Edição 502 | 10 Abril 2017

Nada é efêmero, discreto ou apagável no universo digital

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Vitor Necchi

Para Wilson Gomes, o uso das redes sociais depende tanto do que as pessoas querem fazer com elas quanto das suas características inerentes

As redes sociais digitais podem propiciar a sensação de que, nelas, há mais discussão, mais agressividade. Não é bem assim. “Não foram inventadas novas formas de odiar, humilhar, linchar pessoas. Nós sempre fomos muito bons nisso”, ressalva o professor Wilson Gomes, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “O que acontece hoje é que todas as formas de interações e de redes sociais podem ser digitalizadas, ganhar forma em ambientes digitais ou ter ambientes digitais como suas extensões.”

Gomes salienta que “o ódio circula muito facilmente por qualquer rede ou ambiente social e não apenas nos sites de mídias sociais”. No entanto, “a diferença dos meios digitais é o fato de que qualquer ato, qualquer fala, qualquer comportamento de ódio deixa rastros”.

Por conta da ampla disseminação, “os meios e os ambientes digitais podem ser empregados de muitos modos e com muitas finalidades”, explica. O que decorre deles “depende tanto do que as pessoas querem fazer com eles quanto das suas características inerentes”. Uma possibilidade é em prol da democracia, “um sistema de gerenciamento das diferenças que supõe claramente a existência de arenas em que haja atrito de pensamento, contraste de ideias e a formação de uma opinião esclarecida”.

Um dos problemas é o excesso de polarização e o ódio. “A formação de redes sociais por afinidade em meios digitais é campo fecundo para que indivíduos formem ou se agreguem em coletivos com identidades bem demarcadas e muito homogêneas”, descreve Gomes. No entanto, “facilmente se passa da constatação da diferença para a afirmação de que há divergência, e do registro da divergência para a marcação da hostilidade”.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital - INCT.DD. Autor de Transformações da política na era da comunicação de massa (Paulus), Jornalismo, fatos e interesses (Insular) e A política na timeline (Edufba), além de coautor, com Rousiley Maia, de Comunicação & democracia: problemas e perspectivas (Paulus).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – As redes sociais digitais podem fomentar ou transformar a democracia?

Wilson Gomes – Os meios e os ambientes digitais podem ser empregados de muitos modos e com muitas finalidades. O que decorre desses meios e dos ambientes digitais que eles proporcionam depende tanto do que as pessoas querem fazer com eles quanto das suas características inerentes. Assim, há certamente um número muito grande e muito bem documentado de empregos das mídias sociais em benefício da vida democrática. Isto inclui um grande número de coisas, dentre as quais destaco o livre mercado de ideias proporcionado pelos novos ambientes sociais. Os sites de mídias sociais no Brasil se tornaram um ambiente muito usado para a discussão da política, para a politização das questões sociais e para a circulação e comentário de informação política. Há como que uma atualização da esfera pública política, estrutura essencial da democracia liberal, nesses novos ambientes digitais, com ampla circulação de informação, intenso contraste de opinião, ofertas de oportunidade de expressão e agrupamento dos mais variados pontos de vista.

A democracia é um sistema de gerenciamento das diferenças que supõe claramente a existência de arenas em que haja atrito de pensamento, contraste de ideias e a formação de uma opinião esclarecida. Gostemos ou não da qualidade da divergência online ou da opinião que as pessoas nelas formam, as arenas digitais representam uma renovação muito importante do interesse político e do engajamento na discussão dos problemas nacionais de públicos pouco dispostos para empregar os meios tradicionais de participação política, além de produzir um aumento considerável da atenção pública ao que acontece no campo político e na sociedade.

IHU On-Line – Por que o ódio circula tão facilmente nas redes sociais?

Wilson Gomes – O ódio circula muito facilmente por qualquer rede ou ambiente social e não apenas nos sites de mídias sociais. O preconceito, a intolerância, o discurso e as práticas de ódios são nossos velhos conhecidos muito antes da disseminação das tecnologias móveis para a conexão e dos aplicativos de mídias sociais. A diferença dos meios digitais é o fato de que qualquer ato, qualquer fala, qualquer comportamento de ódio deixa rastros e, portanto, pode ser encontrado, registrado, arquivado, distribuído em grande velocidade e para um número grande de pessoas. Nada é realmente efêmero, discreto ou apagável no universo das coisas digitais. Tudo pode ser ampliado, monitorado e replicado indefinidamente, mesmo o ódio. E mesmo a condenação do ódio.

Por outro lado, a formação de redes sociais por afinidade em meios digitais é campo fecundo para que indivíduos formem ou se agreguem em coletivos com identidades bem demarcadas e muito homogêneas. E isso sem que precisem sair da sua zona de conforto e dos seus próprios ambientes sociais no trabalho ou na família, por exemplo. Digamos que eu seja um conservador radical, mas conviva em um ambiente liberal no bairro, na universidade e no esporte, de forma que posso ser levado a filtrar muito o que eu digo em público por saber que isso vai criar atritos e enfrentar contestação dos outros com quem convivo. Mas em ambientes sociais digitais eu não preciso conviver com os colegas da faculdade, com a minha mãe ou tia que me reprimem ou contestam, de modo que posso facilmente me relacionar exclusivamente ou principalmente com grupos que pensam como eu e que estão aglomerados ao redor de estrelas conservadoras como Marco Feliciano , Silas Malafaia , Lobão e Olavo de Carvalho . No interior desta nova rede social, a minha posição conservadora não apenas é tolerada, mas incentivada. A minha coragem de expressar as minhas convicções é incentivada e quanto mais radical for o que publico, mais serei recompensado pelo meu novo grupo de referência. Troque-se “conservador radical” por “feminista radical”, “esquerdista radical” etc. e o sistema identitário (“encontrei a minha turma”) se replica do mesmo jeito, com o incentivo à expressão e à publicação da opinião em conformidade com o novo ambiente social de referência e com os sistemas de apoio e recompensas à base de likes e compartilhamentos.

Em um momento em que há extrema polarização com relação a temas políticos (esquerda x direita, petistas x antipetistas) ou temas politizáveis (a questão homossexual, o feminismo, o aborto, os valores familiares), é muito fácil o sujeito ser atraído para redes baseadas em identidades políticas fortes e voltadas para confrontar qualquer posição diferente, divergente ou adversária. Assim, vão se formando ambientes digitais com ideias e causas muito homogêneas e com sistemas de distribuição interna de recompensas (afetos, likes), de prestígio e de distinção disponíveis para quem compartilhar wmais fortemente os valores do grupo e a quem contrastar mais agressivamente “os outros”, a este ponto transformados em adversários ou inimigos. Redes identitárias traçam um círculo ao seu redor e estabelecem um “nós” por contraste com “eles” e confirmam a identidade das próprias convicções nesta contraposição básicas – “eles não são como nós”. Redes desta natureza não são baseadas apenas em homogeneidade de opinião, mas em identidades sociais: eu me defino como X e, a partir do modo como me defino, eu acho a minha turma, um estilo de vida e uma posição existencial.

Em situações de polarização, “eles” os “outros” não contrastam conosco apenas porque são diferentes: facilmente se passa da constatação da diferença para a afirmação de que há divergência, e do registro da divergência para a marcação da hostilidade. Minha causa é minha vida e, pelo menos no meu turno de guarda, “eles”, os outros, os-que-não-são-nós, não prevalecerão. Assim, se passa rapidamente do registro da diferença para a certeza de que os outros em geral – ou alguns “outros” específicos – são nossos inimigos, e o inimigo se trata com hostilidade. O ódio, portanto, não surge fortuitamente de eventuais discordâncias, mas é o resultado inevitável da formação de coletivos baseados em identidades em uma situação de polarização política e social, definida como aquela em que os nervos estão tensos e as mínimas divergências, aceitáveis em outras circunstâncias, são uma diferença inaceitável, uma provocação. O ódio e as rusgas digitais (as “tretas”) são uma consequência, então, da formação de redes identitárias e da polarização ou extremo tensionamento da vida pública, que são fenômenos muito contemporâneos e que ganham particular importância em ambientes digitais.

IHU On-Line – O escritor Michel Laub lançou no final do ano passado o romance O tribunal da quinta-feira (Companhia das Letras), que trata de intolerância e do julgamento sumário a que algumas pessoas são submetidas nas redes sociais. Os linchamentos virtuais são rápidos. O que isso diz sobre as nossas sociedades?

Wilson Gomes – O conceito de “redes sociais” foi inventado muito antes de podermos falar de mídias digitais e de sites para redes sociais. Refere-se apenas ao conjunto de amigos, colegas e contatos pessoais que uma pessoa tem e da rede de interações entre eles. É parte do que é necessário para a produção de capital social, definido como um conjunto de “ativos” socialmente disponíveis, decorrentes de vínculos, contatos, valores compartilhados, acordos de reciprocidade e confiança mútua, que permite que indivíduos e grupos cooperem em benefício próprio. Capital social é parte dos recursos necessários para a vida humana, de forma que redes sociais são das coisas mais disseminadas na história humana.

Os sites e aplicativos para redes sociais são uma inovação do início do século 21 e só são realmente populares há pouco mais de dez anos. Não há como diagnosticar que a sociedade simplesmente enlouqueceu na última década e apenas por causa de uns sites que permitem às pessoas construírem novas redes de contatos e publicar, consumir e compartilhar conteúdo produzido para e pelas pessoas da sua rede. Não foram inventadas novas formas de odiar, humilhar, linchar pessoas. Nós sempre fomos muito bons nisso. As redes sociais baseadas em vínculos religiosos, as igrejas e formas semelhantes, por exemplo, foram usadas por milênios para fazer este trabalho. Os ambientes escolares, por exemplo, sempre foram muito empregados para o trabalho de assédio, humilhação, difamação e destruição de reputação de pessoas, como o sabe muito bem a minha geração, muito antes que contássemos com o auxílio de mídias digitais e de outros modos de comunicação baseados em tecnologias digitais. E continuamos muito hábeis em empregar a mais eficaz das redes de comunicação, a fofoca, para linchamentos rápidos e eficazes de pessoas.

O que acontece hoje é que todas as formas de interações e de redes sociais podem ser digitalizadas, ganhar forma em ambientes digitais ou ter ambientes digitais como suas extensões. Lembrem-se que o Facebook foi inventado para ser uma extensão da vida escolar de uma universidade americana, como dispositivo auxiliar para uma das atividades típicas desses ambientes, que é arrumar parceiros para o amor e o sexo. A “digitalização” das interações sociais vai assimilando tudo, da fofoca ao consumo de informações publicadas em jornais, das redes sociais do Ensino Médio às redes de contatos de familiares dispersos geograficamente, do ambiente religioso ao ambiente de trabalho. Assim, o que fazíamos antes por meio de outras redes sociais e em outros ambientes, o fazemos agora em ambientes digitais e por meio de sites de mídias digitais. Inclusive o básico humano do assédio, da humilhação, da difamação.

Há características específicas do digital envolvidas nos linchamentos que hoje fazemos? Certamente. As tecnologias digitais nos deram hoje um alcance que outras redes sociais e ambientes sociais nem de longe nos poderiam oferecer. Deste modo, também a nossa maldade tem o braço mais longo e chega a pessoas que, em outra época, estariam fora do nosso alcance. Em um recente episódio de ofensas racistas postadas contra a atriz Taís Araújo e a jornalista Maria Júlia Coutinho, foram presos indivíduos que moravam em Brumado (BA), Sertãozinho (SP), Jandira (SP) e Porto Alegre (RS). É claro que a probabilidade de uma rede formada por pessoas que moram tão distantes umas das outras e tão distantes das suas vítimas, às quais jamais viram pessoalmente, repousa exclusivamente nas características das novas tecnologias digitais de comunicação. Por outro lado, também a punição foi possível em decorrência do fato de que nada se faz em ambientes digitais sem que se deixem pegadas que podem ser rastreadas. Não obstante isso, o digital pode ter provido o meio e a oportunidade, mas não a motivação, o ódio racial. Ódio que, inclusive, sempre tem encontrado meios de ferir e humilhar, de um jeito ou de outro, tanto por meio de um post do Facebook como por meio de uma inscrição numa parede ou um cartaz de cartolina.■

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