Edição 504 | 08 Mai 2017

O socialismo pasoliniano e a crítica à hipocrisia de quem quer melhorar o mundo

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João Vitor Santos

Vinícius Honesko analisa a forma como o artista italiano, sem uma tolerância que apaga e homogeneíza, resiste a um neofascismo que se perfaz enquanto capitalismo do consumo

Segundo o professor Vinícius Nicastro Honesko, Pier Pasolini reconhece uma impossibilidade de melhorar o mundo. “Dizia ele que aqueles que dizem fazer algo para melhorar o mundo são cretinos e, quando menos se espera, acabam presos por calúnia”, explica. Dado que, com isso, o mundo pode piorar, “cabe a nós lutar não para que melhore, mas para evitar sua piora; lutar por manter um mínimo e, quiçá, por uma sociedade verdadeiramente socialista”. Honesko, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, destaca que o “socialismo” de Pasolini está diretamente ligado com a ideia de anarquia do poder. “Uma sociedade verdadeiramente socialista não pode advir de uma estrutura que, em si, recobre o vazio e vela para que este não seja exposto enquanto tal, mas só pode ser fruto da resistência revoltosa que incessantemente é preciso manter em pé”, completa.

Por fim, o professor ainda atualiza o conceito de neofascismo. Segundo ele, “o neofascismo denunciado por Pasolini é como uma espécie de imagem sombria da obsessão pelo consumo que naqueles anos embrenha-se na sociedade italiana e começa a lhe corroer qualquer sentido de, justamente, comum”. Assim como apresenta uma perspectiva de tolerância que, muito mais do que movimento de aceitação do outro, é vista por Pasolini como tolerância do poder comunista, “que vem de cima” para que indivíduos se tornem “bons consumidores”.

Vinícius Nicastro Honesko é graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e doutor em Literatura pela mesma instituição. Fez estágio pós-doutoral na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e atualmente é professor do Departamento de História e do programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná - UFPR. É autor do livro O Paradigma do Tempo: Walter Benjamin e messianismo em Giorgio Agamben (Vida e consciência; 2009) e de vários ensaios e capítulos de livro. Ainda atua como tradutor, com destaque para traduções de obras de Giorgio Agamben. Entre as elas, destacamos O que é o Contemporâneo? e outros ensaios (Argos: 2009), Categorias Italianas. Ensaios de poética e literatura (UFSC: 2015) e Bartley, ou da contingência (Autêntica: 2015) Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor compreende a obra de Pier Paolo Pasolini? Por que o trabalho do cineasta e escritor italiano lhe desperta interesse?

Vinícius Nicastro Honesko – Pasolini é uma figura complexa, multifacetada, que desperta, desde os primeiros contatos que com sua obra se tem, por vezes alguns incômodos – e lembro-me de quando pela primeira vez vi Teorema (1968), por exemplo –, outras vezes até mesmo certa repulsa – e evoco aqui Salò (1975), sobretudo para aqueles que com ele topam de modo desavisado –, outras tantas certa identificação – lembro de A Ricota (1963) e dos textos ensaísticos de Pasolini para os jornais e revistas italianos, com os quais desde o início senti como que o fenômeno do “bom encontro”.

A “obra” de Pasolini identifica-se em muito com a própria imagem do poeta-diretor. Lembro-me de um pequeno documentário de Carlo di Carlo , de 1967, em que Pasolini diz, apontando para o sofá onde encontram-se algumas edições de seus livros: “A história da minha vida é a história dos meus livros. Eis meus livros e, aqui, neste sofá, está praticamente toda minha vida”. A obra de Pasolini confunde-se com os gestos de Pasolini, confunde-se com seu corpo de tal modo que sua figura é, em todo seu caráter paradoxal (oximoro, como ele mesmo se definia), carregada de tensões e, por isso, desperta interesses não só de leitura – algo como uma curiosidade por decifrar verdades históricas de um contexto, a Itália dos 60 e 70, ou por compreensão da constituição dos debates públicos em torno à sociedade, ao cinema e artes, à política etc. –, mas de diálogo.

Digo, sobretudo, que Pasolini é alguém com quem conversar, um contemporâneo nosso com o qual ainda podemos fazer lampejar imagens no constante momento de perigo que é o presente, para lembrar Walter Benjamin . Desde seus poemas à sua crítica literária, passando por seu cinema e teatro, ingressando em seus textos sobre a política e a sociedade, Pasolini não se estaca num período determinado e ali fica recluso como numa cripta, mas parece estar lampejando. Sua figura parece lampejar ainda hoje, como alguém que nos propõe certo olhar para o mundo que, sim, pode sempre piorar (como ele costumava dizer).

Em suma, a “obra” de Pasolini, como você se refere, é muito mais um movimento constante de tudo isso que é a figura de Pasolini; e os diversos incompletos, projetos etc. que encontramos em seus papéis são a mostra de alguém que nunca parava diante de uma ideia, mas que, pelo contrário, era capaz de abandoná-la em absoluto, de refazê-la dos pés à cabeça, de não parar o movimento de vida que seus gestos cumpriam em cada obra.

IHU On-Line – Certa vez, o senhor referiu o autor como alguém “verdadeiramente socialista” . O que isso significa tanto na perspectiva política quanto na crítica social desferida por Pasolini?

Vinícius Nicastro Honesko – Com essa ideia, fiz menção a um pequeno texto em que Pasolini falava sobre a impossibilidade de melhorar o mundo. Dizia ele que aqueles que dizem fazer algo para melhorar o mundo são cretinos e, quando menos se espera, acabam presos por calúnia. O mundo, continuava ele, pode sim piorar, mas cabe a nós lutar não para que melhore, mas para evitar sua piora; lutar por manter um mínimo e, quiçá, por uma sociedade verdadeiramente socialista.

Essa imagem do socialismo tem para Pasolini um peso enorme. No contexto em que escreve, é preciso lembrar, os embates pessoais dele com o Partido Comunista Italiano – PCI eram imensos: pressentia que, do ponto de vista institucional, o PCI ainda era o que restava à Itália (ainda carregava certa “força do passado”, dizia), mas, desde o lugar daquele que luta para evitar uma “piora do mundo”, era falho, insuficiente e logo acabaria por “trair a causa”, por assim dizer (e não custa lembrar que os acordos firmados pelo PCI com os democratas cristãos, tendo como horizonte intransponível a “governabilidade”, seriam o exemplo da pedra de toque dos contextos de instauração do neoliberalismo nos fins dos 70 e início dos 80).

O horizonte “socialista” de Pasolini passava por outros lugares: a “nostalgia” da vida – que não era um amor pelo passado, mas um “amor pela vida” que restava, digamos, ainda fora da apreensão pela lógica avançada do capitalismo de então –, a contestação radical do mundo neocapitalista (e o colocar em jogo o próprio corpo nessa crítica), a insistência em lutar contra a deglutição das culturas pelos vícios da homogeneização promovida pela “civilização do consumo” que estava se instaurando naquele contexto italiano etc. Em suma, a dimensão desse socialismo pasoliniano diz respeito à posição de resistência, apesar de tudo. Não penso que ele tenha sido um utópico, mas muito mais alguém que, nisso talvez – ouso – próximo a um Deleuze , pensava essa resistência como uma linha de fuga, mesmo que em direção do próprio coração do problema: por exemplo, seu “romance” Petróleo seria uma espécie de denúncia das atrocidades do poder, digamos assim; seu Salò seria uma alegoria de como ele via o poder não na Salò fascista da década de 40, mas na Itália – e no mundo – em 1975.

Ou seja, a resistência pela arte, se assim posso dizer, não com um viés apenas engajado (como nos traços de um Sartre ), mas como potenciada por ser, mesmo que denunciativa, negação absoluta – e, mais uma vez ouso dizer, por um viés talvez bataillano ou mesmo blanchotiano: a potência da resistência de quem se sabe impotente; o gesto de quem diz algo mesmo quando nada mais há para dizer. Parece-me que esse “socialismo” de Pasolini está em conexão direta com sua constatação – sobre a qual falarei logo mais – da anarquia do poder: uma sociedade verdadeiramente socialista não pode advir de uma estrutura que, em si, recobre o vazio e vela para que este não seja exposto enquanto tal (e a forma como os governos, naqueles anos, estão se rearranjando em prol da sistemática capitalista financeira – inclua-se aí o PCI! –, algo que nos dias de hoje se faz uma platitude, é prova disso), mas só pode ser fruto da resistência revoltosa que incessantemente é preciso manter em pé.

IHU On-Line – De que formas as provocações de Pasolini podem nos inspirar a pensar nas questões de nosso tempo?

Vinícius Nicastro Honesko – Respondo ao som de Velha roupa colorida, do Belchior , que acaba de falecer. E o verso “o passado é uma roupa que não nos serve mais” talvez seja uma espécie de eco pasoliniano no rapaz latino-americano que insistentemente trabalhava em traduções e versões da Divina Comédia dantesca. Talvez na mais famosa delas, os versos de encerramento possam também ser um modo de, homenageando Belchior, revolver as terras e tradições italianas desde onde nos provoca Pasolini: “Enquanto houver, corpo e tempo e / algum modo de dizer não / eu canto”.

Pasolini insistia em dizer não, por mais que isso pudesse causar escândalo à direita ou à esquerda: não ao PCI (por mais que soubesse ser, por vezes, o que havia de “saída” à política institucional italiana), não aos democratas cristãos, não à modernização capitalista que achatava diferenças culturais e modos de vida, não à TV (por mais que nela se expusesse para, justamente, dizer não), mas também não aos jovens burgueses universitários que se rebelavam em 68, não ao aborto (que, naquele contexto, acabaria por ser um modo de legitimar, mais do que um direito das mulheres, o gozo capitalístico).

As provocações de Pasolini passavam pelo corpo. Já disse que Pasolini se portava tal qual um Diógenes em meio aos aparatos institucionais dos anos 60 e 70. Um intelectual que apostava a vida desarrazoadamente, se podemos dizer assim. Não um delírio, mas tomado de pathos, de emoção – também não num sentido psicologizado –, de paixão (e ainda antes de seu despontar como grande diretor, digamos, já numa coletânea de ensaios publicada em 1960, esse ser tomado pela tentativa de compreensão dos outros – escritores, nesse caso – já se apresentava no título dado ao livro: “Paixão e ideologia”).

Pasolini se deixava afetar no próprio corpo e, como resposta, muitas vezes o “não” era a provocação radical. Seu dizer não pode hoje reverberar como um “Eu preferiria não” de Bartleby (ainda que a pujança pasoliniana seja o reverso da apatia do escrevente, mesmo assim, ambos carregam efeitos próximos nessa negativa do mundo tal qual se apresenta), pode nos “inspirar” a ao menos pensar em que medida o imperativo da “ação”, da “melhoria de mundo”, não deva ser colocado em questão em figuras como a “linha de fuga” (ou “desterritorialização”, para pensarmos com Deleuze), a “deserção”, a “inoperosidade” (e isso, mais uma vez, me remete ao “sumiço” de Belchior). Pensar nosso tempo é lidar com um tempo em que o pensar, por si só, já é tarefa árdua; no tempo da automação dos viventes e da “smartificação” das máquinas, talvez o “não” seja uma forma de ainda permanecer em pé, de se colocar na vida com paixão e sem as ilusões com uma racionalidade que, como fiel da balança, poderia conduzir a uma emancipação da humanidade (essa abstração já há muito falida).

IHU On-Line – Como Pasolini compreende o conceito de resistência? Podemos associá-lo à ideia de liberdade?

Vinícius Nicastro Honesko – Retomando a questão anterior, penso que a resistência tem justamente a ver com essa “negativa”, com essa espécie de constante tentativa de não se deixar tomar pelos modos de produção de sentido que nos enclausuram seja no utilitarismo (e o recorrente – e, ultimamente, crescente – discurso anti-intelectual é só um sintoma disso), seja num jogo ilusório de conquistas de um espaço público, de uma razão comunicativa, de um logos em que as medidas das coisas humanas poderiam ser levadas da melhor forma possível e, com isso, nos conduzir a um reino da liberdade. Resistir, para Pasolini, tem a ver com aquilo que ele chamava seu caráter oximoro de estar no mundo. Paradoxal, oximoro, coloca-o imediatamente no front de uma batalha que por vezes ele encampa com toda sua força e outras vezes denega, abjura, abandona. Isso fica claro em seus últimos anos quando empreende sua tentativa de exibir o que poderia escapar ao nefasto poder neocapitalista, isto é, os corpos daqueles ainda não tomados por essa lógica (faço menção à Trilogia da Vida e às odes à África, ao Brasil e ao sul da Itália que fazia em alguns poemas, algo que retomarei a seguir), mas que, ao perceber que mesmo tais corpos já estavam subsumidos na nova lógica, abjura seu trabalho, como se esse movimento de resistência já não mais fosse suficiente.

Assim, o movimento é paradoxal mas, em seu caráter de fundo, mantém a condição da liberdade de dizer e desdizer, de enfrentar e não se deixar abalar pelo fato de ter de abortar o enfrentamento. Para Pasolini a liberdade (dos liberais e, talvez, já pressagiando aquela que será a dos neoliberais) não podia gerar sentidos. Ele estava preocupado com como ainda poder fazer laços em um mundo onde isso parecia a cada instante se tornar interditado. Talvez as palavras do Comitê Invisível possam ser interessantes para, hoje, serem uma espécie de atualização de uma possível ideia pasoliniana de liberdade: “De um ser autenticamente livre, nem sequer se diz que é livre. Ele apenas é, existe, move-se conforme seu ser. Só se diz de um animal que ele está em liberdade quando cresce num meio já de todo controlado, esquadrinhado, civilizado: no parque das regras humanas onde se dá o safári. “Friend” e “free” em inglês, “Freund” e “frei” em alemão, provêm da mesma raiz indo-europeia que remete à ideia de uma potência comum que cresce. Ser livre e estar ligado são uma e a mesma coisa. Eu sou livre porque estou ligado, porque faço parte de uma realidade mais vasta do que eu. Na Roma Antiga, os filhos dos cidadãos eram os liberi: por meio deles, era Roma que crescia”.

IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre o “neofascismo” referido por Pasolini com a ideia de neofascismo, de intolerância e de recusa do outro, que circula contemporaneamente?

Vinícius Nicastro Honesko – Creio que é preciso entender o neofascismo denunciado por Pasolini – que ele dizia ser muito mais nefasto do que os fascismos históricos – como uma espécie de imagem sombria da obsessão pelo consumo que naqueles anos embrenha-se na sociedade italiana e começa a lhe corroer qualquer sentido de, justamente, comum. Ele chegou a definir esse neofascismo: “Este poder está na própria totalização dos modelos industriais: é uma espécie de possessão global das mentalidades pela obsessão de produzir, de consumir e de viver em função disto. É um poder histérico, que tende a massificar os comportamentos (...). O fascismo histórico era um poder grosseiramente fundado sobre a hipérbole, sobre o misticismo e o moralismo, sobre a exploração, o patriotismo, o familiarismo... O novo fascismo é propriamente uma poderosa abstração, um pragmatismo que canceriza toda a sociedade, um tumor central, majoritário...”.

Sua denúncia, no entanto, não significava que ele não estivesse implicado nesse novo tipo de arranjo do poder. Aliás, Pasolini nunca se escusou da responsabilidade de ser em certa medida cúmplice da instauração desse neofascismo. Parece-me, ao lê-lo, que para ele a questão se mostra numa outra clave: somos – e digo: nós, pequena burguesia planetária – sempre em alguma medida responsáveis por esse tipo de movimentação política reacionária e destrutiva.

Acho interessante que você tenha usado o termo intolerância. Aliás, Pasolini detestava a ideia de tolerância. Dizia, sobretudo em relação às questões polêmicas (drogas, anticoncepcionais, aborto etc.) de seu tempo: “Eu não acredito que a atual forma de tolerância seja real. Ela foi decidida ‘de cima’: é a tolerância do poder consumista, que necessita de uma absoluta elasticidade formal nas ‘existências’ para que os indivíduos se tornem bons consumidores.” Ou seja, a totalização do neofascismo, já vislumbrava ele, exigia certa dose de uma tolerância capaz de colocar todos – justamente: o achatamento e aniquilamento das diferenças em benefício de uma massificação total – no circuito do consumo. Parece-me que o que estamos assistindo hoje é o desdobramento inevitável da totalização dos comportamentos. Uma vez tudo (supostamente, claro!) incluído na lógica, uma vez que já não há contestação à boa vida promovida pelas melhorias advindas a todos (ainda supondo...) pelos desenvolvimentos tecnológicos, já não há mais por que tolerar aqueles que se negam a participar do todo e que não reconhecem tais melhorias: deles é mais fácil se desfazer. Uma espécie de lógica biopolítica da depuração do “corpo total dos integrados” parece ser o mecanismo de funcionamento da lógica contemporânea desse desdobramento do neofascismo cujo nascimento Pasolini apenas sondava.

Penso que estamos, sim, vendo uma continuação nefasta – em âmbito muito estendido: Brasil, Europa, EUA etc. – daquilo que via Pasolini. O que ele não poderia imaginar é a que ponto a ideia “libertária” das tecnologias de informação poderiam ser ainda um elemento (o requinte de crueldade...) para disseminar um “embuste” de diálogo e, assim, exibir as entranhas do funcionamento da “falsa tolerância” por ele denunciada: agora que está exibida em sua falsidade, a tolerância passa a ser um mote das más consciências esclarecidas (remeto aqui mais à ideia do cinismo contemporâneo de Peter Sloterdijk ) e, com isso, um lugar vazio que – mesmo com as melhores intenções –abre caminho para as manifestações mais agudas da violência.

Com isso, numa pequena digressão, quero dizer que mais do que “tolerar” o outro é preciso encará-lo justamente em sua diferença; mais do que “massificação” dos desiguais ou “manutenção” das diferenças por meio de um discurso que pressupõe a “tolerância” (que no fundo, e nessa leitura pasoliniana, é, apesar de tudo, um outro modo de negar esse outro), é talvez, para dizer com Jean-Luc Nancy , ser-com o outro, perceber que não há composição unívoca possível, mas apenas o instransponível estar no mundo com esse outro, com toda a dificuldade que comporta o gesto do “a-frontamento” desse outro. Em suma, suportar o face a face, a própria relação que inclui o eu (não uma tolerância “do” outro, mas um suportar o fato de que o “eu” e o “outro” marcam a possibilidade de um mundo).

IHU On-Line – Como o senhor compreende a representação dos corpos na obra de Pasolini e qual sua associação com a política dos rostos?

Vinícius Nicastro Honesko – Pasolini procurou, ao menos durante um tempo (em específico entre 1970 e 1974), nos corpos e nos ainda “marginalizados” pela sistemática nascente do neocapitalismo de então uma espécie daquilo que ele chamava de “força do passado”. De fato, a ideia de um passado em que a massificação e “destruição” dos corpos (lembro dos textos de Pasolini que polemizam com as roupas e cabelos dos “jovens rebeldes” de 1968; dizia ele que as marcas da rebeldia, uma vez apreendidas e tornadas “mercadoria”, já não poderiam sinalizar nada de rebeldia em face daquilo contra o que supostamente se rebelava) ainda não havia se cumprido parece ser o tom da “nostalgia” pasoliniana. A nostalgia da vida, a que já fiz referência, diz respeito à necessidade de encontro com esses corpos e rostos que ainda não se fazem iguais (consumidores) por um poder que tudo massifica, achata e, por fim, destrói, diria Pasolini.

Para ele esses corpos, nesse período do início dos anos 70, poderiam ter sobrevivido em alguns rincões (África, sul da Itália, Iêmen, Índia, Brasil) que ainda não estavam no “circuito” do novo poder. Pasolini trata, portanto, de levar esses que estão fora para o “centro” desse lugar por excelência da sociedade do espetáculo e do consumo: a sala de cinema. Com seus atores não profissionais advindos da periferia de cidades como Nápoles, Roma, Edimburgo (que pessoalmente convidava para participar das filmagens como atores) Pasolini tratava de, portanto, exibir seu gesto de resistência. Entretanto, ele percebe, pouco tempo depois de filmar a Trilogia da Vida (onde esse seu modo de operar atinge seu ápice) que esse seu gesto de algum modo esbarra num limite: até mesmo esses corpos são apreendidos no movimento de totalização do neofascismo. O que fazer? Bem, ele trata de expor como vê esse poder tentacular: filma Salò.

Em outras palavras, mesmo quando já percebe que aquilo que mais ama (os corpos dos marginalizados, seus rostos pobres e belos, como costumava dizer) parece-lhe interditado, não renuncia a seus intentos. Que seja num grito – de desesperança, mas sem medo: e gosto sempre de lembrar que talvez o adágio latino nec spe nec metu seja um ótimo modo de se referir a Pasolini –, mas não se cala: a denúncia, a resistência, o bradar mesmo que lhe custasse a vida são os modos de insistir, de continuar seu papel de “destotalizar” (como disse certa vez em entrevista a Jean Duflot: o intelectual “tem o dever de exercer uma função crítica sobre práticas políticas globais, de ‘destotalizar’, senão, que intelectual seria ele?”), apesar de tudo.


IHU On-Line – É possível compreender as questões de fundo que inspiram Pasolini a partir das elaborações de Agamben ? Como?

Vinícius Nicastro Honesko – Para mim é evidente que Pasolini é um dos autores fundamentais para se compreender Agamben. Desde as análises agambenianas sobre a linguagem e literatura (presentes em livros como Categorias Italianas – e neste a leitura agambeniana de Giovanni Pascoli é em muito devedora da que faz Pasolini ainda nos anos 40 –, Che cos’è la filosofia?, Idea da Prosa, dentre outros) até os últimos desenvolvimentos da série Homo Sacer (sobretudo em O uso dos corpos), Pasolini sempre se insinua. No sentido de sua pergunta, Agamben pode ser uma boa lente para se apreender algumas questões pasolinianas, sim. Para não me alongar, talvez um dos pontos fundamentais dessa relação esteja na ideia de arché, mais precisamente na dimensão política que envolve a noção de anarquia.

Pasolini sempre se colocou como alguém que tinha uma nostalgia do arcaico, de algo que faria com que o amor pela vida crescesse. Por fim, quando já não mais aposta nesse arcaico, como já disse acima, decide expô-lo tal como tomado pelo poder contemporâneo. E assim o exibe em sua alegoria desse poder: Salò. “Nada é mais anárquico do que o poder. Porque o poder faz o que quer, como quer, quando quer”, diz, no filme, o Monsenhor. Essa imagem, retomada em diversas ocasiões por Agamben, é a exposição de que no fundo de todo instituído permanece um vazio, de que a arché, a origem, é sempre vazia e a política é um conflito justamente em torno desse vazio. A anomia, o estado de exceção tornado regra nos tempos da democracia espetacular, enfim, tudo isso que denuncia Agamben, são as mostras da anarquia do poder. Aliás, exibem o mecanismo de funcionamento do poder que faz o que, como e quando quer. E não é por acaso que todo o empreendimento arqueológico de Agamben (ainda que nos traços de Foucault ) carrega em seu seio, de um modo ou de outro, algumas variações das exibições que Pasolini faz desse “vazio do Poder” (que, aliás, é o título do clássico ensaio conhecido como “texto dos vagalumes”).

Por fim, gostaria de lembrar de uma recente entrevista de Agamben sobre um de seus últimos livros, Pulcinella. Ovvero divertimento per li regazzi. Diz ele: “Pulcinella me fascina porque exibe em seu próprio corpo os vícios do mundo onde vive, e porque também ele é insensato e vil. Ao mesmo tempo, no entanto, ele mostra como, uma vez liberados de sua inscrição no poder, estes mesmos defeitos podem se tornar a cifra de uma outra humanidade, de uma superior anarquia. Também a anarquia, com efeito, pode ser compreendida apenas se primeiramente é liberada de sua apreensão no poder, apenas se nos lembramos, como Pasolini faz dizer um dos hierarcas de Salò, de que a anarquia pertence antes de tudo ao poder”. O vazio da arché é aquilo que a todo instante o poder trata de recobrir: talvez Pasolini tenha levantado esse véu e nos exibido uma visão atroz: seu Salò; talvez Agamben esteja nos mostrando, a seu modo, como essa visão do atroz pode se espraiar ainda mais por lugares que, recobertos de belas palavras, tentam nos fazer crer – a contrario do adagio nec spe nec metu – que tudo há de melhorar, que o mundo há de melhorar; mas Pasolini já nos alertou em relação a isso...■

Leia mais

- Reflexões sobre os espaços urbanos contemporâneos: Quais as nossas cidades? Artigo de Vinícius Nicastro Honesko, publicado no Cadernos IHU ideias, número 253
- Por um espírito verdadeiramente socialista. Reportagem produzida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, publicada nas Notícias do Dia de 27-10-2016.
- A impossibilidade de melhorar o mundo. Entrevista com Vinícius Nicastro Honesko, publicada na revista IHU On-Line número 495, de 17-10-2016.

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