente esse contínuo que atravessa três décadas de trabalho intelectual e criativo.

Foi difícil chegar a essa forma final, tivemos de deixar de fora textos extraordinários e por isso mesmo antológicos, mas, levando em conta nosso critério de base – dar a ver a multiplicidade quase inesgotável de Pasolini –, acho que o volume correspondeu a esse propósito. É claro que se trata apenas de uma primeira abordagem antológica da poesia de Pasolini, e esperamos que a partir daí a história da recepção de Pasolini no Brasil siga vários outros rumos.

Quanto às dificuldades de tradução, acho que só a leitura de cada poema e de cada verso poderia explicitá-la. Eu, como tradutor, talvez precisasse escrever um livro paralelo a respeito.

IHU On-line – Quais os desafios para se traduzir Pasolini tanto em termos linguísticos quanto sociais, levando em conta a passagem dos tempos?

Maurício Santana Dias – Os poemas friulanos , por exemplo, eu jamais os teria traduzido sem me valer das traduções literais que o próprio Pasolini fez. Mas sempre tentando seguir o ritmo e a sonoridade do friulano (por sorte, há alguns vídeos de Pasolini lendo seus poemas friulanos no YouTube). Outra dificuldade foi lidar com a intensa alternância de registros, muitas vezes dentro de um mesmo poema. E tentar acompanhar de perto a velocidade do pensamento pasoliniano, suas reviravoltas e fintas, não é tarefa das mais fáceis. Para usar uma imagem futebolística, futebol de que ele tanto gostava, muitas vezes o tradutor tinha de voltar várias vezes o mesmo lance para não se deixar driblar. Mas nem sempre isso foi possível.

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