Edição 502 | 10 Abril 2017

Uma nova TV capturada pelo Vale do Silício e que alimenta o resto do mundo

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Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos

João Ladeira analisa o streaming como outro momento da TV e destaca como essa tecnologia é apreendida por países desenvolvidos, relegando aos demais uma periferia tecnológica e de conteúdo

A televisão surge e logo assume seu papel de protagonista nos meios de comunicação de massa. O modelo broadcast de TV aberta passa por certas crises de conteúdos e a segmentação parece surgir como verdadeiro mercado, tanto no sentido de tecnologia como de conteúdo. Entretanto, esse modelo, ainda apoiado no esquema broadcast, logo é substituído por uma tecnologia que não só muda o suporte, mas também as formas de produção de conteúdo. É a era da TV na internet, a TV por streaming. “O broadcast introduziu uma experiência centrada no espaço doméstico, em contraponto aos espetáculos públicos típicos do cinema. O streaming rompe com as barreiras a este território da casa, lidando com uma intensa capacidade de conexão, produzida a partir da associação invisível entre tablets/smartphones, televisores inteligentes, redes de fibra e cabo coaxial, conexões sem fio”, explica o professor João Ladeira, que tem se dedicado a refletir sobre essa “nova TV”.

Ladeira explica que “a renovação técnica da qual o streaming depende se assenta em tecnologias de informação intensamente concentradas em certas regiões”. Assim, como essas novas tecnologias estão centradas no Vale do Silício, por exemplo, é da América do Norte que emerge o maior número de produções. “O Brasil, com suas dificuldades em tantos outros níveis, dificilmente vai conseguir acompanhar o mesmo ritmo”, pontua o professor, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, um dos tantos riscos que se corre no streaming é repetir a experiência da TV paga, onde se investe em tecnologia de tráfego, mas quase nada em geração de conteúdo. É assim que o Vale do Silício vai conseguindo “a façanha de transformar boa parte do mundo em sua periferia”.

João Martins Ladeira é professor auxiliar do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos. Possui doutorado em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – Iuperj, mestrado e graduação em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Pesquisador associado aos grupos Unisinos Tcav e Iesp Netsal, seus principais interesses de pesquisa são tecnologias da comunicação e informação, cultura visual, indústria cultural, imagem, indústrias criativas, globalização, teoria social. É autor de Imitação do Excesso: Televisão, Streaming e o Brasil (Rio de Janeiro: Folio Digital, 2016).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – No final do século XX, pesquisas apontavam que no Brasil havia mais aparelhos de TV que refrigeradores. Dados recentes mostram que o país tem cerca de 170 milhões de smartphones. Dentro deste contexto, como compreender a televisão no Brasil na atualidade?

João Martins Ladeira – Não é segredo para ninguém que a televisão – especificamente a televisão aberta – possui uma imensa presença no Brasil. Também é amplamente conhecido que, em nosso país, acessa-se internet de modo voraz, recorrendo a dispositivos móveis que se tornaram objetos cobiçados de consumo. Ambas as cifras indicam um imenso público voltado à imagem, às redes ou à associação de ambas. O que não significa que nossa apropriação destas duas facetas da indústria cultural contemporânea deixe de ocorrer de modo problemático.

Um exemplo talvez torne mais claro o que quero dizer. Uma das cenas mais impactantes de Muito Além do Cidadão Kane é um corte abrupto, a certa altura do filme, entre uma publicidade brasileira de alimentos e uma matéria jornalística na qual se pergunta a um carregador se ele come a carne que transporta. O peso do “não”, na velocidade do corte no interior do documentário, indica uma tensão entre um mundo que se vê na tela da televisão e outro, típico da realidade.

Se foi assim com as mídias convencionais, por qual razão se poderia supor que, com os meios digitais, as coisas correriam de modo distinto? O consumo de internet no Brasil aponta para um relacionamento com tal recurso repleto de incoerências. Vemos imagens produzidas em diversas partes do mundo, e apenas uma fração delas possui relação com a nossa realidade. A capacidade de produzir audiovisual se expandiu enormemente, como se percebe, por exemplo, numa rápida olhada no catálogo do Netflix . De fato, há produções brasileiras; mas qual a possibilidade, hoje, de produzir na escala que esta explosão de imagens demanda? Bem pouca, creio.


IHU On-Line – A expansão da TV no Brasil, a partir da década de 1970, deu-se por meio de um projeto autoritário dentro de um regime de exceção. Quais eram as estratégias políticas em jogo naquela época e quais são as atuais?

João Martins Ladeira – Numa das interpretações mais precisas sobre a televisão no Brasil, Renato Ortiz , em A Moderna Tradição Brasileira , indicou em que termos a consolidação deste meio tornou viável uma expectativa antiga, presente há tempos para aqueles que já pensavam a cultura brasileira: a necessidade de integrar o Brasil, de produzir um senso de unidade para uma população intensamente dispersa. Foi um projeto intensamente bem-sucedido, a despeito de suas múltiplas contradições, de seus limites intrínsecos, de seu caráter acrítico em relação à modernidade e ao avanço técnico, do autoritarismo no interior do qual se deu.

Ao longo dos anos de 1980 e 1990, este projeto de modernização cede espaço a outro contexto, no qual diversas forças ganham a cena. O Brasil passa a absorver uma transformação técnica e cultural com a qual não pode lidar: a televisão segmentada, em franca expansão global, como parte de um processo de mundialização mais extenso. Os indispensáveis gastos em conteúdo e os investimentos em infraestrutura indicam um descompasso entre aquilo que aqui se pretende e o que efetivamente veio a ocorrer.

Ao sonho do “Brasil grande” se sucede a incerteza da crise posterior, um momento de insatisfação repleto de histórias de refluxo, inclusive na relação com as mídias, com a cultura. Globo e Abril se viram ambas frente a gigantescas dificuldades de levar adiante seus projetos. As operações de tráfego construídas por estes velhos envolvidos com a indústria cultural terminam vendidas para operações internacionais de telecomunicações, Telmex e Telefónica, respectivamente. As duas corporações adquirem importância como parte deste mesmo processo de globalização, através do qual em diversos países se privatizam as estruturas de telecomunicações, estas que se tornariam diretamente envolvidas com o audiovisual segmentado.

Entre estes velhos personagens com a indústria cultural, apenas a Globo conseguiria levar adiante satisfatoriamente o seu projeto de ordenar conteúdo segmentado, permitindo perceber um vácuo gigantesco entre recursos de difusão desenvolvidos com razoável sofisticação e a escassez de imagens disponíveis. Trata-se da imitação de um excesso, presenciado alhures. Esta expansão podemos apenas observar como uma consequência entre outras de certo projeto de modernização pelo alto, falido em mais de um sentido. Seus resultados se sentem até hoje, com um campeão nacional que não desfruta a importância de outrora e outros envolvidos com porte reduzido, incapazes de afirmar uma tarefa que não podem cumprir.

IHU On-Line – Levando em conta a TV no Brasil nos dias atuais, estamos diante de que tipo de paradigmas? Por que não se trata, simplesmente, de uma progressão técnica?

João Martins Ladeira – Decerto, não se trata em absoluto de apenas uma renovação tecnológica. Refere-se a algo que ultrapassa em muito este caráter, seja no Brasil ou alhures. O audiovisual contemporâneo oferece a possibilidade de lidar com quantidades imensas de bens culturais, numa proporção e segmentação anteriormente difíceis de imaginar.

Autores importantes, como Baudrillard , indicaram que um traço essencial da modernidade se assenta na produção de cultura como um instrumento importante não apenas em termos de suas qualidades estéticas, mas como recursos aptos a circular, tornando palpável a extinção das barreiras que caracteriza este período histórico. Parte relevante deste processo, as imagens, por exemplo, vêm a se assentar não mais em sua habilidade de marcar determinados espaços em termos de uma distinção aristocrática inacessível para os indivíduos cujo acesso a estes estamentos se encontra vetado. Podem até mesmo se justificar não apenas por sua capacidade de produzir pretensas representações da realidade dotadas de importância em termos restritos ao universo da arte.

Estes objetos se ordenam como gigantescos sistemas de bens, inter-relacionados de modo complexo, cuja importância se mede através de sua habilidade de trafegar sem limites, não mais restritos devido a razões místicas, religiosas ou cerimoniais. A modernidade se constitui como um momento complexo, no qual se vai apropriar a produção de representações. Estas imagens sempre importaram conforme se mostravam capazes de inserir neste fluxo, reduzindo a importância de qualquer tipo de valor de culto, de importância outorgada pela tradição, distante como se encontram de qualquer sacralização.

No que diz respeito aos recursos visuais construídos a partir de tecnologias elétricas, esta livre apropriação da imagem ganha uma dimensão difícil de superestimar. Aquilo que se mostrava importante para as artes visuais ou a fotografia se radicaliza com a televisão, mecanismo de difusão com importância essencial durante o século XX. De fato, nenhum instrumento se mostrou tão hábil em ilustrar claramente esta autonomia de trânsito. Porém, a televisão como a conhecíamos – as redes de broadcast restritas a fronteiras nacionais – indicava limites que a apropriação pelas tecnologias digitais preza por eliminar. O fluxo introduzido pela associação do audiovisual com o digital conduz este traço a outro patamar, numa dinâmica de expansão que não oferece sinais de esgotamento. É exatamente neste momento que entra em cena o streaming, como parte deste processo mais extenso, com o qual lida e, ao mesmo tempo, expande.

IHU On-Line – Avançamos no aspecto tecnológico, mas quais são os limites e possibilidades em termos de conteúdo?

João Martins Ladeira – Os limites mais claros, para o Brasil, referem-se a acompanhar esta expansão e diversificação da imagem não apenas como mero observador, se me permite o trocadilho. Este processo de ampliação não ocorre sem contradições. Na verdade, trata-se de um movimento intensamente desigual, como toda dinâmica de modernização. A nossa apropriação de técnicas depende de certa habilidade com que nos apropriamos de um cenário que a semiperiferia não controla e no qual não dispõe de margem muito ampla de interferência.

A renovação técnica da qual o streaming depende se assenta em tecnologias de informação intensamente concentradas em certas regiões. O Vale do Silício, com suas corporações já consolidadas, progressivamente importantes no que se refere à imagem – Google, Apple, entre outras –, além de novas operações, recém-surgidas, mas que dependem do mesmo ambiente – Netflix, Hulu, como exemplos –, conseguiu a façanha de transformar boa parte do mundo em sua periferia, ao menos quando se trata destas renovações.

Sei que este parece um argumento forte, mas basta olhar para o esforço de corporações de telecomunicações para acompanhar o passo desta mudança – Verizon, Comcast e AT&T, que merecem maior destaque – e o contexto fica mais claro. O mesmo ocorre com fabricantes de equipamentos, e um caso nítido está nas iniciativas da Sony, com o seu Playstation e a expectativa de atrelá-lo ao Vue. São esforços gigantescos, que não encontram paralelo fora deste ambiente.

O Brasil, com suas dificuldades em tantos outros níveis, dificilmente vai conseguir acompanhar o mesmo ritmo, especialmente num momento como este de agora, de indecisão e incerteza em relação a tantas outras instâncias da sociedade. Iniciativas recentes em termos de políticas públicas são notáveis, mas, além disso, parece existir uma intensa incerteza por parte dos próprios empreendimentos de infraestrutura, por um lado, assim como de criadores de conteúdo, por outro, sobre como proceder.

IHU On-Line – Poderia explicar, basicamente, quais são as diferenças da TV que opera por broadcast e a TV que opera por streaming? Como esses modelos impactam nas subjetividades?

João Martins Ladeira – O broadcast introduziu uma experiência centrada no espaço doméstico, em contraponto aos espetáculos públicos típicos do cinema. O streaming rompe com as barreiras a este território da casa, lidando com uma intensa capacidade de conexão, produzida a partir da associação invisível entre tablets/smartphones, televisores inteligentes, redes de fibra e cabo coaxial, conexões sem fio. São arquiteturas distintas, que afirmam lógicas variadas. Em velocidades progressivamente maiores, o on-line promete a todos que tudo estará disponível a qualquer hora em qualquer lugar. Decerto, a fantasia se mostra mais difícil de cumprir em certos casos que em outros. Contudo, importa mais como um horizonte sobre o que se pode esperar para este século.

O broadcast se mostrou um instrumento essencial para a constituição da massa, afirmando, na cultura, a tensão inexorável entre massificação e individualização. Realizou esta tarefa a partir de uma atenção a intervalos fixos de tempo, definidos por uma programação imutável. Neste senso de rotina e ordem, introduziu a experiência de um fluxo interminável de imagens, repetindo-se ciclicamente. Esta tarefa dependeu do caráter intensamente homogêneo de seu conteúdo, sempre guiado pela tentativa de ofender a menor quantidade possível de indivíduos. Este formato começou a se esfacelar com a expansão proporcionada pelo multicanal, radicalizando-se no streaming.

O resultado se torna outra relação com processos essenciais de uma subjetividade que se guia por uma expectativa de diferenciação. Os intermináveis acervos de conteúdo que se pode escolher com intensa liberdade, que se assiste “em qualquer hora, em qualquer lugar”, que se guiam por escolhas pessoais que nada devem a programadores afirmam sistematicamente um desejo contemporâneo de consagrar certa autonomia.

A partir desta ideia, ordena-se toda uma arquitetura para a imagem. Consequentemente, ativa-se sujeitos dispostos nesta malha moldável de opções, vasculhando-as, numa motivação que parte da justificativa de que o entretenimento acessado decorre de uma escolha pessoal, um ato livre de uma vontade autônoma. Não se trata mais das mesmas estratégias de docilização caras ao século XX, mas de outras, típicas ao contemporâneo.

IHU On-Line – De que forma a TV por broadcast opera na lógica disciplinar e a TV por streaming, na lógica do controle? Em termos sociológicos, quais impactos podem ser percebidos?

João Martins Ladeira – O diagrama do controle surge como um desenho que ativa traços anteriormente inviáveis dentro de uma ordem pautada pelas estratégias da disciplina. Estas redes ubíquas de comunicação funcionam como malhas no interior das quais operam estruturas possíveis de se adaptar aos gostos mais diversos. A diversidade de imagens toma parte nos esforços para permitir a qualquer um ser o que quiser, conforme disponha da autonomia para afirmar aquilo que gosta ou deixa de gostar.

A consequência mais clara desta diferenciação se torna certa segmentação, que, algumas vezes, tende à confusão. Quando se busca identificar alguma experiência coletiva compartilhada por todos, pessoas da minha idade sentem certa dificuldade na relação com gerações mais jovens. Digo certa, pois em sociedades com participação ainda duvidosa neste cenário, alguns traços da massificação pregressa parecem duros de ceder. Tente perguntar para alguém sobre o campeonato brasileiro de futebol e a resposta virá sem grandes dificuldades.

O mesmo não acontece quando se fala em filmes ou séries. Todos têm as suas preferidas, e alguns dos universos que se formam ao redor delas passa perto da incomunicabilidade. Rapidamente se descobre que House of Cards não faz muito sentido para fãs de How I Met Your Mother e que muita gente nem ouviu falar em Crisis in Six Scenes , embora Woody Allen não seja exatamente um novato desconhecido.

Converso com várias pessoas que não fazem ideia do que seja uma novela das oito, embora ainda se mostre difícil ignorar o peso que os programas de auditório e vespertinos de entrevistas possuem no dia a dia de boa parte da população brasileira. Mas opções baratas de entretenimento apresentam a chance de diversificação mesmo para aqueles que nunca tiveram recursos ou disposição para arcar com a televisão segmentada.

Esta mesma fragmentação ocorre, num outro exemplo, quando se fala sobre política. Ao se ultrapassar a barreira de gigantesca indiferença que muitas pessoas nutrem em relação a este tema, depara-se com um público voltado a fontes das mais idiossincráticas na produção de informações. O Jornal Nacional ainda retém importância, mas convive com várias opiniões, algumas delas disseminadas a partir de fontes não muito confiáveis. Neste universo de informação – ou, que sabe, de desinformação – existem oportunidades para se afirmar posições das mais particulares, ainda que – alguns dirão exatamente pelo fato de – várias delas não façam sentido ou sejam simplesmente mentiras. Neste terreno, a situação vai se tornar ainda mais aguda quando surgirem plataformas de streaming que imitem práticas jornalísticas, mas – possivelmente – voltadas a visões muito particulares, algumas delas ausentes de responsabilidade.

Todos estes exemplos descrevem estratégias alinhadas com a tentativa de adestrar multiplicidades, típicas de um momento histórico pautado pelo diagrama do controle. Esta intensa variação de material procede não num lugar de liberdade, mas no interior de um ambiente fortemente administrado.

IHU On-Line – Em termos políticos, considerando o caso brasileiro, como a atual configuração da TV no Brasil ajuda a explicar o assédio das empresas de telecomunicação em tentar limitar a Internet de banda larga fixa?

João Martins Ladeira – A discussão em torno das franquias despertou grande interesse, assim como outros debates que, no passado, alimentaram certa comoção, como aquele sobre o padrão para a televisão digital. Ambos eram certamente importantes, mas não centrais. Decerto, a preocupação com o possível aumento de cobranças em serviços que já são caros, além de ruins, surge como um problema para o consumidor. Mas eu chamaria a atenção para outros debates, como a tentativa da Ancine em regular o streaming. O texto permaneceu em consulta pública entre dezembro de 2016 e março de 2017.

Esta tentativa, que se justifica por adequar o on-line à Lei do SeAC, trata-se da primeira oportunidade para se criar alguma norma possível de administrar o streaming. Obviamente, encontra-se em pauta a obrigação tributária da ordem do dia: o pagamento do Condecine . Além disso, constroem-se regras que podem surgir já com cheiro de velho. O assim chamado serviço de “comunicação audiovisual sob demanda” (CAvD) se dividiria em dois blocos: os serviços que oferecem um acervo previamente delimitado ou que lidam com conteúdo produzido por usuários. Apenas os primeiros possuem obrigações em relação à produção brasileira.

Esta distinção parece absolutamente contingencial, baseada no que se conhece hoje da experiência limitada, cara ao Brasil, mas que não casa com as tendências que parecem guiar o streaming em ambientes mais maduros. Põe-se o Netflix num extremo e o YouTube no outro. O contexto, visto com mais calma, não é assim tão claro. Ignora-se o fato de que, talvez, uma distinção efetivamente importante resida em serviços que se apropriam de publicidade on-line ou que recorrem ou não a assinaturas.

Como enquadrar os multichannel networks neste cenário, ainda escassos no Brasil, mas um formato ligado à profissionalização de conteúdo nativo alhures? Se poderia incluir um produtor deste tipo no conteúdo “criado pelo usuário”, embora, ao seu redor, já se constitua todo um universo profissional? Por que razão não se deve atentar em termos de políticas públicas para este tipo de conteúdo? Ele é menos importante? Não seria interessante investir de nenhum modo em experiências com os assim chamados “youtubers”?

Elas não poderiam se transformar em oportunidades para as produções de TVs públicas, prensadas pelos baixos orçamentos, em busca por alternativas em termos de conteúdo que as permita ocupar algum espaço na rede? Qual a razão de uma universidade não investir na formação deste tipo de profissional voltado a conteúdo nativo? Para que se possa cogitar qualquer alternativa neste espírito, demanda-se espaço em serviços que vão surgindo fora do Brasil (go90, Watchable), centrados unicamente neste tipo de material, e que cedo ou tarde – mais cedo do que tarde, espero – vão chegar aqui. Não se precisa resguardar espaço neles?

IHU On-Line – Quais os principais desafios para a democratização efetiva da comunicação no Brasil e como esse debate passa pelos processos relacionados às novas especificidades da TV no país?

João Martins Ladeira – Esta não é uma resposta fácil, especialmente devido ao fato de que uma “efetiva democratização” diz respeito a uma busca constante, e não uma receita que, depois de descoberta, bastaria tão somente repetir. Questão relevante reside em compreender que, ao contrário da televisão segmentada brasileira, que no passado gastou rios de dinheiro com a aquisição de material estrangeiro, uma melhor opção seria produzir audiovisual. Um dos mistérios inexplicáveis em relação à nossa televisão paga sempre foi o descompasso entre a imensa atenção ao investimento em infraestrutura para tráfego e o escasso interesse na diversificação de conteúdo. Com o streaming, algo semelhante se repete, porém, de modo ainda mais grave: não passou e nem passará pela cabeça de ninguém a ideia de um Netflix brasileiro, uma estrutura de tráfego própria.

Qual o impasse para a criação de material novo? Um problema essencial se torna buscar fontes de financiamento para a criação deste conteúdo. Sempre tive dificuldades de entender por que as corporações de telecomunicações, no Brasil, não podem se envolver com a criação de audiovisual. Não poderiam elas se tornar relevantes para a criação de material voltado ao on-line, já que o nosso país não possui conglomerados de mídia aptos a gastar o necessário nestas atividades? Já não passou o tempo de abandonar a blindagem dos grupos de mídia convencionais?

Nos EUA, os criadores profissionais voltados a “conteúdo nativo” fazem parte de corporações como a Disney (no caso da Maker) ou a Warner (no que diz respeito à Machinima); receberam investimentos de operação de tecnologias de informação (como o Google) ou de firmas de capital de risco. Quem, no Brasil, poderia cumprir um papel compatível com estes personagens, frente à nossa indústria cultural subdesenvolvida? As redes de broadcast? As produtoras voltadas a criação de alguns filmes, certos programas de televisão ou de anúncios publicitários? Responder a esta pergunta surge como tarefa essencial.

Audiovisual contemporâneo

O audiovisual contemporâneo se assenta na diversidade de oportunidades para afirmar visões de mundo diferenciadas. Pode-se apropriar nos termos mais variados as muitas posições que as pessoas sentem prazer em afirmar. O streaming permite uma diversificação que se mostrava difícil de ocorrer em outras instâncias. Não significa a reedição de fantasias passadas, imaginando que canais segmentados regionais de televisão representariam um sinônimo para a diversidade de conteúdo.

Porém, o que impede, por exemplo, a produção de novos serviços de jornalismo, a não ser uma certa carência de clareza sobre como estas tecnologias operam, além das dificuldades de financiamento recorrentes a uma indústria cultural em dificuldades difíceis de escapar? Este caso, um tema isolado entre outros vários, permitiria a circulação de novas visões de mundo num país profundamente incerto sobre seu próprio futuro, mas ansioso por novas direções. As questões em torno do tema vão se avolumando, e as complexidades em pauta apenas começaram a se mostrar. Enquanto elas não se tornam mais claras, vamos continuar assistindo a federações de futebol bloqueando transmissões de jogos dos times que ousam utilizar o streaming como uma alternativa, recorrendo a desculpas esfarrapadas sobre o credenciamento de profissionais...■

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